Vocês já viram isto antes e agora vão ver de novo. Como eu acabei minha leitura do livro seguinte de Agostinho, tá na hora de mostrar o que eu aprendi lendo ele. Trata-se da Doutrina Cristã. Apesar do nome, é um manual de hermenêutica e oratória, se bem que orientado a estudantes e pregadores. Tento me focar mais na hermenêutica e na oratória, já que, se é pra aprender sobre Cristo, já existem igrejas pra isso. Não obstante, o assunto do cristianismo é inescapável, então, de vez em quando, eu acabo falando desse assunto.
Sempre que necessário, use outros conhecimentos que você tem, inclusive filosofia, ciência e bom senso, pra interpretar um texto que você está lendo. Algumas pessoas têm talento pra interpretar um texto, mas esse talento não é universal, de forma que há pessoas que precisam aprender como interpretar um texto.
É um engano comum pensar que qualquer um pode entender qualquer texto, que bastaria lê-lo pra compreender. Alguns textos são escritos com a presunção de que o leitor já sabe de algumas coisas de que o escritor está a expor. Por exemplo: o segmento de economia do Jornal Nacional. Quem não entende de economia não entende, por mais que o William Bonner repita, como a alta ou queda do PIB afeta a vida de cada cidadão. Particularmente dos mais pobres, pros quais o PIB estar crescendo ou caindo não muda o fato de que não tem comida em casa. Alguns ficam esperançosos quando veem o PIB aumentar, mas não se engane: o produto interno bruto é a soma da riqueza produzida no país, sendo que o Brasil é um país desigual. Se você é pobre, você não pode esperar muito do PIB, porque, mesmo que o Brasil esteja produzindo mais riqueza (PIB alto), você provavelmente não verá nem a cor dessa riqueza. Quem assiste o segmento econômico do JN sem saber disso acaba pensando que um PIB alto vai fazer todo o mundo ficar rico amanhã. Não é isso. Um PIB alto pode muito bem beneficiar só quem já é rico.
Portanto, é preciso ter conhecimento pra interpretar corretamente uma informação. Quanto mais conhecimento você tiver, mais textos você vai entender. E isso é válido também na apreciação da Bíblia Sagrada. Pra Agostinho, compreender a Bíblia corretamente pode requerer conhecimentos de história ou geografia (pras passagens históricas), e até de ciência ou de determinados ofícios (pras passagens metafóricas). Por exemplo: pedra angular ou pedra de esquina, que são expressões usadas pra descrever a importância de Jesus. Se você não é arquiteto ou, pelo menos, pedreiro, você não sabe como o ângulo da construção é importante. A comparação entre a importância desse elemento e Jesus fica perdida. Assim, interpretar um texto pode requerer treinamento prévio nos elementos aos quais o texto faz referência.
Há duas artes relativas ao texto: a interpretação (entender o que está escrito) e a exposição (explicar pra outro o que está escrito).
Aristóteles escreveu na Metafísica, se não me engano, que a prova de que alguém realmente aprendeu algo é sua capacidade de ensinar o que aprendeu. Concedo. Mas é verdade que muita gente aprende algo muito bem e não consegue ensinar o que aprendeu. Porque ensinar é, em si, uma arte. Talvez por isso bacharelado e licenciatura sejam formações diferentes…
Entender o que está escrito requer que você trabalhe somente com sua habilidade. Explicar o que está escrito requer que você trabalhe com o nível de compreensão do seu ouvinte. Se você tá discursando pra pessoas com um nível cultural menor, você vai ter que dosar as palavras que você usa e estar disposto a clarificar termos obscuros. Ademais, se o assunto é importante e seu ouvinte tem outras preocupações na cabeça, você terá que usar artifícios pra manter a atenção do sujeito. Segue-se que ensinar é mais difícil que aprender.
O amor ao próximo obedece ao critério de… proximidade!
Algumas pessoas se ressentem por não poderem fazer nada por aqueles que sofrem em outros estados ou outros países. Mas, se você for pensar assim, você vai esquecer de que há pessoas na sua cidade ou até na sua família que precisam de ajuda urgente também. Devemos fazer o bem a quem pudermos fazer o bem, sem nos ressentirmos por não podermos ajudar pessoas que estão muito distantes de nós, seja fisicamente, emocionalmente ou financeiramente. Faça o bem a quem você puder fazer. Pelos outros, ore.
