Pedra, Papel e Tesoura

31 de março de 2022

Essencial de Agostinho.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, , — Yure @ 18:22
Talvez excessivamente branco pra um cara que nasceu na África.

Agostinho! Um dos meus filósofos favoritos. Extremamente produtivo, escreveu mais de trezentos textos entre religiosos e filosóficos. Se bem que seu pensamento filosófico sempre esteve muito atrelado à religião católica, o que é compreensível.

Agostinho teve uma infância normal pra época, o que quer dizer que ele apanhava dos professores por brincar na aula. Na idade adulta, ele reprovou os professores que o bateram, óbvio, antecipando em um bom tempo a tendência moderna de banir das escolas a disciplina física. O’Carroll ficaria orgulhoso.

Já na adolescência, Agostinho gostava de sair de madrugada com outros adolescentes tão desocupados como ele pra fazer rolezinhos medievais, o que envolvia roubar pêras (mais sobre isso em breve).

Agostinho escreveu sobre vários temas. Eu fiz anotações sobre alguns textos dele e as publiquei aqui. Lendo as anotações, vemos que Agostinho escreveu sobre filosofia, antropologia filosófica, metafísica, ética, teoria do conhecimento, entre outros. Neste texto, vamos nos focar em apenas três coisas: sua teoria cronológica (a natureza do tempo), a substancialidade do mal e a condição humana.

O que é o tempo?

Pergunta desconfortável essa. Agostinho entende o tempo como parte da criação, isto é, o tempo não existia antes que Deus o criasse. Assim, seria ilógico perguntar o que Deus fazia antes de criar suas criaturas: se o tempo é uma das criaturas, então não se pode falar de “antes” do tempo ser criado, uma vez que o conceito de “antes” depende do de “tempo”.

Assim, se o tempo é uma das criações de Deus, segue-se que não havia “antes” da criação. Mas, pois bem, voltemos à pergunta principal: o que é o tempo. Agostinho afirma que o tempo é uma daquelas coisas que todo o mundo sabe o que é, mas que não é fácil colocar em palavras. Mas ele vai tentar assim mesmo: pense no tempo como uma espécie de “régua mental” usada para medir a distância entre dois momentos, em vez de dois objetos ou dois locais. Quando você percebe algo, você começa a “medir” e pára de medir ao perceber outra coisa de interesse. Hoje chamamos isso de tempo psicológico, em oposição ao tempo ontológico.

Agostinho afirma que somente o presente existe: o passado e o futuro, por sua natureza (o que não existe mais e o que ainda não existe) não podem ter existência objetiva. Então, pode esquecer seus planos de viajar pro passado. Passado e futuro têm apenas existência subjetiva, como memória e esperança. Assim, passado e futuro só existem na sua cabeça. Fora de nós, só o presente existe.

Origem do mal.

Fonte: https://www.pinterest.com/furikusho/skulls/ .

Todo o mundo sabe que Agostinho era cristão (católico, mais especificamente). Isso quer dizer que ele acreditava em um Deus bom e todopoderoso. Se Deus é bom e todopoderoso, qual seria a origem do mal? Porque o mal existe, certo? Deus teria criado o mal? Se o criou, certamente foi de propósito.

Agostinho tenta sair dessa de um jeito inusitado: o mal é como a escuridão ou o silêncio, isto é, um estado de ausência. A escuridão é um espaço vazio de luz. Então, o que existe é a luz, não a escuridão, que só ocorre quando a luz se vai. Da mesma forma, o silêncio é um espaço vazio de som. Tanto o silêncio quanto a escuridão são ausências e, portanto, não têm substância. Assim é o mal: o mal é a ausência de bem.

Mas o que leva o bem a ser afastado de determinado lugar, pessoa ou situação? O mau uso do livre-arbítrio. O ser humano escolhe rejeitar o bem. Mas isso nos leva a outra pergunta: por que Deus permite isso? Bom, por que Deus nos deu liberdade? A liberdade é um bem e só vai discordar disso quem tem mentalidade de escravo. Então, a criação seria menos perfeita sem criaturas livres que lha dessem um caráter autônomo.

Para ilustrar (como fazem as testemunhas de Jeová): suponhamos que eu te dê cinquenta reais e você vai e compra crack com o dinheiro. A culpa é minha? Do dinheiro? Ou sua? Assim é a liberdade: ela é um bem e não deixa de ser um bem só porque há quem a use de forma errada. Então, Deus não tem culpa pela maldade humana, se a liberdade é um bem. O responsável pela maldade é quem a comete. Ideias tão próximas do existencialismo pra um cristão!

Existem três tipos de males, sendo dois relativos e um literal, segundo Agostinho: natural, voluntário e corretivo. Somente o segundo tipo é um mal em sentido literal. Os outros dois só são males de determinado ponto de vista. O mal natural é apenas a natureza funcionando como deveria (erupções vulcânicas, tornados, enchentes, tudo isso não pode ser chamado literalmente de “males”, pois a natureza age sem moral). Já o mal corretivo (punições por ações ruins) só são males pra quem recebe a correção, mas são benéficas pra sociedade como um todo. Assim, só é mal, em sentido literal, aquele que escolhemos praticar. Se mal é ausência de bem, então somos maus quando deliberadamente afastamos o bem de nós ou dos outros.

Por que escolhemos praticar o mal?

Agostinho, na adolescência, gostava de sair de madrugada pra fazer rolezinhos medievais com adolescentes tão desocupados como ele. Em um desses rolezinhos, ele e seus amigos foram roubar pêras. Refletindo sobre este assunto na idade aduta, Agostinho se pergunta por que ele iria querer roubar pêras, quando ele as tinha em maior número, melhor qualidade e compradas com dinheiro lícito? É porque roubar é interessante. Mas por quê?

Para Agostinho, o pecado original nos leva a derivar prazer gratuito do desafio à autoridade. A maior autoridade é Deus. Além disso, ele não queria passar vergonha: seus amigos também roubaram as pêras e ele, se não o fizesse, seria tido em menos estima entre seus amigos.

Com isso vemos que o ser humano não precisa de uma boa razão pra fazer o mal aos outros, argumento retomado por Thomas Hobbes, o qual sustenta que o ser humano é, por natureza, antissocial. Assim, muitas vezes escolhemos praticar o mal apenas porque isso nos dá prazer, não por alguma utilidade a longo prazo nem por necessidade. Trágico, não é?

Recomendações.

Das ideias de Agostinho, eu só falei das que eu sei com maior solidez. Ele escreveu mais de trezentos textos e discorrer sobre todas elas requereria, no mínimo, uns seis livros.

O fato de que seres humanos não precisam de boas razões pra praticar o mal é o que deveria nos levar a pensar em meios preventivos, não apenas corretivos, na educação de seres humanos. Tome o exemplo das nossas leis: nenhuma delas tem poder contra intenções, só contra crimes consumados, o que é uma coisa boa pro tipo de medida que elas são. Mas precisamos lembrar que a pessoa que sente que pode se safar e não ser descoberta cometerá um crime, pra bem ou pra mal. Geralmente pra mal. Quem previne é a educação. Mas que tipo de educação? Não é a biologia, a química ou a física que vai ensinar a pessoa a ser alguém íntegro, mas as ciências humanas. Aí se tira fundos da educação, tira a autonomia das ciências humanas e o que acontece? Que geração estamos formando? Triste que nosso governo não pensa no futuro.

Mas a ideia de que a vontade de fazer o mal é comum aos seres humanos deveria servir pra nos aproximar. Ter vontades ruins é normal e você só se torna uma pessoa ruim se você praticar atos ruins. Então, se você tem vontade de fazer algo que sabe que não deveria fazer, saiba que eu também passo pela mesma coisa e que todo o mundo também passou por isso ou ainda vai passar. Faz parte da natureza humana. Você só precisa sentir culpa por seus atos, nunca por suas vontades, especialmente porque você as não escolhe.

27 de dezembro de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 10.

Filed under: Livros, Saúde e bem-estar — Tags:, , — Yure @ 10:26

Continuando minha leitura da obra de Agostinho, resolvi ler a coleção De Excidio Vrbis, e Outros Sermões Sobre a Queda de Roma. É um livro curtinho, que compila alguns textos que Agostinho escreveu e proferiu no ano seguinte ao saque de Roma pelas tropas de Alarico. Embora sejam textos de natureza cristã, como é de natureza cristã toda a obra de Agostinho, esses sermões podem ser úteis pra melhorar nossa habilidade de resistir ao sofrimento.

Há muito o que falar, em vários sentidos, sobre a queda de Roma. Nada de natureza humana dura pra sempre: nem as civilizações e nem o próprio homem. Dizer a um povo que sua nação não terá fim é adulá-lo. Não se apegue ao que pode mudar, desaparecer ou morrer.

Por que foi que Roma caiu? Uma combinação de fatores: qualidade e quantidade de soldados, fome e doenças entre a população, incompetência administrativa e declínio econômico. É possível olhar pra essa história a partir de vários ângulos. Agostinho preferiu olhar pelo ângulo religioso e materialmente fatalista: não há nenhuma construção humana que dure pra sempre. Assim, a “Roma eterna” não passa de um mito. É como Hobbes disse: assim como o corpo humano declina por razões internas (doenças e velhice) ou externas (ferimentos), também corpos políticos nascem pelo contrato social, crescem com a prosperidade e podem morrer pela guerra ou sedição. Seu Leviatã é um manual de perpetuação do tempo de vida de um governo, mas eu ainda estou pra ver esse manual funcionar. Pra Agostinho, somente coisas espirituais são eternas. Então não podemos esperar que a hegemonia de uma nação dure pra sempre. De um jeito ou de outro, por esta ou aquela razão, Roma cairia. Ponto final. É o desígnio divino pra matéria. Tudo neste mundo passa. Negar isso é mentir. Por causa disso, não é uma boa ideia se apegar ao país ou a qualquer coisa que possa mudar (amigos e amantes, os quais podem se tornar pessoas diferentes daquelas às quais você se afeiçoou) ou acabar (riqueza, fama, entre outros).

A nação não é o país (território), mas o povo. A nação não morre se os cidadãos não morrem.

Muitos cristãos da época estavam muito abatidos, julgando assistir o fim de sua nação. Mas será que não estavam a confundir as coisas? Pra Agostinho, a nação não é o país, não é o território, mas o povo. Mesmo que os brasileiros sejam dispersados pelo mundo, enquanto mantiverem contato entre si e mantiverem vivas suas tradições (tarefa dificílima pra um povo tão culturalmente colonizado), a nação brasileira continuará viva, mesmo que o país chamado Brasil afunde no Atlântico. Assim é com Roma, diz Agostinho: enquanto houver romanos, a nação romana permanece, mesmo que Roma seja saqueada, tomada, destruída, queimada, o que quer que seja. Se os cidadãos vivem, vive também a nação.

O sofrimento é oportunidade de autoaperfeiçoamento, se você tiver humildade, paciência, caridade e esperança. Pensar no sofrimento presente não é tão importante quanto pensar nas ações presentes. Há um lado bom no sofrimento.

Agostinho sugere que se veja o sofrimento como um teste. O sofrimento, quando suportado até o fim, leva o homem a um estado de maior aprendizado. Se você souber lidar com o sofrimento, sairá dele melhor do que quando entrou. Palavras bastante nietzscheanas pra um santo católico. Suportar construtivamente o sofrimento requer quatro virtudes, diz Agostinho: a humildade, a paciência, a caridade e a esperança. Pacas (pessoas atraídas por crianças e adolescentes), ou MAPs (minor-attracted people), prestem atenção.

A humildade é o oposto do orgulho. Quando o orgulhoso sofre, ele sofre duas vezes mais que o humilde. Porque o orgulhoso fica pensando coisas como “eu sou bom demais pra passar por isso, eu não mereço isso.” Quando você está sofrendo tanto quanto o outro, você precisa se identificar com ele, não pensar que você é melhor que ele. Do contrário, você sofrerá tanto as penas que te se são impostas quanto aquelas que você se impõe, ao se comparar com o outro e ver que você, que se acha tão superior, está sofrendo tanto quanto alguém considerado inferior. Todos são iguais no sofrimento. O sofrimento não é lugar pra orgulho. A paciência é a habilidade de tolerar o sofrimento. Agostinho sugere que o cristão lembre que todo sofrimento neste mundo está nos planos divinos. Deus sabe o que é melhor, não é? Então tolere. Essa provação, ele diz, é uma oportunidade de purificação. Claro que isso não faz sentido pra quem não é cristão, mas a paciência durante o sofrimento é algo universalmente aceito como positivo. Isso não quer dizer abandonar as chances de encerrar o sofrimento sentido, mas, sim, que você deve encontrar meios psicológicos de tornar o sofrimento tolerável, ou você será esmagado sob o peso da dor. Um bom jeito é não pensar tanto no quanto você sofre, mas em como você age em relação ao sofrimento. Suas ações podem aumentar ou suavizar o impacto das penas sentidas.

