O texto abaixo é uma honesta aula filosófica baseada em Alma, escrito por Voltaire, com sugestões de como as ideias contidas em tal escrito podem ser usadas para desenvolver o país e ajudar as pessoas a se compreenderem.
Definição de alma.
Na religião, alma é vida e a vida está no sangue. Como a filosofia tenta explicar as coisas sem recorrer à religião, essa ideia pode não satisfazer. O problema é que a filosofia é incapaz de dizer o que é alma e quais são suas propriedades. Naturalmente, como acontece com um bom número de entidades metafísicas. Diz o bom senso que a filosofia e a ciência não devem se pronunciar publicamente sobre o que não podem compreender ainda. Quando algo ainda não é compreendido, deve-se refletir sobre ele até que seja compreendido, não dar aula sobre isso. Então, tentemos refletir sobre o que é a alma, pra que a compreendamos racionalmente. Vamos lá: o que é a alma? Se tivermos que julgar pelo vocábulo, “alma” significa “aquilo que anima”, ou seja, vida. Muito bem, estamos chegando a algum lugar. Agora: ela é corpórea ou não? Agora, a coisa começa a complicar…
De um lado, existem matérias vivas e matérias mortas. Então, podemos argumentar que a vida é uma propriedade material, como a solidez ou a liquidez, presente em alguns, mas não todos os corpos. Mesmo na religião, isso pode encontrar amparo: Deus pode vivificar qualquer matéria e até fazê-la pensar e os pais da igreja sustentavam, com os judeus, que a alma é parte do corpo, de forma que a matéria poderia pensar. Uma alma material pode também ser imortal, já que é improvável que haja um dia em que a matéria venha a deixar de existir no universo (eu acho). Por outro lado, muitas pessoas afirmam ter visto e até conversado com entes queridos que morreram. Se essas pessoas estão vivas, mas seus corpos se decomporam, como pode a alma ser corpórea? Isso é um fenômeno tão comum, que a maioria das culturas primitivas acreditava na imortalidade da alma, inclusive os egípcios, chineses e caldeus.
Mas isso não era uma unanimidade: os primeiros judeus, que receberam a Lei de Moisés, não receberam nenhum ensinamento sobre vida eterna, porque Moisés nunca ensinou que a alma é imortal, tanto que todas as recompensas e punições, de Gênesis a Deuteronômio, pra observação dos mandamentos divinos eram materiais, com efeito imediato (fartura, saúde, vida longa, paz, entre outros). A questão não está fechada. Mas isso é o menor problema. O maior problema é que, tal como muitos outros problemas metafísicos, essa questão nunca fechará.
A alma é incognoscível pela razão. O único jeito de responder definitivamente questões anímicas é pela fé, não pela razão. Geralmente, apelamos pro sobrenatural quando não compreendemos o material. Isso acontece porque a razão precisa de informação sensorial pra trabalhar. Assim, se algo não passa pelos sentidos, não é possível raciocinar sobre aquilo (isso não quer dizer que a realidade é como parece ser, mas que os dados sensoriais são o ponto de partida). Isso torna absurdo atribuir a uma causa imaterial algo cuja causa já foi apontada na matéria, a menos que estejamos trabalhando com a fé.
Observe que isso não quer dizer que só existe aquilo que podemos ver, ouvir ou sentir, mas que, se a razão precisa de informação sensorial como ponto de partida pra suas reflexões, sendo que o ser humano só tem cinco sentidos limitados em alcance, segue-se que podem existir coisas imperceptíveis aos nossos sentidos e sobre as quais não é possível raciocinar. Se a alma não é perceptível pelos sentidos, isso não quer dizer que ela não exista, mas que ela precisaria, se existir, ser revelada. A partir do momento em que algo precisa ser revelado, saímos da razão e entramos na fé. Se Deus criou a alma e a alma é incognoscível ao homem, cabe a Deus revelá-la, se ele quiser. A razão é melhor empregada na filosofia (desde que lide com coisas que a razão pode alcançar) e na ciência.