Se for escrever um livro, se esforce pra que ele não seja tedioso.
Pra Agostinho, a Bíblia é um livro extremamente estimulante por causa da sua linguagem metafórica, que faz com que o leitor sempre volte a ela, tentando entender o que foi dito. É como se a graça da Bíblia fosse convidar o leitor a criar suas próprias teorias sobre o que está sendo dito. Esse fator de releitura até hoje não se esgotou e muita gente cria teorias bíblicas até hoje. Esse efeito é sentido em menor escala por fãs de séries nas quais o sujeito se esforça pra entender até o que não está sendo dito, como Lost e Manifest. Parte do apelo desses trabalhos é levar a pessoa a teorizar. Isso não é um privilégio dos livros e das séries, pois também se vê isso nos jogos, como Deltarune. Os autores desses trabalhos entenderam que um bom produto é aquele que leva o consumidor a transcendê-lo, a comparar suas teorias com as de outros, o que alimenta a formação de comunidades.
Existem outras formas de fazer com que um livro (ou série ou jogo) não seja um porre de ler, mas as melhores formas de fazê-lo são aquelas que levam o leitor a voltar ao trabalho lido novamente. Se você criar pretextos pra que o leitor volte à leitura, mesmo depois de ter terminado, seu trabalho será popular.
Se você não conhece o idioma original em que uma obra foi escrita, sua melhor aposta é comparar as diferentes traduções do texto, em vez de eleger uma tradução só, se o que se quer é se aproximar do significado original.
A bem da verdade, existe um problema na religião cristã que é a padronização da Bíblia Sagrada. Existem cânones protestantes (66 segmentos, contando livros e cartas), católicos (74 segmentos) e ortodoxos (até 81 segmentos). Mesmo que houvesse uma padronização canônica, não há acordo sobre quais fontes textuais utilizar. Existe o texto tradicional (composto pelo texto massorético e pelo texto recebido de Erasmo) e os textos críticos (cópias historicamente mais confiáveis, mas que podem se contradizer entre si). Essa rixa existe porque os textos originais da Bíblia não existem mais. Tudo o que temos são cópias datando de diferentes períodos.
Além disso, mesmo que tivéssemos os originais, não conheço ninguém que possa ler hebraico, aramaico ou grego, que são as línguas nas quais os textos sagrados foram escritos. Fora que o hebraico da época não tinha vogais então a pronúncia de alguns nomes próprios fica perdida. Então, teríamos que confiar em traduções. E aí temos mais problema: o modo de traduzir. A maioria das Almeidas traduz por equivalência formal (cada palavra deve ser traduzida por uma palavra equivalente da mesma classe gramatical), enquanto quase todas as outras traduções usam equivalência dinâmica (cada frase é traduzida por uma de sentido equivalente). Todos esses problemas levam à conclusão de que, pra chegar ao que os autores originais queriam dizer, o fiel não poderá passar a vida lendo somente uma tradução da Bíblia. Ao terminar a leitura, dê a Bíblia a outra pessoa e adquira uma outra, de outra tradução. O mesmo é válido pra qualquer livro cujo idioma original você não domina.
O homem não cria verdades, mas apenas as descobre.
“Verdade” é a afirmação que está conforme à realidade objetiva (fora do sujeito). Pra conceber uma verdade, é preciso constatar algo. Esse algo cria a verdade em mim e eu posso então comunicá-la. Se a verdade depende de uma constatação de algo vindo de fora de mim, segue-se que eu não crio verdades, mas as descubro no mundo. Quando o universo, o mundo, a natureza ou qualquer coisa fora de mim contradiz o que eu penso, é porque o que eu penso não é verdade. Se uma pessoa fala pra mim algo que é contradito por esses elementos, é porque essa pessoa está mentindo pra mim. A verdade inventada é uma mentira. Só é verdade o que é descoberto, não inventado.
A verdade deve ser aceita onde quer que seja encontrada.