Já a virtude da caridade só faz sentido se o sofrimento é comunitário. Se cada pessoa que participa do sofrimento tenta tornar tal sofrimento mais ameno ao próximo, os laços de amizade entre os que sofrem serão fortalecidos e os mais fracos precisarão de menos paciência pra tolerar as penas. Faça ao outro o que você gostaria que fosse feito a você. Se ambos estão sofrendo do mesmo jeito, fica mais fácil identificar do que o próximo precisa. Por último, tenha esperança. Diz Agostinho que a natureza da matéria e de tudo aquilo que é humano é a finitude. Se assim é, ninguém sofre pra sempre, nenhum sofrimento neste mundo é eterno. Tendo essas coisas em mente (humildade, paciência, caridade e esperança), fica mais fácil encarar o sofrimento como ocasião de aprendizado e de aperfeiçoamento.

As questões dos próprios fiéis são tão importantes quanto as objeções dos infiéis.

Não apenas quando se fala de igrejas, mas também de causas sociais e outras mobilizações humanas, é preciso entender que manter os indivíduos no grupo é tão importante quanto agregar ao grupo novos integrantes. No caso dos MAPs que se organizam por mudança social, existem aqueles que não estão tão firmes na causa e têm dúvidas sobre estarem ou não fazendo a coisa certa. Se essas dúvidas não forem resolvidas, eles podem deixar o grupo e o potencial da causa será menor. Assim, resolver as dúvidas dos elos fracos é tão importante quanto bater boca com anti no Twitter. Aliás, mais importante.

Não tome um aviso como causa de preocupação, mas como causa de prevenção.

Melhor do que tolerar o sofrimento é não ter que passar por ele. Se você for avisado de que algo ruim está em vias de acontecer, você não deve entrar em pânico, mas pensar em como evitar esse evento ruim ou minimizar seus impactos. É o que o Bolsonaro deveria ter feito. Mas, no caso dele, nem em pânico ele entrou. Ele preferiu abraçar o perigo.

Quando alguém criticar sua posição sobre algo, mostre a essa pessoa exemplos de nações que adotaram sua posição e que prosperam.

Esse conselho é válido pra qualquer pessoa que defenda uma ideia impopular, como o socialismo ou reformas legais. Pegue exemplos de onde essa ideia funcionou e esfregue na cara do seu detrator. No caso de Agostinho, ao mostrar que o cristianismo não é a causa da queda do Império Romano, ele apontou pra Constantinopla, uma nação cristã que estava muito bem de vida na época.

Se você se diz cristão, deveria aprender da história do rico e do Lázaro. Não é pecado ser rico. É natural não querer fazer o que é certo, mas é errado deixar de fazer o que é certo.

Este conselho eu peguei mais porque a população evangélica no meu país está aumentando e, com isso, a popularidade da teologia da prosperidade. O cristão rico tem um compromisso com os pobres. Na Bíblia Sagrada, no evangelho de Lucas, consta a história do rico que se recusou a alimentar Lázaro e foi parar no inferno, enquanto Lázaro foi pra perto de Abraão. Aí o rico pede pra Abraão que alguém dentre os mortos vá visitar a família dele pra avisar o que acontece com os que concentram riqueza, mesmo diante de quem precisa de dinheiro mais do que eles, mas Abraão diz que não tem condições de alguém que desconsidera a Lei e os Profetas ouvir a alguém que ressuscitasse dos mortos. Isso é até profético: se Jesus voltasse pra Terra pra reafirmar o compromisso cristão com os pobres, ele não seria crido por aqueles que não leem os quatro evangelhos que carregam debaixo do braço pra toda parte. Não é que a riqueza seja pecado, mas é certamente injusto que você, sendo tão rico, não seja capaz de abrir sua mão pra quem precisa. É verdade, você não quer partilhar o que você ralou pra conseguir, mas é a coisa certa a ser feita. Ninguém disse que se salvar é fácil.

Não prometa algo que você não pode cumprir.

Agostinho comenta o mau exemplo de Pedro, o qual disse que morreria com Jesus e, em vez disso, negou que o conhecia quando Jesus foi capturado. Você não pode prometer o que você não pode cumprir. Embora Agostinho fale desse caso em sentido mais místico, Søren Kierkegaard aponta outra razão pra não fazer promessas por impulso. Em seu Diário de um Sedutor, Kierkegaard diz que você não deve impedir uma pessoa que se apaixonou por você de fazer promessas que você sabe que não serão cumpridas, porque o amante, quando quebra a promessa, fica dependente do seu perdão. Essa é uma ocasião propícia à manipulação.

Se você ama algo, não aja contra os interesses daquilo que você ama.

Agostinho fala isso ao saber que muitos católicos, a fim de defender a igreja, impediam que donatistas arrependidos se juntassem novamente ao catolicismo. Isso é agir contra os interesses da igreja, mesmo que tal atitude seja motivada por zelo à igreja. O mesmo é válido pra posições políticas ou causas sociais.

8 de dezembro de 2020

4 de novembro de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 6.

Filed under: Livros — Tags:, — Yure @ 17:43

Continuando minha leitura da obra de Agostinho, trato agora de alguns conselhos que eu achei nas Confissões e no De Magistro. Eu já falei do que se trata este último num texto sobre estupro. Confissões é uma reflexão filosófica autobiográfica do Agostinho. Ele lembra sua vida e reflete filosoficamente sobre ela. Já o De Magistro é um diálogo entre Agostinho e seu filho, Adeodato, sobre a relação entre as palavras e as coisas às quais as palavras se referem.

Nenhuma criança é inocente.

Refletindo sobre sua infância e olhando pra infância de outros, Agostinho questiona a ideia de que crianças são inocentes. Crianças sentem inveja, têm ânsia de domínio, são agressivas e, eu adicionaria, até taradas. Isso acontece porque ninguém é inocente e ninguém é inocente por causa do pecado original. Ninguém é perfeito. Logo, a chamada “pureza infantil” é um mito. A criança não aprende a fazer coisas que nós, adultos, consideramos erradas porque ela já nasce predisposta a essas coisas. Ela aprende a não fazer, com a educação que recebe do seu meio. De um ponto de vista escritural, não é possível sustentar a inocência infantil com a doutrina do pecado original. Ou a criança é pecadora desde o nascimento ou ela é inocente. Não é possível dizer as duas coisas.

Como os adultos dão muito valor às inutilidades, acaba que muita coisa inútil é ensinada na escola.

A escola, a bem da verdade, é um dispositivo ideológico a serviço do estado. Isso não é anormal. Usamos a educação pública pra ensinar os valores vigentes às gerações seguintes. O problema é que isso abre a possibilidade de que a escola ensine muita besteira que não vale a pena ensinar simplesmente porque essas são besteiras que os adultos valorizam.

Quando uma pessoa inteligente se entrega ao estudo de coisas falsas, você não precisa corrigi-la.

Vamos supor que alguém que você considere muito sábio ou inteligente comece a estudar terraplanismo ou ativismo antivacina. Você começa a ficar preocupado com a possibilidade de ele se tornar um negacionista. Ora, se acalme; se ele for realmente uma pessoa de bom senso, ele próprio verá as incoerências em tal posição e se ajeitará no futuro. É como o bolsonarismo. Muitas pessoas de boa fé foram levadas a votar no Bolsonaro. A maioria já se arrependeu.

Uma teoria não aumenta seu valor se for exposta de maneira mais bonita. Quem cai nas mãos de um mau médico, passa a evitar todos os médicos, inclusive os bons, por medo de repetir o trauma.

Um truque muito utilizado por propagadores de notícias falsas é fazer uma pessoa que parece profissional dizer as besteiras com ar científico. Isso porque temos a tendência a julgar as pessoas pela sua aparência e um argumento pela pessoa que o profere. Assim, se você aparece de jaleco, falando em tom científico que “covid-19 é um sistema”, muita gente vai acreditar em você. Mas isso não torna verdade o que você está dizendo. Você continua mentindo, só que você tá mentindo de um jeito bonito. Isso também é válido pra teorias científicas fracas.

Infelizmente, quando uma pessoa é enganada de muitos jeitos por diferentes pessoas, ela cai num ceticismo profundo. Temendo ser enganada de novo, passa a não acreditar mais em nada. Como a pessoa que já passou por tratamentos com diversos médicos e continua doente logo se desespera da medicina.

A alegria do bêbado que comprou sua bebida com dinheiro limpo é melhor que a alegria do sóbrio corrupto.

O bêbado que comprou legalmente sua bebida é sobrepujado por uma lícita alegria e uma ressaca que depois passa. Mas a pessoa que adquire seu dinheiro por meios imorais ou mesmo ilegais tem muito com o que se preocupar. Essa alegria é inferior à alegria do bêbado que trabalhou honestamente pra comprar a cerveja que o embriaga.

A mulher dificulta a ida do homem a Deus.

Não é tanto a mulher que prejudica a ascenção do homem ao divino, mas o desejo por ela. O cristianismo tem regras sexuais bem rígidas. Se devotar completamente à religião requer sacrifícios de natureza sexual, os quais muitos não estão dispostos a fazer. Por isso, Agostinho, antes de se converter, ficava sempre deixando sua conversão pra depois, procrastinando-a, porque não queria parar de curtir as comadres.

Uma das forças que faz muitos se converterem à religião é a falta de sentido da vida.

Não se fala muito disso, mas acho que todo cristão e até mesmo todos os ateus deveriam se perguntar isso uma vez na vida: o que leva este ou aquele sujeito a se converter? Na época de Agostinho, e até hoje, uma dessas razões é a falta de sentido da vida. Pra quê ser saudável, sábio, rico, feliz, se a gente eventualmente vai morrer? A pessoa que pensa dessa forma terá em pouca monta a vida material. Ela procurará uma vida espiritual, uma esperança eterna, e só poderá encontrá-la de maneira mística. É uma razão legítima pra se converter. Infelizmente, não se muito disso hoje. Parece que hoje muita gente vai pra igreja esperando ficar rico. Só me pergunto como ficar rico dando dinheiro a um sacerdote, em vez de investir o dinheiro num negócio.

Em vez de alimentar contendas entre os homens, você deveria abrandá-las.

Qualquer causa comum deve ser orientada por este princípio. Deixemos nossas diferenças de lado e vamos nos focar em como alcançar nosso objetivo comum da melhor maneira possível. Se surgirem contendas, é preciso suprimi-las até que tenhamos paz novamente. Se isso não for possível, pelo menos não alimente as contendas, pra que elas não se espalhem e mantenham-se em nível pessoal.

A memória retém informação sobre coisas que nos chegam ao espírito, mesmo que não tenham chegado lá através dos sentidos.

Existem coisas armazenadas em nossa memória sem que as tenhamos visto, ouvido ou sentido. É o caso da ideia que fazemos do pensamento. Não é possível apreender sensorialmente nossos pensamentos. O mesmo pode ser dito de outros conceitos metafísicos, como a justiça. Ninguém vê a justiça. Vemos atos justos, mas não a justiça em si. E, no entanto, temos em nossa memória o conceito de justiça. Por onde entrou? É que, além das coisas materiais, existem as inteligíveis, que são captadas pela razão, em vez dos sentidos.

É mais difícil moderar a alimentação do que moderar o sexo.

Pra evitar fazer sexo demais, basta evitar gente gostosa ou outros gatilhos dessa natureza. Mas, diferente do sexo, a comida é necessária pra viver. Você não tem escolha, senão se expor à comida. E, ao se expor à comida, você é tentado a comer o que não deve ou a comer demais. Além disso, no sexo, você tem que cortejar a pessoa e fazê-la se interessar por você. No caso da comida, basta preparar ou pagar alguém pra prepará-la pra você. Assim, há menos impedimentos à alimentação do que ao sexo. Por isso, é mais difícil se livrar de maus hábitos alimentares do que de maus hábitos sexuais.

Melhor ser escarnecido por causa da verdade do que louvado por causa da mentira.

A mentira sempre acaba se voltando contra nós. O bem-estar da humanidade está muito atrelado à verdade. Quando acreditamos numa mentira ou participamos dela pra termos louvor entre os que nela acreditam, cedo ou tarde pagamos por isso. E, quando isso acontece, os que estiveram do lado da verdade esfregarão na nossa cara que estávamos errados. E ainda dirão “bem feito.”