Pra muitas coisas, a religião ainda é a melhor resposta. Como a religião se funda na fé e a ciência se funda na razão, sendo que fé e razão são de natureza diferente, segue-se que a ciência nunca será capaz de acabar com a religião. A filosofia ou a ciência nunca serão incômodos à religião. Isso é tão verdade que existem filósofos e cientistas que também são religiosos.
Se alma é vida, então constantemente vemos que a alma existe, já que a vida existe. Mas como se define isso? Como colocar “alma” ou “vida” em palavras? Esse tipo de problema é tão estressante quanto desnecessário. Muitas vezes, usamos palavras sem saber seu significado exato, por amor à praticidade. Mas, na filosofia, você só deve falar do que você conhece. Enquanto não houver uma definição fechada do que é a alma, a filosofia não pode trabalhar com esse conceito. Quando um problema metafísico chega a esse grau de selvageria, a ponto de ser uma discussão tão irritante quanto infrutífera, é melhor mesmo ficar com a religião. Afinal, de que serve essa discussão? Saber exatamente o que é a alma e quais suas propriedades não vai resolver o problema da fome no Nordeste. Por causa disso, a maioria da população mundial não acha a discussão sobre a alma relevante. Saber o que é a alma provavelmente não resolverá nenhum problema.e um quarto, mesmo se engajando em tal discussão, é incapaz de concluí-la.
Parece que nenhum povo é capaz de compreender a alma. Como o nosso povo estaria melhor equipado pra isso? Alguém pode dizer: “temos ciência, que torna acessível até às crianças o que antes era segredo dos sábios, e isso é uma vantagem.” Neste caso, não é, porque a ciência só pode ser feita onde há espaço pra experiência e pra matematização. Não se pode colocar a alma em laboratório e nem formular regras gerais de regularidade sobre ela. É preciso ter a modéstia de dizer quando uma questão supera suas forças de resposta. Algo precisa ser material ou, pelo menos, afetar a matéria pra que seja congnoscível. Logo, não é possível se pronunciar com segurança sobre a alma.
Alma, espírito, consciência, inteligência…
A situação fica ainda mais estranha quando se considera o “espírito”, a soma das faculdades mentais da pessoa, nosso “eu”, que comanda o corpo. A ideia de espírito vem do fato de que o pensamento é imaterial, mas se origina em nós, dando a entender que temos uma parte que é imaterial. Dizem que tal espírito, particularmente o pensamento, é a essência do homem. Isso é estranho: quer dizer que o homem deixa de ser homem quando para de pensar? Se assim é, deixamos de ser homens ao dormir e voltamos a sê-lo ao acordar. Some-se a isso o fato de que não sabemos exatamente o que é o pensamento e teremos ainda mais dificuldades. Além disso, se o espírito comanda o corpo e o espírito é o “eu”, como se explica que existem órgãos que funcionam sem meu controle?
Os animais pensam? Certamente são capazes de aprender, se aperfeiçoar e se adaptar ao ambiente em que estão. Pra isso, é preciso pensar. Eles também são capazes de sentimentos e emoções, às quais reagem. Inclusive, muitas emoções humanas também são sentidas pelos animais. Além disso, estão vivos. Então, eles têm alma e espírito? Se pensa, tem espírito. E o mesmo conjunto de questões que se referem aos homens se referem aos outros animais: a alma (ou espírito) é material, imaterial, mortal, imortal? Por que pensamos que o animal, coitado, não tem alma? Só pode ser por orgulho. Além disso, se só tem alma aquilo que “raciocina”, a criança pequena não teria alma também!
Além disso, qual é a relação entre espírito e alma? Se originam do mesmo princípio? Vêm do mesmo lugar? Somos uma substância pensante que habita a matéria, da qual nos servimos, ou somos uma matéria que pensa? Tentando resolver um problema desses, Platão chegou a afirmar que o homem tem três almas: vegetativa (vida), irascível (emoções) e intelectual (pensamento). Assim, há uma alma que mantém a vida, uma que provoca emoções e outra que pensa, todas imortais e imateriais. Olha como ele complica as coisas. Será que faz sentido dizer que cada homem tem três almas? Ele pode provar a imaterialidade, principalmente da alma vegetativa? Não obstante, se alma é vida, a inteligência ou consciência deve ser um princípio separado, talvez dependente da alma (“talvez” porque alguns admitem que o espírito, a consciência, a personalidade sobrevivem à morte, não dependendo, portanto, da vida pra existir). Alguém pode dizer: “ah, alma e espírito são a mesma coisa!”. Muito bem, mas você tem uma definição fechada de espírito? Definições circulares não valem. Ninguém realmente sabe.