O problema de muitos hoje, particularmente dos jovens, é rejeitar a priori o discurso de alguém porque essa pessoa, em algum momento, professou uma crença considerada aberrante. “Ah, nem vou me dar ao trabalho de ouvir um misógino”, mesmo que o cara não seja. Mas já pensou se esse misógino, de repente, fala algo certo e com o qual você poderia concordar? Você não vai saber. Se souber, vai preferir ignorar. Afinal, é “um misógino”. Isso não é uma coisa boa, pessoal. O fato de uma pessoa falar besteira não indica que essa pessoa nunca vai falar algo de valor. Se assim fosse, ninguém estudaria Schopenhauer hoje, ou Nietzsche, dois filósofos extremamente influentes, mas que não tinham opiniões muito justas sobre as mulheres. Se assim fosse, ninguém estudaria Freud ou Albert Moll, porque ambos afirmaram que crianças são seres sexuais (o que não é uma “besteira”, já que é verdade, mas é um escândalo). Se assim fosse, ninguém estudaria Marx, porque é um comunista, ou Bakunin, porque é um anarquista.
Se alguém, em algum momento, em algum lugar, fala algo com que eu não concordo, tudo bem; o cara é humano e todos os humanos cometem erros de vez em quando. Isso não quer dizer que eu tenho que excluir o sujeito da minha vida totalmente. Analogamente, se alguém reprovável fala algo correto uma vez na vida, eu tenho que aceitar que o que ele disse é verdade, mesmo que ele seja uma pessoa execrável. Isso não quer dizer que uma pessoa deve aceitar tudo o que lê, mas que, quando a pessoa lê qualquer coisa, ela tem que selecionar o que ela vai usar e o que ela não vai usar. De todos os discursos que você ouve, você deve ficar com o que é aceitável e ignorar o que é inaceitável.
Isso me lembra de um incidente no Twitter, no qual dois pacas (pessoa atraída por criança ou adolescente), ou “MAPs” (minor-attracted person), se preferir, estavam discutindo o livro do O’Carroll, o Paedophilia: the Radical Case. Durante a conversinha deles, chega um cara “normal” e pergunta que diabos é aquilo. Os MAPs explicam do que se trata e o sujeito diz “se é um pedófilo que escreveu, é melhor não ler.” Se ele tivesse que debater sobre o livro, partiria do pressuposto de que o autor está errado sem ter lido o que está escrito. Mas com que autoridade pode uma pessoa falar daquilo que nunca leu? É como odiar Daikatana. É fácil achar alguém que odeie Daikatana, mas é difícil achar quem tenha jogado Daikatana.
O fato de que a Bíblia Sagrada ora se manifesta de forma literal e ora de forma metafórica é explorado por aqueles que a usam pra justificar seu ódio. Ninguém é perfeito.
Como dito antes, a Bíblia Sagrada se manifesta de forma literal e também de forma metafórica, mas nem sempre está claro quando ocorre essa transição. Isso é explorado por líderes religiosos que querem usar a Bíblia pra justificar ações condenadas pela própria Bíblia. É assim que tem gente que se diz pró-Deus e pró-arma sem nenhum peso na consciência. “Amor aos inimigos é metafórico!”. Ah, vá!
Alguém poderia argumentar que o amor aos inimigos tem que ser metafórico, porque Deus odeia o pecado. Eu não posso odiar nem os pecadores? Não. Afinal, não há homem que não peque. Isso inclui você. Isso inclui Davi (que cometeu adultério) e Salomão (que cometeu idolatria). Você odeia essas pessoas? Ninguém é perfeito. Usar o fato de que existem pecadores como desculpa pra exercer seu ódio é adicionar ao pecado da ira o da hipocrisia. É, portanto, pecar duas vezes.
A mentira contada de forma prazerosa, clara e convincente é mais facilmente aceita do que uma verdade dita de forma chata, difícil e desagradável.
O Amos Yee fez um vídeo uma vez descendo o cacete em gente que escreve como eu. O pior é que eu concordo com o que ele disse. Eu escrevo de forma demasiado técnica e obscura pra população geral. Isso torna os meus textos chatos pra cacete. Ninguém tá a fim de ler um texto chato ou incompreensível. Assim, mesmo quando eu falo algo que eu considero verdade, eu não sou ouvido porque eu escrevo, muitas vezes (e certamente não agora), como acadêmico. Se fosse pra eu escrever como acadêmico, eu deveria escrever um livro. Se eu escrevo na Internet, onde qualquer um pode ler, eu não deveria falar de forma mais simples?