Passado e futuro não têm existência objetiva, mas apenas subjetiva, como memória e esperança.

Esta é a reflexão mais interessante das Confissões, que fala sobre a passagem do tempo. O presente não tem duração determinada e só sabemos de sua existência por causa da percepção instantânea. O passado, se já passou, não existe mais. Já o futuro, se ainda não veio, não existe ainda. Mas podemos acessar ambos no presente: o passado como memória e o futuro como antecipação. Tendo como referência a percepção presente, a memória e a expectativa, é possível medir o tempo, calculando a “distância” entre um momento e outro. É como se a percepção do tempo fosse uma régua mental, que usamos pra medir a distância entre dois acontecimentos (pontos no tempo), tal como usamos medições espaciais pra calcular a distância entre dois pontos no espaço.

Quando houver duas interpretações distintas, mas igualmente plausíveis, da lei mosaica, deve-se dar preferência à interpretação que melhor atinge o objetivo da caridade, pois o amor a Deus e o amor ao próximo são o objetivo de toda lei.

Jesus disse que o objetivo da lei de Moisés é assegurar que cada pessoa fará aos outros aquilo que gostaria que fosse feito a si. Se assim é, então, ao interpretarmos a lei de Moisés, temos que dar preferência a interpretações que melhor se adaptam a esse princípio, na medida em que o texto abre possibilidade a interpretações diferentes.

Duas interpretações para um mesmo texto podem estar ambas corretas, sendo complementares.

Se duas pessoas concluem coisas diferentes em relação ao mesmo texto, é possível ficar com ambas as interpretações se elas não forem antagônicas. Aliás, se elas não forem antagônicas, podem ser complementares. Tratá-las dessa forma pode ajudar a esclarecer outros pontos obscuros do texto.

É mais fácil amar uma pessoa tranquila. Tal como o médico tolera os pacientes indisciplinados, também nós temos que tolerar os que ouvem a verdade e se revoltam contra ela.

Eu peguei este conselho por causa dos “pacas” (pessoas atraídas por crianças ou adolescentes) ou “MAPs” (minor-attracted people). Se os MAPs mantiverem uma postura tranquila, não combativa, mas sem abrir mão daquilo que são ou no que acreditam, será mais fácil conseguir atingir a tolerância tão sonhada. Porque é mais fácil amar uma pessoa que não sai armada atrás de você. Isso não é uma postura de submissão, mas de defesa ativa: esquive-se dos insultos, ignore os que não estão abertos ao diálogo e contra-argumente educadamente quando a oportunidade surgir. Mas não desça ao nível deles, sendo rude, atacando os antis covardemente ou fazendo ameaças.

Você não deve sentir raiva dos antis, mas pena, compaixão. Tenha isso em mente e talvez você até tenha mais paz consigo próprio, além de parecer mais civilizado que seu oponente.

É possível comunicar ideias sem o uso de palavras, usando outros sinais ou mostrando a própria coisa cuja ideia queremos comunicar.

Se palavras fossem necessárias pra comunicar ideias, como os surdos se comunicariam? Eles se comunicam por gestos. Além disso, quando perguntado sobre algo, você pode mostrar à pessoa aquilo sobre que ela pergunta. Palavras nem sempre são necessárias.

As palavras são sinais das coisas que significam, não necessariamente as próprias coisas significadas. O conhecimento das coisas é superior ao conhecimento das palavras usadas pra significá-las, entre outras coisas porque nem sempre a pessoa que usa a palavra é honesta ou sabe o que diz.

Não se deve confundir a palavra com a coisa a que a palavra se refere. Esta reflexão do De Magistro me suscitou interesse por causa do termo estupro de vulnerável. Em direito, usamos este termo pra descrever qualquer ato libidinoso envolvendo, pelo menos, um participante que não tenha ainda catorze anos, com ou sem o consentimento dele. Mas é apenas um termo. Não é porque usamos tal termo (“estupro” de vulnerável) que devemos presumir que houve violência, já que o crime pode ocorrer mesmo com consentimento entre as partes. Novamente, a palavra não é a coisa. É apenas um termo jurídico e, se você ler a definição do termo, você vê que não há necessidade nem de força, nem de dano, nem de penetração pra que algo seja juridicamente considerado estupro de vulnerável.

Por causa disso, o conhecimento do caso concreto é mais valioso do que o conhecimento do termo usado pra descrevê-lo. Quando dois adolescentes de doze anos experimentam sexualmente de mútuo acordo, sem penetração, estão cometendo ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável. Se você só tivesse em mãos o termo técnico do que eles fizeram (“ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável”), você pensaria que um dos dois foi violentamente forçado a participar, o que não aconteceu.

14 de outubro de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 5.

Filed under: Livros, Saúde e bem-estar — Tags:, , — Yure @ 11:29

Desta vez, resolvi pegar A Virgindade Consagrada. Eu lembro que, uma vez, quando eu disse que era “virgem”, meu amigo mais velho disse que não é bom que o homem use esse termo pra se descrever, porque, originalmente, “virgem” era um termo exclusivamente feminino. E, de fato, lendo este livro, eu vejo que ele é focado na mulher. O termo usado pros homens é “celibatário”, mas, hoje, esse termo carrega uma conotação absolutamente religiosa.

Embora seja um livro sobre um tema mais caro à religião, ele tem alguns conselhos laicos também. Como eu não sou católico (eu acho) nem evangélico, eu temo que algumas das minhas interpretações do que Agostinho escreveu não sejam muito ortodoxas…

A menos que você seja religioso, a virgindade não tem valor. Com o declínio da religião, declina também o valor da virgindade.

Alguém poderia dizer: se você transar, você se expõe ao risco de doenças sexualmente transmissíveis. Mas, hoje, a maioria das DSTs tem tratamento e até cura. Além disso, meios de prevenção a essas doenças existem e são muito acessíveis. Alguém poderia dizer: mas sexo vicia! Algo só pode ser considerado vício se prejudica a sua vida em algum grau. “Vício” é mau hábito. Sexo faz bem, diferente do tabagismo ou do alcoolismo. Se você é sexualmente ativo, mas não sofre como consequência disso, não se pode dizer que você é um viciado. Alguém poderia dizer: e quanto aos filhos ou à pensão? Ambos os cenários podem ser evitados com o uso de preservativos ou da pílula. Segue-se que sexo é inócuo em nossos tempos. Se você teme problemas de ordem legal, arrume um advogado antes de transar. Então, pra quê se manter virgem? Só há uma razão: se você for religioso e deseja consagrar sua virgindade a Deus. Qualquer razão fora essa é insustentável. Por causa disso, o valor da virgindade diminui quanto menos religiosa é uma nação.

Embora a virgem não deva se sentir superior à casada, é preciso aceitar que a família natural tem pouca importância no cristianismo. A menos que você seja cristão e se sinta desconfortável com seu desejo sexual, não vale a pena casar (pois o cristão só pode transar com seu cônjuge). Abstinência em excesso adoece.

É muito estranho que existam tantos cristãos que vejam na família um valor fundamental. É verdade, a Bíblia Sagrada diz que devemos honrar nosso pai e nossa mãe (Êxodo 20:12), preceito mantido no Novo Testamento (Efésios 6:2). Mas acaba aí. Jesus disse categoricamente que ele veio trazer, não a paz, mas a espada, pois as famílias se dividiriam por causa do nome dele (Mateus 10:34-36). E ele também diz: quem ama a seu pai ou sua mãe mais do que a ele, não é digno dele (Mateus 10:37). Jesus também confessa que, dependendo da pessoa, é melhor nem casar (Mateus 19:10-12), conselho reiterado por Paulo (1 Coríntios 7:8). Além disso, ideias como a de que “somos todos irmãos” apontam mais pra criação comunal do que pra importância da família nuclear. E é porque a família nuclear tem pouca importância bíblica que o matrimônio não é tão importante assim. De um ponto de vista estritamente escritural, a pessoa só deveria se casar se não estiver se aguentando de tesão, já que o sexo deve ser colocado dentro dos limites do casamento (1 Coríntios 7:9). Aliás, pra algumas pessoas, falta de sexo pode causar sérios desvios comportamentais… Nesse caso, talvez não valesse a pena evitar o sexo ou o casamento (se a pessoa for da opinião de que só se deve transar depois de casado). A pessoa que não vê nenhum problema em morrer virgem não precisa se casar e nem construir família. Até porque, se devemos crédito ao Apocalipse de São João, a recompensa do virgem é maior (Apocalipse 14:4).

No cristianismo, a virgindade é recomendada, mas não necessária.

Óbvio. Uma religião que tivesse a abstenção sexual completa como dogma não se sustentaria, nem ideologicamente e nem pragmaticamente. Primeiro, porque o fiel se preguntaria “se assim é, porque Deus me deu desejo sexual?” e, segundo, porque a quantidade de pessoas que deixaria se seguir tal culto por não conseguir evitar buscar satisfação do desejo seria tamanha que a religião morreria por falta de adeptos.

Mesmo que todos os justos ressuscitem, alguns ressuscitarão para uma condição melhor que a dos outros.

Quando perguntado o que fazer pra herdar a vida eterna, Jesus respondeu com o decálogo (Marcos 10:17-19). Mas depois ele diz que se você, além disso, vender suas posses e dar o dinheiro aos pobres você terá um tesouro no céu (Marcos 10:21). Isso dá a entender que, mesmo quando nós estivermos lá, na vida futura, a condição de alguns será melhor que a de outros, dependendo do quanto você se sacrifica pelos outros. Assim, a observância dos mandamentos citados por Jesus é apenas o ticket de entrada. O que acontece depois da porta depende de outras ações, particularmente daquilo que você faz por aqueles que precisam da sua riqueza mais do que você. Isso põe em questão qualquer ensinamento de qualquer igreja que estimule o acúmulo de riqueza.

Deus olha também pra tudo o que você faz de bom, não somente pras suas falhas, já que ninguém é perfeito. Se ninguém é perfeito, pois não há homem que não peque, segue-se que todos deveriam ser humildes, em vez de alguns se acharem melhores que os outros. O amor possibilita o perdão dos pecados. Mesmo se você fosse capaz de ser santo, não deveria se orgulhar disso, pois a falta de humildade é pecado. Não é possível conciliar santidade e orgulho.

Se Deus só olhasse pro que fazemos de ruim, ninguém se salvaria. Além disso, agir dessa forma seria injusto. Você deveria ser o melhor possível, pedir perdão por suas falhas, mas você nunca será perfeito. E, dependendo das suas boas ações, pode ser que isso não se torne um problema. Se ninguém é perfeito e todos somos pecadores, segue-se que ninguém tem o direito de se achar melhor que os outros. Ao fazer isso, adiciona-se a todos os seus pecados também a falta de humildade. Mesmo que você fosse santo, tal erro já seria uma contaminação. Não é possível, portanto, ser “santo” e orgulhoso. Ademais, o orgulho convida o desprezo, que é um obstáculo ao exercício do amor. Alguns pontos dos quatro evangelhos parecem condicionar o perdão dos pecados à capacidade de amar (Mateus 6:15, Lucas 7:47, entre outros). Se existem falhas que você não consegue corrigir, ao menos exercite o amor, pra que você possa ser perdoado por tais falhas.

Há várias razões laicas pra não casar. Casar divide o coração do homem.

Não há necessidade de se casar hoje, a menos que você seja religioso. Tanto que eu sou a favor da abolição do casamento civil. Quem é divorciado sabe como o casamento pode ferrar você. Especialmente se você for homem. Tem as brigas, a insatisfação, os golpes, os ciúmes, depois o divórcio, perda da custódia dos filhos e a pensão. Melhor evitar. Além disso, quando o sujeito é religioso, ele precisa admitir que o casamento o distrai da busca por Deus. Paulo também fala disso: o casado está dividido entre Deus e sua mulher, enquanto que o solteiro só precisa se preocupar com Deus. Essa é uma das razões por trás do voto de castidade feito pelos padres. E isso me leva a suspeitar de igrejas que admitem qualquer pessoa como pastor, desde que o sujeito seja casado… Em um sentido laico, casar distrai também das buscas intelectuais. Um amigo meu me contou que um certo filósofo da história recente era um corno manso (aposto que também não era o único): interessado em suas pesquisas sobre filosofia, particularmente lógica, ele não tinha tempo pra passar com a mulher. Então, ele aceitava que ela o traísse (se é que se pode chamar isso de traição). Não seria melhor ele não ter casado em primeiro lugar, se não teria tempo pra esposa?