Requisitos de sistema.
Suponhamos que a alma dependa de um cérebro, uma criança sem cérebro venha ao mundo. Se admitirmos que espírito acompanha a alma (ou com ela se identifica), a criança tem alma, ou espírito, tendo nascido sem cérebro? Quais os requisitos pra que se tenha alma? A alma é comum a todos os seres humanos, inclusive aos que não pensam? Se for, basta estar vivo pra ter alma e, com isso, alma nada tem a ver com espírito (consciência, personalidade).
Mas surge outro problema: se a alma, ou o espírito, é imortal, a criança sem cérebro estará no paraíso depois da morte? Alguém pode argumentar que uma pessoa sem cérebro não pode estar viva. Muito bem, mas seus órgãos vitais funcionam: o coração bate, há movimento peristáltico e a pessoa pode absorver nutrientes se lhes forem injetados. Se alma é o mesmo que vida, a criança está viva e tem alma. Além disso, ainda supondo que a alma dependa de um cérebro, o que provavelmente implica uma identificação de alma e espírito, como podem pessoas de cérebro igual terem capacidades mentais tão diversas? Será que almas diferem entre si, por isso pessoas de cérebro igual têm níveis diferentes de inteligência (a ponto de a distância entre elas ser maior que a distância entre homem e animal)? Em todo caso, morreremos antes de ter essas respostas, provavelmente.
Não há nenhuma diferença entre o cérebro do Einstein e o seu. No entanto, o Einstein revolucionou a física e você tá sentado aí, lendo esta papagaiada. Podia ser pior: pelo menos você não tá lá, no Corona Fest, onde várias pessoas com o cérebro tão bom quanto o do Einstein se reúnem pra desperdiçar tamanha concessão divina. Se Deus nada faz sem propósito, então qualquer animal que tenha um cérebro o recebeu pra usá-lo, não pra repetir que o coronavírus nunca matou e nem matará ninguém.
A religião, o estado e a imortalidade da alma.
Se você é fiel a Deus, não precisa temer a morte, porque, se a religião afirma que a alma é imortal (ou que haverá uma ressurreição dos mortos) e que a sua pós-vida é condicionada pelas boas ações coletadas em vida, tudo vai bem. Você será recompensado depois da morte, então fique tranquilo. Porém, se você acredita que a vida acaba na morte, porque a imortalidade da alma é questionável, e não há nada depois dela, não há nenhuma forcinha pra você andar dentro da lei, inclusive das leis do estado democrático de direito.
Do ponto de vista da pessoa que morre, a experiência é igual a de pegar no sono ou desmaiar. É, pelo menos, o fim do sofrimento. Num país que aplica a pena de morte, matar um sujeito que vê a morte apenas como o fim da sensação não é realmente uma “pena“, porque a morte seria algo positivo pra essa pessoa. Grande coisa morrer! Dessa forma, cometer suicídio é a fuga perfeita após cometer um crime grave. Observe que o mesmo é válido pra denominações cristãs que afirmam que a fé basta pra salvar, como é o caso do protestantismo tradicional (sola fide). Pra essas pessoas, a fé, sem as obras, basta pra salvar. Se assim é, morrer marca a ida da pessoa pro paraíso, onde será recompensada por sua fé, mesmo que tenha cometido os piores crimes em vida. Assim, enquanto que a morte é o fim do ateu, ela é só o começo da festa do evangélico e do terrorista fanático.