É porque qualquer um pode ler o que é postado na Internet que os caras que criam notícias falsas se esforçam pra escrever em um nível que pessoas leigas compreendam. Porque assim atingem mais pessoas. É impossível que todas elas reconheçam que o que o cara tá falando é mentira. Assim, sempre terá quem acredite. Se as pessoas que falam a verdade não se esforçarem em escrever e falar de forma clara, atraente e cativante, a verdade sempre estará atrás da mentira. Por isso que eu tô tentando mudar a forma como eu escrevo…
A missão de quem discursa é tríplice: instruir (pela exposição justa da verdade), agradar (pelo uso prazeroso das palavras) e convencer (pela utilidade do que é dito). A verdade deve ser compreensível, apreciável e convincente. O estilo deve mudar ao longo do texto conforme a necessidade.
Ao escrever um texto ou discursar pra uma plateia, o sujeito deve ter em mente que ele tem três objetivos. O primeiro é falar de forma suficientemente clara pra que a audiência saiba o que ele tá dizendo e o entenda. É o tipo de objetivo que ninguém atinge num seminário de Hegel. Se a pessoa não entende o que você tá dizendo, ela não estará disposta a gastar do próprio tempo pra ouvir você. O segundo objetivo é manter a atenção da pessoa. Na época de Agostinho, os oradores faziam isso com o floreio, com a fala bonita, com palavras poéticas e coisa e tal. Hoje, a gente acha isso bem chato. Há formas melhores hoje de manter a atenção do público. O humor, por exemplo. Marx, em sua Ideologia Alemã, frequentemente usa piadas pra manter a atenção do leitor. E, realmente, se eu tiver que ler um tratado de setecentas páginas sobre economia política, é melhor que eu seja, pelo menos, capaz de rir enquanto leio. Vai ver é por isso que os Parerga e Paralipomena, do Schopenhauer, são mais populares que O Mundo Como Vontade e Representação, do mesmo autor. É que os Parerga parecem um livro de piadas escritos pelo Jair Bolsonaro, se este tivesse dois neurônios funcionais. É tão engraçado quanto politicamente incorreto.
O terceiro objetivo é convencer o sujeito que lê o livro ou ouve o discurso a agir da forma que você gostaria que ele agisse, operando, assim, mudanças na sociedade. Esse objetivo é o que eu menos vejo ser cumprido, mas que eu me esforço como um cão pra cumprir. Porque não adianta uma pessoa saber a verdade sobre o que tá acontecendo e não ser capaz de agir sobre ela. O campeão nessa categoria é o Leonardo Stoppa, que apresenta o Leo ao Quadrado com o Leonardo Attuch, na TV 247. Ele diz que o Brasil não tem mais democracia, que a esquerda não tem unidade, entre outras coisas com as quais eu concordo. Mas ele não dá nenhuma pista, nenhuma sugestão do que fazer em relação a isso. Por isso parei de assistir. Por isso concordo com quem diz que ele presta um disserviço à esquerda brasileira. Ao ver tais problemas de tal magnitude diante de nós, esperamos as armas com as quais lutaremos. Quando essas armas não nos são dadas, isso não é desesperador? Não é paralisante? A pessoa nessas condições se sente derrotada e se resigna.
Quando eu escrevi Sobre Estupro de Vulnerável, disponível aqui, eu me esforcei pra dar dicas a todos os cidadãos que leem o trabalho, pra que cada pessoa possa se mobilizar, mesmo que minimamente, em direção à reforma da idade de consentimento. Então, quando escrever um livro ou fizer um discurso, você tem que dizer o que a audiência pode fazer em relação ao problema que está sendo exposto. O discurso que expõe uma verdade, mas não diz à pessoa o que fazer com a verdade, é um discurso derrotado. Fazer com que a pessoa mude seu comportamento é a vitória do discurso. Agostinho recomenda o apelo às emoções do ouvinte pra mais facilmente alcançar esse objetivo.
Diante desses três objetivos, o autor do texto ou do discurso deve mudar seu estilo conforme a necessidade do momento. Um bom texto alcança os três objetivos, mas ele não precisa usar os três estilos de discurso ao mesmo tempo a todo momento.
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