Ao ser ordenado o impossível, vá até onde conseguir.

Este conselho me lembra de uma discussão sobre a possibilidade da paz. Segundo Kant, não interessa se a paz é possível ou não: é preciso acreditar que ela seja. Mesmo que a paz seja um ideal que não possa ser alcançado, é certo que a nossa vida melhora quanto mais nos aproximamos desse ideal. Então, se algo é bom, mas impossível, ainda devemos tentar nos aproximar dele como um ideal. Afinal, mesmo que não cheguemos à perfeição, ainda sentiremos nossa condição melhorar quanto mais próximo dela chegarmos.

A continência é paz e luta. Só é possível moderar e gerenciar emoções e sentimentos, mas não extirpá-los totalmente. O instinto sexual não é nem a mais importante e nem a mais profunda tendência humana, pois o instinto de autopreservação vem em primeiro lugar. Melhor fugir da tentação do que enfrentá-la.

Esta é uma das coisas que tornam o cristianismo meio assustador pra mim. Frases construídas dessa forma, “a continência é paz e luta”, fazem parecer que o ponto principal do cristianismo é sofrer. Me dói um pouco pensar em quantos sofreram na busca do ideal da continência. Mas aí eu lembro que eles fazem isso porque julgam que vale a pena. Então, quem sou eu pra julgar, né? Então, a continência é paz porque ela permite que você rejeite a tentação, mas ainda é luta, porque você combate a tentação quando ela vem. A continência não deve ser confundida com temperança, pois temperança é não desejar o que é errado, enquanto a contiência é resistir ao desejo errado que se estabelece. A continência é mais facilmente mantida evitando fontes de tentação, porém. A força de vontade é um recurso limitado. Se você se expõe à tentação o tempo todo, você eventualmente cederá. Por isso deve ser expor a ela o mínimo possível.

Eu escrevi um pouco neste blog sobre a atração por crianças ou adolescentes e acho que esta expressão, tomada em sentido laico, descreve bem a luta dos que têm desejos sexuais de fazer o que é ilegal. Paz, por ter evitado quebrar as leis; luta, por desejar quebrar as leis. Não é digno de simpatia? Quando você sente tesão por algo, nada vai mudar isso. A sina do pedófilo é não fazer algo que viole as leis, mesmo que seu desejo por crianças nunca venha a desaparecer. E nisso ele percebe que a autopreservação tem precedência sobre a satisfação sexual, uma verdade que muitos ignoram ou esquecem, tão glorificado o sexo se tornou.

Ao decidir se abster do sexo, o filho pode não querer notificar essa decisão aos pais, por medo de desapontá-los.

Olha, eu tô com vinte e oito anos e nunca transei na vida, porque sempre tô com a cara enfiada nos livros, sejam os de filosofia, sejam os de RPG. Eu não tenho nenhuma vontade de transar com alguém… Infelizmente, quando eu falei isso pro meu pai, ele ficou muito decepcionado comigo. Disse que tinha planos, que queria conversar com minha esposa e brincar com meus filhos (claro). E… eu não quero nada disso. No máximo, eu adotaria um filho pra criar sozinho. Mas… esposa? Pra quê? Eu fiz alguma coisa de errado, pra que ele me deseje um casamento, algo que nem com ele deu certo? Aliás, nunca vi um casamento feliz na vida.

Isso é válido não apenas pra filhos que desejam se manter virgens, mas pra qualquer notificação sexual alternativa. O filho gay, por exemplo, poderá esconder isso dos pais pra não assustá-los ou desapontá-los. É o caso de um amigo meu: sendo o filho do meio de uma prole de três, ele não queria notificar sua bissexualidade aos pais, que muito queriam netos. A razão? Nenhum dos três filhos é heterossexual! Ele era a “última esperança” dos pais em ver seus genes se propagarem. Uma pena que a geração anterior ponha tantas esperanças sobre a sexualidade de seus filhos… Além disso, o garoto é bi. Quem sabe? Mesmo assim, a sensação que os pais dele têm é de que o garoto é mesmo gay e só disse que é bi pra que eles não se decepcionassem muito… Eu acabei tendo que confortá-lo nesse dia.

23 de setembro de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 4.

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Desta vez, resolvi ler o curtinho O Cuidado Devido aos Mortos. Eu já sabia mais ou menos o teor deste tratado, considerando o Agostinho diz sobre Mônica nas Confissões. Segundo Agostinho, nas Confissões, Mônica não se importava com o local onde seria sepultada, já que nenhum lugar era distante pra Deus. Então, imaginei que o O Cuidado Devido aos Mortos iria na mesma direção, a de que o sepultamento não tinha importância nenhuma. Eu estava quase completamente certo.

Se o que importa pro sujeito que morre são suas ações em vida, segue-se que o sepultamento e as honras fúnebres são mais um consolo pros vivos (na forma de memorial, por exemplo) do que uma ajuda pro defunto no pós-vida.

Não é que o sepultamento não tenha nenhum valor. É só que ele não tem valor pra quem está morto. O sujeito morto não sabe de nada do que ocorre com os vivos. Então ele não se beneficia de um bom sepultamento. Considerando que muitos justos foram cremados ou esmagados ou despedaçados, fica difícil sustentar que o sepultamento é necessário. Se for, o que acontece com aqueles que não podem ser sepultados por causa da natureza da morte sofrida? Então, pra que serve o sepultamento? É mais uma forma de os vivos mostrarem respeito à pessoa que morreu e manterem sua memória. Se assim é, o sepultamento é um benefício prestado aos vivos mais do que é aos mortos. Aliás, dependendo da pessoa que morre, o sepultamento pode não ser uma homenagem respeitosa até. Eu, pelo menos, se eu morrer, quero que meus órgãos sejam doados. Em suma, a sepultura é de zero importância pra quem morre, sendo, na verdade, um meio de os vivos manterem a memória do defunto ou de mostrar respeito pela pessoa que se vai.

Nem o bom homem perde alguma coisa ao não ter seu corpo sepultado, nem o mau homem ganha alguma coisa ao receber sepultamento. Caso as orações pelos mortos tenham utilidade, tal utilidade deve se limitar somente aos que morreram com saldo positivo.

Do que foi dito anteriormente se depreende que o sepultamento não ajuda a alma do defunto onde quer que ela esteja. Um condenado que morre ainda é um condenado depois da morte. E o pior é que acabou seu tempo de se redimir, já que o que contam são as ações em vida. Uma pessoa absolutamente má não irá ganhar o paraíso porque foi sepultada perto de um mártir. Tampouco a pessoa boa perde alguma coisa no pós-vida porque não foi sepultada. São as ações em vida que importam, não a pompa com que o corpo é enterrado depois que já não pode mais se redimir pelo que fez. O mesmo vale para as orações fúnebres. Se o que vale são as ações em vida, as orações feitas pelos vivos em honra aos mortos só têm utilidade pra quem morre no favor divino, se é que têm alguma utilidade.

Quando sonhamos com uma pessoa viva, não há razão pra crermos que é a pessoa de fato que está se manifestando a nós em sonhos, o que significa que não há razão pra crermos que é a pessoa de fato que está se manifestando a nós quando vemos em sonho uma pessoa que já morreu.

Eu queria ver o que o Rivas tem a dizer sobre isto, já que ele é ligado nessas coisas de vidas passadas e imortalidade do eu. Pra Agostinho, quando sonhamos com uma pessoa viva, não pensamos que a pessoa tá se projetando astralmente em nossos sonhos, especialmente porque a pessoa com quem sonhamos pode confirmar que estava apenas dormindo na hora em que o sonho ocorreu e garanta que não se “projetou” coisa nenhuma. Então, porque existem pessoas que acreditam falar com os mortos quando uma pessoa morta “se manifesta” em sonhos? Qualquer que seja o significado do fenômeno, é errado pensar que a pessoa está realmente se manifestando em sonhos apenas porque não podemos confirmar com a pessoa se foi mesmo ela depois que acordamos, como podemos fazer com os vivos com os quais sonhamos.

18 de setembro de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 3.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, , — Yure @ 16:03

Desta vez, eu li o livro A Trindade. Como alguns de vocês sabem, eu já fui o único agnóstico numa família de quatro pessoas, três delas sendo testemunhas de Jeová. Às vezes, era sobrepujante a pressão. Em todo caso, quando se vive com testemunhas de Jeová, você acaba aprendendo algumas coisas por osmose e uma das coisas que aprendi foi que a Trindade é uma doutrina que não se sustenta. Eu mesmo nunca acreditei na ideia de que Deus é uno e trino, mesmo quando eu era católico.

Vou tentar explicar: no santo evangelho segundo são João, capítulo 1, verso 1, está escrito que o Verbo era Deus. Até aqui, tudo bem. Claro, Deus criou o universo falando. O Verbo é o meio pelo qual o universo veio então a ser. Mas aí, “o Verbo estava com Deus”, denotando separação. E depois, “o Verbo fez-se carne e habitou entre nós” na pessoa de Jesus. Se assim é, o Verbo não foi criado (“criação”, segundo Tomás de Aquino, é formar algo a partir do nada), mas “gerado” por Deus a partir de si mesmo, sendo que Deus é um ser metafisicamente simples. Daí o Verbo ser chamado “Filho”. Se assim é, o Filho é consubstancial a Deus. Em metafísica, “substância = 1 essência + n acidentes”. Sendo Deus simples, não ocorrem nele acidentes. Logo, no caso de Deus, sua substância coincide com sua essência. Se o Filho tem, portanto, a mesma essência que Deus, segue-se que podemos dizer, em sentido estritamente metafísico, que o Filho é Deus. E seria Deus tudo aquilo que procede de Deus ou do Verbo (como o Espírito Santo) em vez de ter sido criado do nada (como o universo) ou formado de substância criada previamente (como o homem). Para harmonizar isso com a interdição ao politeísmo, é preciso dizer que o Deus adorado pelo católico é o Deus-substância (único) que habita em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Para o trinitarista, então, a Trindade é um Deus e três pessoas, lema também recitado como “uma essência, três pessoas”.

E por que eu não adoto essa ideia? Não é querendo jogar Tomás contra Agostinho, mas eu passei um bom tempo da minha adolescência refletindo nas cinco vias de Tomás: movimento, causa eficiente, necessidade, graus de perfeição e ordenamento universal. Fazia isso quando eu não estava trancado no quarto fazendo… outras coisas que envolviam ou não o Fur Affinity. Então, pra Tomás, é preciso que haja um movemente imóvel, uma causa não causada, um ser necessário, sumamente perfeito e que põe o universo em ordem. Tomás conclui que todas essas coisas apontam pra um ser só, que pode ser chamado Deus. Agora, as três primeiras vias se reduzem à terceira: Deus é um ser necessário que não pode não existir, pois o nada, sendo infértil, não pode gerar alguma coisa. É preciso que algo tenha sempre existido, e esse algo é Deus. Mas Agostinho admite que, das três pessoas da Trindade, só o Pai é ingênito. Colocando o Pai e o Filho (ou o Espírito Santo) em relação, o Pai teria precedência. Logo, só o Pai é necessário, porque por ele foi gerado o Filho, mas o contrário é impossível. Por geração, eu entendo a mudança do Filho de um estado latente em Deus (como Verbo) pra um estado individuado (como pessoa do Verbo, ou Filho).

Isso explica porque o Verbo encarnado, Jesus, mesmo sendo consubstancial a Deus, não se fez igual a Deus. Se dele procede, faz todo sentido que Jesus constantemente se ponha abaixo de Deus-Pai. Então, como as testemunhas de Jeová, sou da opinião que “Deus” é um título que só cabe ao ser não gerado. Mesmo que o Verbo seja consubstancial ao Pai, isso não basta pra que o Verbo seja considerado Deus em sentido absoluto, embora o possa em sentido estritamente metafísico. Essa é uma daquelas situações em que a filosofia atrapalha.

Então por que eu leria um livro chamado A Trindade? Ora, e por que não? Quando você se forma em filosofia, você tem que dar uma chance a tudo. Quem sabe? Talvez eu esteja errado em alguma coisa. Talvez o sujeito me convença. Eu já mudei tanto na vida lendo livros que eu relutava ler. Talvez Agostinho saiba algo que eu não saiba. Né? Na verdade, não foi o que aconteceu. Ele tentou muito me convencer, mas temo que o livro teve o efeito oposto. A Trindade me mostrou que a ideia de Deus uno e trino faz ainda menos sentido do que eu pensava. Às vezes, Agostinho repete a mesma coisa várias vezes, como que exasperado, tentando convencer até a si mesmo de que o que ele tá escrevendo é real! Dá um pouco de pena… Mas hoje, se eu quisesse convencer alguém de que a Trindade faz pouco ou nenhum sentido, eu emprestaria esse livro à pessoa. Sem enxame, falo sério.