Isso mostra como as crenças que temos em relação à morte podem ajudar a pessoa a se manter obediente à lei (parece que todo crime é pecado, embora nem todos os pecados sejam crimes) ou mesmo encorajá-la a quebrá-la. Se você se perguntava como os Estados Unidos podem ser uma nação tão perversa, aí está sua resposta: é um país de maioria protestante. Isso é especialmente verdade quando se fala de neopentecostais, os quais cultivam a ignorância dos fiéis. Você não pode questionar a igreja deles. Impedir a liberdade de pensamento engendra ignorância e o movimento neopentecostal parece que é uma escola que te ensina a não pensar e que só estimula sua imaginação pra te tornar mais receptivo às mais absurdas mentiras. Observe que muitos protestantes são boas pessoas com ideias de valor, então não pense que todos os evangélicos estão errados em tudo só porque existem pastores explorando a ignorância dos fiéis. Seria um salto enorme e provavelmente intolerância religiosa.
A liberdade de pensamento.
Voltando ao assunto, nações onde há mais liberdade de pensamento são mais cultas. O que suscita uma discussão culta em uma nação pode suscitar a violência em outra. Mesmo entre pessoas que se ajudaram ainda ontem. Isso só é possível porque alguém em posição de poder crê estar sempre certo e não admite provas do contrário. Esse é um sinal de falta de tolerância, algo que afasta os homens uns dos outros, mas não é o único sinal: em tempos onde ninguém admite o outro que pensa diferente, uma pessoa pode perder o emprego por ter ofendido outra, mesmo que tenha falado a verdade. É também o tempo em que não se combate uma ideia com argumentos, mas com risos, violência e táticas de envergonhamento. É que a pessoa não tem como defender suas ideias, então tenta fazer você deixar de professar as suas próprias estimulando o medo ou a vergonha de dizer o que você pensa.
Isso é péssimo pra sociedade, porque silencia também boas ideias no processo de censurar ideias “más” (isto é, ideias que discordem das ideias dominantes). Se a sociedade for tolerante às opiniões divergentes, contudo, teremos avanços na filosofia, na ciência, no comportamento humano e na política, porque haverá plataforma pras ideias boas, mas também impopulares. Isso permite a mudança pra melhor. Se a tolerância permite a mudança e a intolerância permite a manutenção do estado presente, segue-se que qualquer intolerância, mesmo quando vem da esquerda, é conservadora por natureza.
Se é a ignorância que prejudica a república, ao passo que a liberdade de pensamento e expressão a aprimora (porque tais liberdades estimulam a tolerância, a cooperação e a saudável competição entre ideias), segue-se que o religioso fanático e o político cego por sua ideologia são os verdadeiros venenos que ameaçam a república, enquanto que a filosofia e a ciência são o antídoto. Especialmente venenoso é o sujeito que combina as duas coisas, misturando religião e política, tentando transformar em política pública suas convicções pessoais. Isso não deveria acontecer, por exemplo, entre pessoas de diferentes religiões abraâmicas: se o Deus é o mesmo, por que não tratamos uns aos outros como irmãos, filhos do mesmo pai celestial? O ideal é que cada um pense como quiser. Isso não quer dizer que a pessoa tenha que ser eximida de responder por seus atos e pelas consequências desses atos.
Recomendações.
Como todo ente metafísico, a alma é uma coisa que não podemos experimentar sensorialmente e da qual não se extraem leis absolutas. A alma não pode, também, ser expressa matematicamente. Então, discutir sobre a alma implica especulação, se a discutirmos pela metafísica. No entanto, a religião tem suas verdades sobre a alma. Se a metafísica e a religião debatem o mesmo tópico, a religião, ao menos, já tem uma resposta.
Pela razão, não é possível saber ao certo as propriedades da alma, de onde ela vem, de que é feita nem pra onde ela vai depois que o corpo perece. Por causa disso, a discussão racional sobre é alma nunca será fechada. Além do mais, precisamos reconhecer que discussões como essas não resolvem nenhum problema do homem. Saber o que é a alma e quais são suas propriedades não curará nenhuma doença, não erradicará a fome, não proporcionará a paz mundial e nem irá gerar empregos. Se este é um problema metafísico e, portanto, especulativo, mas também provavelmente inútil, é melhor ficar com o que a religião diz e empregar a razão em outras coisas.