Inobstante, eu consegui tirar desse livro alguns conselhos que servem ainda hoje, embora nenhum deles diga respeito à teologia pesada da obra.

O fato de alguém já ter escrito sobre determinado assunto não implica que você também não possa escrever sobre tal assunto, especialmente se você puder escrever de forma mais completa, correta ou simples. O texto dado ao incrédulo é diferente do texto dado ao neófito e o texto dado ao neófito não é o texto dado ao iniciado de longa data.

Eu escrevi muita coisa neste blog. Se você concorda comigo em alguma coisa que eu tenha dito, mas entende que o leigo talvez não consiga entender, reescreva o que eu disse no seu próprio blog, mas usando uma linguagem mais acessível. Isso deve ter acontecido porque eu escrevo pra pessoas como eu, sem me importar muito com seu nível de instrução, algo que eu tô resolvendo só agora. Eu tô tentando me manter mais na linha agora, escrevendo com linguagem mais clara, já que a maior parte das pessoas que leem meu blog nem sequer têm treinamento filosófico. As que tem, são neófitas. As que já estão formadas provavelmente nem sabem que eu existo. Então é praticamente inútil escrever como acadêmico aqui.

Além disso, pode ser que eu tenha errado ou deixado algo passar. Também faz parte de vida. Aí você escreve no seu blog sobre os erros que eu cometi. Eu geralmente não faço um alarde por esse tipo de coisa, já que meu blog é pequeno e acessado bem pouco (exceto quando estoura um escândalo no Twitter envolvendo pessoas atraídas por crianças ou adolescentes, aí todo o mundo bota link pra cá).

Quando alguém provar que você está errado, por favor, seja humilde e aceite a correção. Quem ama a verdade não teme ser criticado.

Sócrates apontou uma vez, não lembro em qual diálogo, que parece que tem gente que tem vergonha de aprender. Pra aprender, é preciso admitir que não se sabe. Como o aprendizado é uma forma de aperfeiçoamento, a pessoa que se fecha às críticas válidas acaba também se privando de meios de melhorar a própria vida. Isso acontece quando uma pessoa ama mais a sensação de estar “certo” do que a verdade. O problema é discernir quando uma crítica é válida ou não. Pelo menos pra mim, uma crítica é válida quando ela me ajuda a alcançar meus objetivos. No caso de Agostinho, a crítica seria válida na medida em que tal crítica favorece a compreensão dos dogmas católicos, já que sua explicação é seu objetivo. Isso, claro, implica dizer que ele não aceitaria nenhuma crítica que ataque os dogmas, em vez de explicá-los…

Você não precisa concordar com tudo o que está escrito em um livro.

Entendendo que o tema é difícil, Agostinho diz logo de cara que você não precisa concordar com o que ele diz caso você julgue que ele tá falando besteira. Ele sempre foi assim, o que é admirável. Ele costumava dizer “não tratem meus textos como canônicos”. Agostinho admite que ele pode estar errado, por isso seus livros não devem ser tidos como regra de fé em nenhuma circunstância, tal é a extensão da fraqueza intelectual humana. Seria ótimo se mais escritores tivessem tal humildade. É muito difícil encontrar um livro que seja 100% besteira, mas você deveria ser capaz de desconfiar até mesmo de autores com os quais você tende a concordar, quando eles falam algo de que você duvida. Todo o livro carrega uma porcentagem de verdade e outra de erro (a menos que seja sagrado). Separe as duas coisas e fique com o melhor de todo livro que você lê.

A ciência é mais útil quanto mais perto ela está de nós.

Eu acho que já discuti isso na entrada anterior, mas não custa dizer de novo: as pessoas valorizam mais a ciência que diz respeito imediato a elas. Sabia que vão preparar uma nova missão à Vênus, agora que foi encontrado sinais de vida microbiológica lá? Bom, isso não resolve a crise do coronavírus. Isso não quer dizer que a missão não deva acontecer, mas que as pessoas não a veem como prioridade no momento. Isso porque as pessoas não sentem a utilidade das ciências cujo campo está distante delas.

Se você fizer o que Jesus mandou, Deus gostará de você.

Agostinho menciona que Jesus ensinou aos seus discípulos que o favor do Criador é concedido aos que ouvem a Cristo. Jesus se põe como o único caminho pra chegar a Deus e desautoriza caminhos alternativos. Embora Agostinho não chegue tão longe a ponto de dizer o que estou pra dizer, isso não implica que os quatro evangelhos são tudo de que o fiel precisa pra se salvar? Jesus parece condicionar a salvação à capacidade de amar. Talvez os cristãos fossem pessoas mais decentes se prestassem mais atenção aos Evangelhos do que ao resto da Bíblia Sagrada.

Ao descrever o sobrenatural, faltam palavras.

Agostinho afirma que descrever coisas sobrenaturais, como a Trindade, é uma tarefa dificultada pela linguagem humana, que muitas vezes fracassa ao descrever algo sem correspondência com o mundo físico conhecido. É o que acontece com Ezequiel, em sua profecia: ao descrever as visões que teve, ele assumidamente usa termos aproximados (“vi como que […]”). Por isso as profecias bíblicas precisam ser entendidas como imagens, coisas em sentido figurado, porque o profeta tá vendo coisas grandes demais pra serem postas em palavras. Mas não confunda profecias com mandamentos, porque as ordens são claras (ou não seria justo condenar quem não as entende).

Quem ama deseja que o amado se torne uma pessoa melhor.

Este conselho é bom pra saber quando você tá numa relação abusiva. Portanto, atenção, meninos. Todo o mundo quer a felicidade. Ora, felicidade é não ter do que reclamar. Você reclama por causa de problemas. Se seu amado te causa mais problemas (xingando você ou te fazendo se sentir culpado por coisas sem importância) do que te ajuda a resolvê-los, talvez essa pessoa não ame você. Por outro lado, se o seu amado está empenhado em resolver seus problemas (desenhando pra você ou ajudando você com sua monografia, sei lá), essa pessoa realmente te ama, porque quer te ver numa situação melhor do que sua situação atual. No Fedro, Platão relata o diálogo entre o personagem titular e o Sócrates, no qual o Sócrates diz que o amor danoso leva o amante a manter o amado em condição péssima, pra que o amado seja dependente do amante e, por isso, explorável. Agora, pode-se chamar isso de “amor”? Se uma pessoa “ama” você desse jeito, é melhor você sair de perto.

Se Deus é amor, quem não ama não conhece Deus. O amor ratifica a fé.

João escreve, na sua primeira carta, que Deus é amor. Quem não ama, não conhece a Deus, porque a incapacidade de amar ao irmão (que é visível) é sinal da incapacidade de amar a Deus (que é invisível). Isso é válido pra humanos, não pra anjos ou outros seres espirituais que podem conhecer Deus de outras formas. Que dizer, então, dos cristãos que usam a fé pra dar livre curso ao seu ódio, se não que não são cristãos? É o amor que ratifica a fé, entre os homens. Se o homem não ama, sua fé num Deus de amor é impossível. “Ah, mas basta crer pra ser salvo!” A isso, a gente só pode contrapor o que diz Tiago, na sua carta (que Lutero considera dispensável): também os demônios creem, e tremem.

Reter algo na memória requer que se preste atenção.

Esta observação me faz lembrar de umas coisas que eu li na teoria freudiana do trauma: pra que uma memória seja traumática, é preciso haver surpresa (que direciona sua atenção ao objeto incitador) e risco real ou percebido de morte (o que usa atenção concedida pra imprimir o trauma no sujeito). Se você não prestasse atenção, a memória não seria retida, muito menos seria traumatogênica. Eu li no Handbook of Child and Adolescent Sexuality que lidar com experiências sexuais ilegais na infância ou adolescência requer que tais ocorrências sejam tidas como outras quaisquer, ruins, mas de pouca importância. Se você faz um escândalo encima do que aconteceu, você chama atenção pra sua reação negativa, tornando o acontecimento mais difícil de ser esquecido e lhe associando emoções negativas. É assim que experiências sexuais prazerosas em tenra idade tornam-se fonte de trauma depois, porque você absorve o estigma pelo seu ambiente quando o ato é descoberto. Isso, claro, além das experiências forçadas ou dolorosas que são traumáticas por si. Em suma, é a atenção concedida que torna essas experiências imprimíveis na memória. Se tais experiências forem traumáticas, imprimirão lembranças traumatogênicas.

A busca pelo bem comum inclui o bem individual, mas a busca pelo bem individual não inclui o bem comum.

E é por isso que eu me sinto tão fortemente atraído pelo socialismo. Se buscarmos o bem pra todos nós, também cada indivíduo será afetado positivamente. Mas, se cada um procurar apenas o próprio bem, há uma chance de que você acabe passando por cima dos mais fracos que você, como se estes fossem “fracassados”. Assim, quando você estiver diante de uma questão moral, tome o curso de ação que favoreceria o maior número de pessoas ou, pelo menos, o curso que faria mal ao menor número possível. Um exemplo concreto: um amigo seu quer que você rompa com outros dois amigos ou ele romperá com você. Não faz sentido ficar com os dois e deixar aquele de lado? Até porque esse amigo que quer que você rompa com dois tá pensando só nele, não em você.

Se você não é capaz de conseguir o que quer, pelo menos tente querer só o que você pode ter, pra que não acrescente o desespero à frustração.

A existência de ideias como essas, diz Agostinho, mostra como o estoicismo falha em trazer a felicidade. Mesmo que a pessoa pare de perseguir o que ela não pode ter, ela ainda pode se lamentar por ter um desejo insatisfeito. Perseguir algo e falhar porque conseguir aquilo é impossível dói menos do que sabiamente não tentar o que é impossível pra você. Mas é isso. Não é que pare de doer, é só que dói menos.

A criança é tão impressionada pelos sentidos que parece que ela só apetece o que lhe dá prazer físico e só rejeita o que lhe causa dor física. O estudo de algo é condicionado pelo amor e pela rejeição. Não apenas o homem, mas também o menino tem memória, inteligência e vontade.

Esta ideia aparece durante a discussão sobre a autoconsciência infantil. A criança conhece a si própria? Se ela tiver memória, inteligência e vontade, provavelmente. E ela deve ter, já que essas habilidades, mesmo que se desenvolvam pelo exercício, precisam estar preexistentes na mente, mesmo que latentes, porque não há força no cérebro capaz de criá-las do nada. Mas não dá pra saber com certeza se a criança é capaz de pensar a si mesma por duas razões: primeiro porque não lembramos de quando éramos bebês e segundo porque bebês não falam, pra que os perguntemos.

Fica difícil dizer se a criança se pensa, quando parece que tudo no que ela pensa é em se sentir bem e não se sentir mal. Tanto que algo que lhe provoca uma sensação boa provavelmente não será visto como algo negativo, mesmo que seja aberrante pra adultos moralmente conscientes. Isso é tão verdade, que é assim que ensinamos o que crianças deveriam saber: pelo reforço positivo ou negativo. Mas, mesmo que esse condicionamento seja aplicado perfeitamente, ainda não conseguimos fazer com que uma criança ame os estudos se ela não sente prazer em estudar (do contrário, ela apenas amará a recompensa por estudar). E é isso que torna os cientistas e filósofos de verdade diferentes das pessoas comuns: fazem o que fazem porque gostam. Se você sente prazer em algo, você se aplicará nisso. É isso que nos faz ir bem em certas matérias escolares: é que gostamos de algumas mais que outras.

Quanto mais se sabe, mais se quer saber. A fé procura, mas é a inteligência quem acha.

Todos temos crenças. E a crença é o ponto de partida pro conhecimento do mundo. A crença é espontânea. Ao usar nossa inteligência pra examinar a crença, podemos saber se estávamos certos ou errados no que acreditávamos, total ou parcialmente. Isso nos leva a conhecimento novo, mais racional que o anterior. Esse é o motor do progresso. Quando você descobre algo novo, você acaba sendo levado a querer saber mais pela própria coisa nova que você descobriu. A teoria do big bang foi um estouro na época em que foi concebida e aceita, mas aí alguém falou que o big bang é um efeito sem causa, o que não faz sentido. Agora tá todo o mundo querendo saber o que havia antes do big bang e o que poderia ter causado tal evento. Ainda não há teoria dominante sobre isso.

29 de agosto de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 2.

Filed under: Livros, Notícias e política, Passatempos — Tags:, , , — Yure @ 15:28

Vocês já viram isto antes e agora vão ver de novo. Como eu acabei minha leitura do livro seguinte de Agostinho, tá na hora de mostrar o que eu aprendi lendo ele. Trata-se da Doutrina Cristã. Apesar do nome, é um manual de hermenêutica e oratória, se bem que orientado a estudantes e pregadores. Tento me focar mais na hermenêutica e na oratória, já que, se é pra aprender sobre Cristo, já existem igrejas pra isso. Não obstante, o assunto do cristianismo é inescapável, então, de vez em quando, eu acabo falando desse assunto.

Sempre que necessário, use outros conhecimentos que você tem, inclusive filosofia, ciência e bom senso, pra interpretar um texto que você está lendo. Algumas pessoas têm talento pra interpretar um texto, mas esse talento não é universal, de forma que há pessoas que precisam aprender como interpretar um texto.

É um engano comum pensar que qualquer um pode entender qualquer texto, que bastaria lê-lo pra compreender. Alguns textos são escritos com a presunção de que o leitor já sabe de algumas coisas de que o escritor está a expor. Por exemplo: o segmento de economia do Jornal Nacional. Quem não entende de economia não entende, por mais que o William Bonner repita, como a alta ou queda do PIB afeta a vida de cada cidadão. Particularmente dos mais pobres, pros quais o PIB estar crescendo ou caindo não muda o fato de que não tem comida em casa. Alguns ficam esperançosos quando veem o PIB aumentar, mas não se engane: o produto interno bruto é a soma da riqueza produzida no país, sendo que o Brasil é um país desigual. Se você é pobre, você não pode esperar muito do PIB, porque, mesmo que o Brasil esteja produzindo mais riqueza (PIB alto), você provavelmente não verá nem a cor dessa riqueza. Quem assiste o segmento econômico do JN sem saber disso acaba pensando que um PIB alto vai fazer todo o mundo ficar rico amanhã. Não é isso. Um PIB alto pode muito bem beneficiar só quem já é rico.

Portanto, é preciso ter conhecimento pra interpretar corretamente uma informação. Quanto mais conhecimento você tiver, mais textos você vai entender. E isso é válido também na apreciação da Bíblia Sagrada. Pra Agostinho, compreender a Bíblia corretamente pode requerer conhecimentos de história ou geografia (pras passagens históricas), e até de ciência ou de determinados ofícios (pras passagens metafóricas). Por exemplo: pedra angular ou pedra de esquina, que são expressões usadas pra descrever a importância de Jesus. Se você não é arquiteto ou, pelo menos, pedreiro, você não sabe como o ângulo da construção é importante. A comparação entre a importância desse elemento e Jesus fica perdida. Assim, interpretar um texto pode requerer treinamento prévio nos elementos aos quais o texto faz referência.

Há duas artes relativas ao texto: a interpretação (entender o que está escrito) e a exposição (explicar pra outro o que está escrito).

Aristóteles escreveu na Metafísica, se não me engano, que a prova de que alguém realmente aprendeu algo é sua capacidade de ensinar o que aprendeu. Concedo. Mas é verdade que muita gente aprende algo muito bem e não consegue ensinar o que aprendeu. Porque ensinar é, em si, uma arte. Talvez por isso bacharelado e licenciatura sejam formações diferentes…

Entender o que está escrito requer que você trabalhe somente com sua habilidade. Explicar o que está escrito requer que você trabalhe com o nível de compreensão do seu ouvinte. Se você tá discursando pra pessoas com um nível cultural menor, você vai ter que dosar as palavras que você usa e estar disposto a clarificar termos obscuros. Ademais, se o assunto é importante e seu ouvinte tem outras preocupações na cabeça, você terá que usar artifícios pra manter a atenção do sujeito. Segue-se que ensinar é mais difícil que aprender.

O amor ao próximo obedece ao critério de… proximidade!

Algumas pessoas se ressentem por não poderem fazer nada por aqueles que sofrem em outros estados ou outros países. Mas, se você for pensar assim, você vai esquecer de que há pessoas na sua cidade ou até na sua família que precisam de ajuda urgente também. Devemos fazer o bem a quem pudermos fazer o bem, sem nos ressentirmos por não podermos ajudar pessoas que estão muito distantes de nós, seja fisicamente, emocionalmente ou financeiramente. Faça o bem a quem você puder fazer. Pelos outros, ore.

Se for escrever um livro, se esforce pra que ele não seja tedioso.

Pra Agostinho, a Bíblia é um livro extremamente estimulante por causa da sua linguagem metafórica, que faz com que o leitor sempre volte a ela, tentando entender o que foi dito. É como se a graça da Bíblia fosse convidar o leitor a criar suas próprias teorias sobre o que está sendo dito. Esse fator de releitura até hoje não se esgotou e muita gente cria teorias bíblicas até hoje. Esse efeito é sentido em menor escala por fãs de séries nas quais o sujeito se esforça pra entender até o que não está sendo dito, como Lost e Manifest. Parte do apelo desses trabalhos é levar a pessoa a teorizar. Isso não é um privilégio dos livros e das séries, pois também se vê isso nos jogos, como Deltarune. Os autores desses trabalhos entenderam que um bom produto é aquele que leva o consumidor a transcendê-lo, a comparar suas teorias com as de outros, o que alimenta a formação de comunidades.

Existem outras formas de fazer com que um livro (ou série ou jogo) não seja um porre de ler, mas as melhores formas de fazê-lo são aquelas que levam o leitor a voltar ao trabalho lido novamente. Se você criar pretextos pra que o leitor volte à leitura, mesmo depois de ter terminado, seu trabalho será popular.

Se você não conhece o idioma original em que uma obra foi escrita, sua melhor aposta é comparar as diferentes traduções do texto, em vez de eleger uma tradução só, se o que se quer é se aproximar do significado original.

A bem da verdade, existe um problema na religião cristã que é a padronização da Bíblia Sagrada. Existem cânones protestantes (66 segmentos, contando livros e cartas), católicos (74 segmentos) e ortodoxos (até 81 segmentos). Mesmo que houvesse uma padronização canônica, não há acordo sobre quais fontes textuais utilizar. Existe o texto tradicional (composto pelo texto massorético e pelo texto recebido de Erasmo) e os textos críticos (cópias historicamente mais confiáveis, mas que podem se contradizer entre si). Essa rixa existe porque os textos originais da Bíblia não existem mais. Tudo o que temos são cópias datando de diferentes períodos.

Além disso, mesmo que tivéssemos os originais, não conheço ninguém que possa ler hebraico, aramaico ou grego, que são as línguas nas quais os textos sagrados foram escritos. Fora que o hebraico da época não tinha vogais então a pronúncia de alguns nomes próprios fica perdida. Então, teríamos que confiar em traduções. E aí temos mais problema: o modo de traduzir. A maioria das Almeidas traduz por equivalência formal (cada palavra deve ser traduzida por uma palavra equivalente da mesma classe gramatical), enquanto quase todas as outras traduções usam equivalência dinâmica (cada frase é traduzida por uma de sentido equivalente). Todos esses problemas levam à conclusão de que, pra chegar ao que os autores originais queriam dizer, o fiel não poderá passar a vida lendo somente uma tradução da Bíblia. Ao terminar a leitura, dê a Bíblia a outra pessoa e adquira uma outra, de outra tradução. O mesmo é válido pra qualquer livro cujo idioma original você não domina.

O homem não cria verdades, mas apenas as descobre.

“Verdade” é a afirmação que está conforme à realidade objetiva (fora do sujeito). Pra conceber uma verdade, é preciso constatar algo. Esse algo cria a verdade em mim e eu posso então comunicá-la. Se a verdade depende de uma constatação de algo vindo de fora de mim, segue-se que eu não crio verdades, mas as descubro no mundo. Quando o universo, o mundo, a natureza ou qualquer coisa fora de mim contradiz o que eu penso, é porque o que eu penso não é verdade. Se uma pessoa fala pra mim algo que é contradito por esses elementos, é porque essa pessoa está mentindo pra mim. A verdade inventada é uma mentira. Só é verdade o que é descoberto, não inventado.

A verdade deve ser aceita onde quer que seja encontrada.

O problema de muitos hoje, particularmente dos jovens, é rejeitar a priori o discurso de alguém porque essa pessoa, em algum momento, professou uma crença considerada aberrante. “Ah, nem vou me dar ao trabalho de ouvir um misógino”, mesmo que o cara não seja. Mas já pensou se esse misógino, de repente, fala algo certo e com o qual você poderia concordar? Você não vai saber. Se souber, vai preferir ignorar. Afinal, é “um misógino”. Isso não é uma coisa boa, pessoal. O fato de uma pessoa falar besteira não indica que essa pessoa nunca vai falar algo de valor. Se assim fosse, ninguém estudaria Schopenhauer hoje, ou Nietzsche, dois filósofos extremamente influentes, mas que não tinham opiniões muito justas sobre as mulheres. Se assim fosse, ninguém estudaria Freud ou Albert Moll, porque ambos afirmaram que crianças são seres sexuais (o que não é uma “besteira”, já que é verdade, mas é um escândalo). Se assim fosse, ninguém estudaria Marx, porque é um comunista, ou Bakunin, porque é um anarquista.

Se alguém, em algum momento, em algum lugar, fala algo com que eu não concordo, tudo bem; o cara é humano e todos os humanos cometem erros de vez em quando. Isso não quer dizer que eu tenho que excluir o sujeito da minha vida totalmente. Analogamente, se alguém reprovável fala algo correto uma vez na vida, eu tenho que aceitar que o que ele disse é verdade, mesmo que ele seja uma pessoa execrável. Isso não quer dizer que uma pessoa deve aceitar tudo o que lê, mas que, quando a pessoa lê qualquer coisa, ela tem que selecionar o que ela vai usar e o que ela não vai usar. De todos os discursos que você ouve, você deve ficar com o que é aceitável e ignorar o que é inaceitável.

Isso me lembra de um incidente no Twitter, no qual dois pacas (pessoa atraída por criança ou adolescente), ou “MAPs” (minor-attracted person), se preferir, estavam discutindo o livro do O’Carroll, o Paedophilia: the Radical Case. Durante a conversinha deles, chega um cara “normal” e pergunta que diabos é aquilo. Os MAPs explicam do que se trata e o sujeito diz “se é um pedófilo que escreveu, é melhor não ler.” Se ele tivesse que debater sobre o livro, partiria do pressuposto de que o autor está errado sem ter lido o que está escrito. Mas com que autoridade pode uma pessoa falar daquilo que nunca leu? É como odiar Daikatana. É fácil achar alguém que odeie Daikatana, mas é difícil achar quem tenha jogado Daikatana.

O fato de que a Bíblia Sagrada ora se manifesta de forma literal e ora de forma metafórica é explorado por aqueles que a usam pra justificar seu ódio. Ninguém é perfeito.

Como dito antes, a Bíblia Sagrada se manifesta de forma literal e também de forma metafórica, mas nem sempre está claro quando ocorre essa transição. Isso é explorado por líderes religiosos que querem usar a Bíblia pra justificar ações condenadas pela própria Bíblia. É assim que tem gente que se diz pró-Deus e pró-arma sem nenhum peso na consciência. “Amor aos inimigos é metafórico!”. Ah, vá!

Alguém poderia argumentar que o amor aos inimigos tem que ser metafórico, porque Deus odeia o pecado. Eu não posso odiar nem os pecadores? Não. Afinal, não há homem que não peque. Isso inclui você. Isso inclui Davi (que cometeu adultério) e Salomão (que cometeu idolatria). Você odeia essas pessoas? Ninguém é perfeito. Usar o fato de que existem pecadores como desculpa pra exercer seu ódio é adicionar ao pecado da ira o da hipocrisia. É, portanto, pecar duas vezes.

A mentira contada de forma prazerosa, clara e convincente é mais facilmente aceita do que uma verdade dita de forma chata, difícil e desagradável.

O Amos Yee fez um vídeo uma vez descendo o cacete em gente que escreve como eu. O pior é que eu concordo com o que ele disse. Eu escrevo de forma demasiado técnica e obscura pra população geral. Isso torna os meus textos chatos pra cacete. Ninguém tá a fim de ler um texto chato ou incompreensível. Assim, mesmo quando eu falo algo que eu considero verdade, eu não sou ouvido porque eu escrevo, muitas vezes (e certamente não agora), como acadêmico. Se fosse pra eu escrever como acadêmico, eu deveria escrever um livro. Se eu escrevo na Internet, onde qualquer um pode ler, eu não deveria falar de forma mais simples?

É porque qualquer um pode ler o que é postado na Internet que os caras que criam notícias falsas se esforçam pra escrever em um nível que pessoas leigas compreendam. Porque assim atingem mais pessoas. É impossível que todas elas reconheçam que o que o cara tá falando é mentira. Assim, sempre terá quem acredite. Se as pessoas que falam a verdade não se esforçarem em escrever e falar de forma clara, atraente e cativante, a verdade sempre estará atrás da mentira. Por isso que eu tô tentando mudar a forma como eu escrevo…

A missão de quem discursa é tríplice: instruir (pela exposição justa da verdade), agradar (pelo uso prazeroso das palavras) e convencer (pela utilidade do que é dito). A verdade deve ser compreensível, apreciável e convincente. O estilo deve mudar ao longo do texto conforme a necessidade.

Ao escrever um texto ou discursar pra uma plateia, o sujeito deve ter em mente que ele tem três objetivos. O primeiro é falar de forma suficientemente clara pra que a audiência saiba o que ele tá dizendo e o entenda. É o tipo de objetivo que ninguém atinge num seminário de Hegel. Se a pessoa não entende o que você tá dizendo, ela não estará disposta a gastar do próprio tempo pra ouvir você. O segundo objetivo é manter a atenção da pessoa. Na época de Agostinho, os oradores faziam isso com o floreio, com a fala bonita, com palavras poéticas e coisa e tal. Hoje, a gente acha isso bem chato. Há formas melhores hoje de manter a atenção do público. O humor, por exemplo. Marx, em sua Ideologia Alemã, frequentemente usa piadas pra manter a atenção do leitor. E, realmente, se eu tiver que ler um tratado de setecentas páginas sobre economia política, é melhor que eu seja, pelo menos, capaz de rir enquanto leio. Vai ver é por isso que os Parerga e Paralipomena, do Schopenhauer, são mais populares que O Mundo Como Vontade e Representação, do mesmo autor. É que os Parerga parecem um livro de piadas escritos pelo Jair Bolsonaro, se este tivesse dois neurônios funcionais. É tão engraçado quanto politicamente incorreto.

O terceiro objetivo é convencer o sujeito que lê o livro ou ouve o discurso a agir da forma que você gostaria que ele agisse, operando, assim, mudanças na sociedade. Esse objetivo é o que eu menos vejo ser cumprido, mas que eu me esforço como um cão pra cumprir. Porque não adianta uma pessoa saber a verdade sobre o que tá acontecendo e não ser capaz de agir sobre ela. O campeão nessa categoria é o Leonardo Stoppa, que apresenta o Leo ao Quadrado com o Leonardo Attuch, na TV 247. Ele diz que o Brasil não tem mais democracia, que a esquerda não tem unidade, entre outras coisas com as quais eu concordo. Mas ele não dá nenhuma pista, nenhuma sugestão do que fazer em relação a isso. Por isso parei de assistir. Por isso concordo com quem diz que ele presta um disserviço à esquerda brasileira. Ao ver tais problemas de tal magnitude diante de nós, esperamos as armas com as quais lutaremos. Quando essas armas não nos são dadas, isso não é desesperador? Não é paralisante? A pessoa nessas condições se sente derrotada e se resigna.

Quando eu escrevi Sobre Estupro de Vulnerável, disponível aqui, eu me esforcei pra dar dicas a todos os cidadãos que leem o trabalho, pra que cada pessoa possa se mobilizar, mesmo que minimamente, em direção à reforma da idade de consentimento. Então, quando escrever um livro ou fizer um discurso, você tem que dizer o que a audiência pode fazer em relação ao problema que está sendo exposto. O discurso que expõe uma verdade, mas não diz à pessoa o que fazer com a verdade, é um discurso derrotado. Fazer com que a pessoa mude seu comportamento é a vitória do discurso. Agostinho recomenda o apelo às emoções do ouvinte pra mais facilmente alcançar esse objetivo.

Diante desses três objetivos, o autor do texto ou do discurso deve mudar seu estilo conforme a necessidade do momento. Um bom texto alcança os três objetivos, mas ele não precisa usar os três estilos de discurso ao mesmo tempo a todo momento.

14 de agosto de 2020

Alguns conselhos de Agostinho, parte 1.

Filed under: Livros, Notícias e política, Saúde e bem-estar — Tags:, — Yure @ 13:59

Eu falei da última vez que estava lendo a Cidade de Deus, de Agostinho. Agora que eu terminei de ler ao menos os primeiros livros dessa obra, eu posso partilhar o que aprendi a lendo. Consegui tirar dela algumas coisas que são úteis até hoje, já que Agostinho é um filósofo bastante atual.

O mal não tem existência de fato, mas é ausência de bem.

Agostinho já foi epicurista e os epicuristas definem a felicidade como ausência de sofrimento, uma condição que pode ser proporcionada pelo uso estratégico do prazer. Embora ele tenha deixado o epicurismo, eu vejo uma certa influência epicurista na solução agostiniana ao problema do mal. Pra Agostinho, o mal não tem existência positiva, só podendo ser definido como uma ausência: o silêncio é falta de som, o escuro é falta de luz, o mal é ausência de bem. Pense no mundo como uma sala clara, com uma luz que emana do alto. Se você entra nessa sala, você projeta uma sombra. Essa sobra é o mal. Como o ser humano é imperfeito, ele afasta de si o bem através das suas ações erradas. Assim, se o mal é proporcionado (pelo afastamento do bem), só pode o ser por criaturas imperfeitas que escolhem o mal, julgando que escolhem o bem. Assim, o mal é responsabilidade nossa e consequência de nossas escolhas. Deus criou o mundo pleno de bem. O mal foi introduzido pelo mau uso da liberdade, seja dos homens, seja dos anjos.

Às vezes você deve ficar onde está, mesmo que esteja sendo perseguido.

Numa época em que a cristandade era perseguida, os cristãos locais pensavam se deveriam ficar onde estavam ou fugir. Depende: se o ministério naquela região for prejudicado pela fuga, então não se deveria fugir. Observando essa ideia por um lente laica, deixando o cristianismo de fora, eu lembro imediatamente dos “pacas” (pessoas atraídas por crianças ou adolescentes, ou “MAPs“, do inglês minor-attracted person). Eles são perseguidos em todos os lugares, mas será que a causa deles seria ajudada se eles fugissem? Mesmo que um MAP seja banido de uma plataforma, nem por isso deveria abandonar a Internet. O mesmo é válido pra outros grupos perseguidos. Você só deveria fugir da perseguição se isso não redundar em prejuízo à causa defendida.

Não confie sua proteção a quem já foi vencido.

Se você tem um inimigo do qual você precisa se defender, não é com quem já foi vencido por tal inimigo que você deve procurar proteção. Faça alianças com quem ainda está de pé.

Não importa o que se sofre, mas como se sofre.

Meu sobrinho disse uma vez: “a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional”. Bom, é quase isso. Todos sofremos, mas lidamos com o sofrimento de maneiras diferentes. Existem formas melhores e piores de lidar com o sofrimento e devemos escolher as que melhor funcionam conosco. Dessa forma, o sofrimento será suficientemente amenizado pra não impedir nem o raciocínio e nem a ação. Eu lembro do Sêneca quando leio algo desse tipo. Aprender a sofrer. Até Nietzsche (filósofo ateu) concede que o cristianismo, ao ensinar o fiel a sofrer sem entrar em desespero, faz alguma coisa direito. Se tudo o que você quer é não sofrer, as obras de Epicuro e de Sêneca talvez te ensinem algo novo.

Não se deve cometer um pecado grave, como o suicídio (que é um homicídio), pra evitar cometer um de menor gravidade.

Este conselho me chamou atenção porque eu já dividi a casa com três testemunhas de Jeová. Como você provavelmente sabe, as testemunhas de Jeová não aprovam a transfusão de sangue, a qual elas igualam com a ingestão de sangue, que é pecado. Agostinho, ao falar dos cristãos que se matavam pra não pecarem (ou porque já tinham pecado), afirma que não se deve escolher cometer um pecado grave, como o homicídio, a fim de evitar um pecado de menor gravidade. Além disso, quanto aos que se matam após pecarem, eles juntaram à culpa anterior uma culpa ainda maior.

Então, a testemunha de Jeová que morre por ter recusado uma transfusão de sangue incorreu num pecado grave, pra evitar um pecado de menor gravidade (assumindo que a transfusão realmente se iguala à ingestão). “Menor gravidade”, como? Quando interpelado sobre o que fazer pra receber a vida eterna, Jesus respondeu com os seis mandamentos que dizem respeito ao amor ao próximo, dentre os quais “não matarás”. Logo, matar pode acarretar a perda da recompensa eterna, mas as punições pela violação da interdição ao sangue são terrenas, como todas as punições que figuram na Lei de Moisés. Só porque o mandamento não diz “o teu próximo” devemos concluir que o suicídio não está incluso? E mesmo que não estivesse, ainda não é justificável que a testemunha de Jeová adulta recuse transfusões ao seu filho, sob seus cuidados. Aí, sim, ocorre um homicídio sem sombra de dúvida.

Existem pessoas com quem não vale a pena discutir.

Novamente, lembro dos MAPs ao ler isto. Muitos MAPs se cansam discutindo com pessoas ditas “normais” que nunca aceitarão nenhum argumento favorável à causa. Qual é o sentido de fazer isso? Mesmo que você apresente argumentos, a pessoa não apresentará argumentos de volta, mas gritos, xingamentos ou memes. Agostinho afirma que uma pessoa que responde dessa forma é como um estúpido irreparável. Nem toda a medicina do mundo pode salvar um doente incurável. Se volte, portanto, aos que estão dispostos a ouvir. A partir do momento em que a pessoa responde você irracionalmente, deixe-a.

Uma república pode ruir mesmo que todas as suas cidades permaneçam de pé.

A república é tanto um bem imaterial quanto propriamente material. Mesmo que o Brasil não receba nenhuma bomba, ele pode acabar se estiver subordinado ao governo de outros. Se o Brasil se submete aos Estados Unidos, deixa de ser Brasil e se torna Estados Unidos, porque perde sua autonomia. Além disso, existem elementos espirituais na república, como as leis e os costumes. Se as leis forem escritas por outros, em vez de por brasileiros, ou se os costumes brasileiros deixam de nos favorecer como nação, podemos dizer que o Brasil realmente acabou. E acabou, pra mim, quando a fraternidade brasileira foi substituída pela polarização fomentada pela mídia de massa. Nunca um brasileiro odiou tanto seu conterrâneo quanto em 2018. Só podia dar no que deu.

Tempos de paz, por causa da falta medo, propiciam uma geração de homens indignos.

Quando há um inimigo comum, a nação luta junta contra tal inimigo. Em tempos de paz, os acordos firmados em situação excepcional são revogados e as diferenças entre os cidadãos se sobressaem. Brigas internas voltam a ocorrer. A menos que a nação tenha constantemente um inimigo comum, cada cidadão verá um inimigo em seu irmão. Além disso, a ameaça de um inimigo nos mantém alertas, disciplinados e prontos. Em tempos de paz, ficamos relaxados demais e começamos a dar importância excessiva aos problemas pequenos. Tome o exemplo de uma criança: ela chora por coisas pequenas porque nunca trabalhou na vida. São as grandes vicissitudes da vida que nos mostram como se importar com certas coisas é mesquinho. Vivemos tempos de paz e abundância nos governos passados. Claro que a geração criada em tal meio seria mimada: nunca passou fome, foi pra escola, conseguiu realizar sonhos. Não estou dizendo que não se deve buscar sempre as melhores condições, mas que a falta de causas sérias pelas quais lutar levará cada um a lutar por “causas” fúteis. Isso faz parte da cultura do cancelamento. Não é preciso que algo seja objetivamente ruim pra ser cancelado, basta que eu não goste do que eu estou vendo pra ir lá e cancelar.

Quando uma república fracassa, o povo busca bodes expiatórios, pra se livrar da própria parcela na culpa pela destruição da república. Cada povo tem o governante que merece.

De quem é a culpa pelo que se passa no Brasil? Do PT? Do Bolsonaro? Tudo o que acontece de ruim numa república é reflexo do fracasso do povo. Incapaz de engolir isso, o povo busca “bodes expiatórios”. Puseram toda a culpa no PT, como agora põem no Bolsonaro. Não estou dizendo que o PT é o pior partido que existe nem que ele é igual ao Bolsonaro, porém, mas a direita quer que seja, então vamos fingir que é. Também não estou dizendo que Bolsonaro não é um presidente objetivamente ruim. Mas ambos os governos se resumem ao voto, expedido de maneira direta e democrática.

Todos temos parcela de culpa pelo governo que temos: os que votaram nele (por terem escolhido mal), os que votaram no Haddad (por não terem conseguido convencer outros eleitores) e os que votaram em branco ou nulo (por terem deixado que escolhessem por eles). Assim, não adianta criticar o Bolsonaro sem dialogar com quem votou nele ou com quem não votou em ninguém. Mesmo que Bolsonaro saia do governo, o Brasil como está elegeria alguém parecido com Bolsonaro. Precisamos entender que o problema está em cada um de nós, não só em um governante ou em um partido. Pra Agostinho, como Deus tem poder sobre os governos, ele dá a cada povo o governante que merece. Mas, mesmo através de uma lente laica, sem recorrer ao cristianismo, qualquer república que elege seus governantes democraticamente, na medida em que o processo eleitoral é justo, só pode eleger governantes que merece ter. Bolsonaro foi o reflexo do Brasil.

Não há glória em melhorar a condição de uma nação através da guerra, pois melhor povo é aquele que prospera até em paz. O crescimento da nação só é justo sem guerra, pois a guerra, visando apropriação, é um roubo. Faça guerra aos males internos da sua nação, não às outras nações.

É incrível como os Estados Unidos são intrometidos. Não é possível que não haja um dedo americano em cada conflito no Oriente Médio ou golpe na América do Sul. Mesmo que não houvesse, por que esses conflitos acontecem, se não porque um povo, incapaz de prosperar com seus recursos e incapaz de (ou indisposto a) fazer acordos, tenta roubar o que é de outro povo, seja isso recursos, território ou influência? Você não vê a China fazendo isso. Como ela consegue? Se ela consegue prosperar sem entrar em guerra, não é melhor fazer como a China? Claro, imitá-la nas coisas boas, não na censura ou no bat buffet. Conta-se que o Lula, ao ser convidado pelo Bush pra uma ofensiva contra o terrorismo, respondeu ao governante americano: “minha guerra é contra a fome”. Concordo com a extrema direita quando esta diz que o Brasil tem inimigos internos, mas não concordo que tais inimigos sejam homens ou ideias. Os inimigos internos do Brasil são inimigos concretos: a fome, o coronavírus, a violência e a ignorância. Devemos declarar guerra a essas coisas, não à Venezuela ou aos comunistas, o que quer que essa palavra signifique.

Se as coisas vão mal, é preciso buscar as causas concretas do mal, em vez de atribuir causas sobrenaturais. Não se torna a terra fértil adorando-a como uma divindade, mas fertilizando-a.

Um monte de gente vai pra igreja pra ver se consegue bens materiais. Meu irmão já confessou que só era testemunha de Jeová porque queria que sua vida melhorasse materialmente. Mas você já observou que também os maus conseguem bens materiais, dinheiro e poder? Isso acontece porque os bens materiais, sendo de ordem inferior, são dispensados também aos maus. Então, você não deveria ir pra igreja esperando ficar rico (especialmente se seu culto envolve dar seu dinheiro ao pastor), porque está suficientemente provado que é possível se dar bem na vida até sendo ateu. Então, qual é a causa da sua pobreza? Como lidar com ela? Com técnicas materiais. É estudo, trabalho, oportunidade e, infelizmente, sorte. Isso mesmo, sorte. Tem isso também. Então, antes de considerar a possibilidade de castigo divino, verifique se não há uma causa concreta por trás do seu azar.

Um governo sem justiça é uma facção criminosa, que busca no poder a impunidade.

Existe uma coisa chamada foro privilegiado, o qual não sou contra. Eu entendo que o foro privilegiado provê estabilidade ao governo. O problema é que um benefício como esse é também uma tentação. Quando você é político e comete um crime, você requererá seu foro privilegiado, mesmo que você tenha feito campanha contra o foro. É quando a gente sabe quem é quem na política: quando um cruzado que jura combater a impunidade procura meios de barrar investigações contra si mesmo. Isso não é injusto? Sim, mas qualquer governante injusto usará sua posição pra não responder por seus atos.

A quem tem virtude e felicidade, nada mais falta. Nenhum sábio quer mais dinheiro do que o necessário pra viver feliz.

Pra Aristóteles, a felicidade é o bem supremo. Todo o mundo quer ser feliz. Como cada um está sujeito a desejos, sofrimentos e amores diferentes, cada um busca a felicidade de um jeito: alguns pelo dinheiro, outros o fazem pela honra e ainda outros buscam o poder. Mas todas essas coisas são meios e não fins em si mesmos. O fim é a felicidade. Tanto que, se fosse possível ser feliz sem o dinheiro, ninguém iria querer dinheiro e talvez poucas pessoas trabalhassem. Trabalhamos pra ter dinheiro e queremos dinheiro pra suprir nossas necessidades. Mas por que suprir nossas necessidades? Porque necessitar nos torna infelizes. Saciamos nossas necessidades pra nos sentirmos bem, pra nos sentirmos felizes. A felicidade é um fim em si mesma. Ninguém pode fazer a pergunta “pra quê ser feliz?” e ser julgado normal. Por outro lado, buscar a felicidade por meios injustos cria uma felicidade frágil, porque você cria inimigos. Mas a felicidade acompanhada da virtude é estável. Então, se você é bom e é feliz, o que mais você poderia querer? Se você precisa de dinheiro, basta o necessário à própria felicidade.

Um governo que acredita na existência de “boas mentiras” se torna particularmente perigoso ao se aliar à religião local.

Deve haver separação entre igreja e governo, pra que o governo não corrompa a igreja, a qual tem um alcance maior em termos ideológicos. Quando não há essa separação, o governo pode ordenar que a igreja multiplique “boas mentiras“, a saber, aquelas que ajudam o governo a manter o povo feliz, mesmo que o povo tenha que acreditar em algo que não é verdade. O que começa com mentiras aparentemente inofensivas pode virar hábito e logo o governo usará a igreja como dispositivo ideológico. E o fiel, que vai lá querendo se salvar, pode acabar sendo instruído a fazer justamente aquilo que pode perdê-lo.

Uma nação que não adora a Deus pode se expandir e crescer, com a permissão de Deus, se ela ainda assim for uma nação boa.

Por um bom tempo, a filosofia teve um preconceito enorme contra o extremo oriente porque se acreditava que a China era um império ateu. Mas o que ninguém queria enfrentar era a questão: como a China é tão rica sem ser cristã? Voltaire encarou essa questão, mas admito que não lembro como ele respondeu. Em todo caso, uma nação não precisa ser cristã pra prosperar. Pra Agostinho, isso acontece porque Deus é justo: se uma nação faz por onde merecer a riqueza, a honra, o poder, ela terá essas coisas, mesmo que não seja a ele fiel. Cada boa ação merece recompensa. Isso nos põe a pensar: você vai pra igreja todos os dias pra quê? A menos que seja visando a vida eterna, não tem razão pra ir. Bens materiais e crescimento material podem ser obtidos por meios materiais. Não que Deus não possa concedê-los a quem ele quiser, mas você não manda em Deus soberano.

As pessoas prestam atenção ao que lhes agrada e não necessariamente à verdade, o que torna a religião vulgar mais popular que a ciência.

Discutindo os três tipos de teologia enumerados por Varrão (a poética, a natural e a civil), Agostinho se põe a pensar por que a teologia poética é mais popular que a natural. É que a teologia poética se funda nos poetas trágicos, que escreveram todas aquelas histórias que hoje chamamos coletivamente de “mitologia grega” ou romana. Essas histórias são interessantes e proporcionam a identificação do homem com as divindades nelas representadas. A natural, por outro lado, é filosófica. A maioria das pessoas entende melhor um poema trágico ou cômico do que um raciocínio filosófico chato, que fala pro intelecto, mas não pras emoções. Ao mostrar divindades se engajando em comportamentos humanos, a poesia trágica justifica o comportamento humano e isso é agradável. “Até os deuses adulteram!”, pensa o ouvinte. Cada um gosta de ouvir aquilo que lhe valida, por isso a teologia poética é mais atraente que a teologia natural. Nietzsche também reconhece isso, embora faça disso uma conclusão oposta a de Agostinho. Pra Nietzsche, o fato de existirem verdades ruins ou inúteis deveria nos levar a questionar se vale a pena buscar a verdade a qualquer custo. Pra Agostinho, isso apenas quer dizer que a verdade encontra barreiras ao tentar se impor, não que Agostinho considere “verdadeira” qualquer das três teologias apresentadas por Varrão.

Eu odeio usar máscara ao sair. Detesto ir ao mercado, voltar carregando trinta quilogramas de compras com aquele negócio na minha cara me impedindo de respirar direito. Mas eu preciso usá-la porque quero viver. Não me admira, então, que um pastor que diz que Deus protegerá seus fiéis do coronavírus leve tantos a queimar suas máscaras. Porque é o que os fiéis querem ouvir, é o que os valida. O problema é que isso é colocar Deus à prova, o que é pecado. É o mesmo princípio da teologia poética criticada por Agostinho nos pagãos.

Existem funções mais necessárias que as funções políticas, mas que não recebem a mesma glória. Não se humilhe diante de pessoas que você não imitaria.

Refletindo sobre o que Varrão chama de divindades escolhidas (vinte divindades presidentes sobre o panteão romano), Agostinho se pergunta por que Saturno, patrono das sementes e do tempo, poderia presidir sobre uma miríade de outros deuses menores que estão ocupados com tarefas mais importantes que as dele e que talvez até tivessem mais poder que ele, como Fortuna (divindade patrona do acaso) ou Vitória (do sucesso). Embora os chamados escolhidos sejam os líderes do panteão romano, é certo que eles presidem sobre outras divindades com ofícios mais importantes, como se fossem senadores, ofícios os quais eles não conhecem. Lendo isso, eu lembro do Ministério da Saúde, ocupado hoje por um militar, em vez de um médico. Por quê? Ele não conhece medicina, como preside sobre os médicos brasileiros? Além disso, a função de médico é mais prestigiada no Brasil do que as Forças Armadas e o próprio governo. Não faria sentido ter um médico ocupando esse cargo, em vez de um cara que não parece treinado pra isso? O Brasil precisa dos médicos mais do que precisa dos militares. Um militar presidindo a saúde é tão estranho quanto Júpiter se impondo à Fortuna. E é por isso que os médicos fazem bem quando ignoram recomendações, ou mesmo ordens, vindas de pessoas que falam do que não entendem ou que recomendam procedimentos que nenhum médico de bom senso adotaria.

A matéria não basta pra explicar a realidade das coisas vivas.

Em que momento e por qual razão a matéria tornou-se viva? De onde vem a vida que há nos seres vivos? Me custa crer que a matéria sozinha produza vida. De onde vem aquilo que mantém meu corpo vivo e consciente? Do meu próprio corpo? Então o que acontece com esse princípio na ocasião da morte? Ele não é um princípio renovável? Por que eu e não outros? Por que outros tipos de matéria não são vivos? Quanto mais eu penso nisso, mais eu creio que a matéria é animada graças a Deus.

Um bom corpo não necessariamente acompanha uma boa alma.

Seguindo o raciocínio de que os bens materiais, por serem de menor qualidade, são dispensados aos justos e aos injustos, segue-se que uma pessoa de boa saúde pode ser uma pessoa ruim e que uma pessoa boa pode ter má saúde. Novamente, isso acontece porque bens materiais podem ser obtidos, mantidos ou perdidos por causas materiais. Deus poderia te conceder saúde, é verdade, mas só enquanto isso estiver em harmonia com seus divinos e secretos planos. Além disso, ele não teria nos dado intelecto se não fosse pra usarmos. Nada de errado em procurar as duas coisas, a saúde e a bondade, mas seria melhor procurar a saúde por vias materiais enquanto você tiver meios materiais de fazer isso.

Um cristão não deveria adorar os mortos ou lhes oferecer sacrifícios.

Pra terminar, uma curiosidade: Agostinho afirma que não se deve oferecer sacrifícios aos mortos em troca de favores, como se os mortos pudessem intermediar entre homem e Deus. Se ele estivesse vivo hoje, ficaria horrorizado, pois há fiéis católicos fazendo quase isso em relação aos santos, dentre os quais Santo Agostinho! Coisas como colocar um santinho de cabeça pra baixo na água, como se o santo fosse a estátua e pudesse se afogar, são tão ridículas quanto levar comida aos sepulcros, como se o morto pudesse comê-las ou mesmo só cheirá-las. Essas coisas são superstições e Agostinho não as aprovaria se estivesse vivo hoje.

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