Pedra, Papel e Tesoura

26 de abril de 2020

Mais sobre o isolamento.

Filed under: Livros, Notícias e política, Passatempos, Saúde e bem-estar — Tags:, , — Yure @ 10:04

Da última vez, eu fiz um teste, mostrando como será a estrutura dos textos do blog de agora em diante. Primeiro, falo de como vai minha vida, depois falo dos livros que eu li na semana e, por último, das notícias. Também vocês devem ter percebido que estou relendo, pela segunda vez, Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche, e que estou relendo pela primeira Além do Princípio do Prazer, de Freud, entre outras releituras. Isso acontece porque tem coisas ali que eu deixei passar e outras as quais não comentei suficientemente. Mas, em vez de publicar esses comentários apenas quando a obra já foi terminada, eu resolvi publicá-los em pedaços. Dessa forma, eu não passo muito tempo falando da mesma coisa.

Como você pode ver, eu leio mais de um livro por semana, porque, como fazia meu professor de filosofia social e política, eu descanso de um livro lendo outro. Também resolvi colocar uns putti nas páginas, desde que a imagem guarde relação com o tema, pra dar às pessoas que vêm aqui pelo MAP Starting Guide algo interessante no qual passar os olhos. Resumindo: vida pessoal, livros, notícias. Esse é o curso de cada postagem desde a última postagem. Espero que não seja confuso.

Quarentena de covid-19. Imagem de Tistip. Fonte: Wikimedia Commons.

Então, sobre o isolamento social. Meu pai veio aqui pra pegar meu sobrinho de volta (já entro nesse assunto) e me contou que o mecânico dele está com covid-19. Mas o tal mecânico é também um evangélico daqueles. Meu pai ofereceu ao mecânico uma carona pro médico, ao perceber que fazia alguns dias que o cara estava respirando mal. Mas o mecânico insistia: “Deus está no comando.” Seria um abuso dizer que Deus nos deu a razão pra que sua criação fosse autônoma, inclusive os homens? Não só isso, mas o mecânico falava com um tom meio que de desaprovação quando clientes entravam na oficina usando máscaras, como se a máscara fosse um sinal de falta de fé. Talvez ele não morra, quem sabe? Mas ele está contaminado e está contaminando outros.

Esse mecânico não é o único a fazer essas besteiras: são vinte e duas horas, quase hora de eu dormir, e meu vizinho rico da frente tá dando uma festa. É melhor eu denunciar, pra que não digam que eu tô cometendo, sei lá, prevaricação. Aliás, eu deveria chamar o 190 agora. Tem crianças lá, crianças pequenas.

Meu sobrinho saiu do isolamento conosco pra ir pro isolamento com meu pai, que é onde ele está morando. Eu sempre fui contra ele se isolar conosco, porque minha mãe não o disciplina nem deixa que eu o discipline. Porque meu sobrinho é maior e mais forte que eu e ela teme que a briga seja feia e sobre pra mim. Mas eu sei que ele não me bateria. Na verdade, ele, no fundo, gosta muito de mim e, se eu batesse nele, a dor emocional o paralizaria. E é por isso que também eu não tenho coragem de bater nele, porque também gosto muito dele. Só que as vezes a gente se descontrola e a briga acontece, embora seja uma briga totalmente verbal. Esses dias eu xinguei ele de um jeito que ele ficou muito triste e eu, claro, muito arrependido. Resolvemos, de comum acordo, que seria melhor ele voltar pra casa do meu pai, onde ocorrem menos atritos. Afinal, se for pra ficarmos brigando todos os dias, terminaremos por não amar mais um ao outro.

Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.

Continuando minha leitura de Além do Bem e do Mal, entramos na parte em que Nietzsche trata dos preconceitos dos filósofos. No início dessa seção, Nietzsche se pergunta porque a filosofia valoriza tanto a verdade a ponto de tentar afastar de si própria a dúvida ou mesmo a ignorância. Pergunta ousada essa. Ele questiona se a vontade de alcançar a verdade a todo custo não seria algo tão perigoso quanto questionável. Sempre que eu leio Nietzsche dizer uma coisa dessas, eu tenho que me lembrar de que ele passou os últimos dez anos da vida dele louco de sífilis. Então, eu dou um desconto.

É que ele está sendo provocador. O que ele quer dizer com tal pergunta é que a busca, particularmente a busca metafísica, da verdade leva a pessoa a ver o mundo de maneira antinômica: verdade e mentira são opostos, fato, mas o metafísico não reconhece que existem coisas entre a verdade e a mentira. Existem coisas que tem um pouco dos dois. Existem enunciados que comportam uma parcela de verdade e uma de mentira. Além disso, Nietzsche ainda ousa afirmar que uma mentira não precisa ser condenada por ser uma mentira somente. Pra que uma mentira seja totalmente condenada, ela precisa ser inútil. Uma mentira que põe o ser humano em movimento (posso colocar a paz mundial entre essas mentiras nobres) não é uma mentira ruim. Na verdade, tal sonho seria digno de ser sonhado.

Isso também nos ajuda a ver por que as pessoas nem sempre acreditam na verdade quando esta lhes é mostrada: se a mentira também não for prejudicial, ela poderá ser preferível à verdade, se esta for prejudicial. Ninguém aceita uma verdade que prejudica alguém. É o caso, talvez, do estoicismo. Nietzsche afirma que, se agir conforme a natureza for buscar a impassibilidade estóica, ninguém vai querer agir conforme a natureza. A maioria das pessoas acharia muito chato viver exercitando a indiferença estóica (o ideal de imperturbabilidade estóica é a tranquilidade pela indiferença). Se isso fosse verdade e a melhor forma de alcançar a felicidade fosse pela indiferença, pouca gente aceitaria que a felicidade é possível ou mesmo desejável.

Para Nietzsche, é algo assim que nos leva a ter repugnância pelas chamadas “ideias modernas”. As verdades do nosso tempo não agradam, ao ponto de as pessoas desejarem voltar à vida como era antes. O reacionarismo intelectual é isso, é o desgosto pela vida como ela é hoje. Ideias como estado laico, o critério de avaliação pra uma relação sexual é a satisfação dos participantes, direitos dos animais, estado democrático de direito, todas essas coisas são novas e muita gente não é capaz de engoli-las. Por isso querem voltar. A menos que tais ideias se tornem palatáveis, se tornem aceitáveis, as pessoas não vão aceitá-las, mesmo que sejam melhores de um ponto de vista sociopolítico. Se Nietzsche estivesse vivo hoje, com certeza aplicaria esse raciocínio ao feminismo. E daí que o feminismo é bom de um ponto de vista holístico? Eu posso ser falsamente e impunemente acusado de estupro hoje ou amanhã. Se eu fosse uma mulher, temeria pela segurança do meu marido também! Entende porque a maioria das mulheres brasileiras não se identifica como feminista?

Alegoria da França como Minerva, atropelando a ignorância e coroando a virtude. Pintura de Sebastiano Ricci. Fonte: Wikimedia Commons.

E isso nos leva ao ponto seguinte. Se, por um lado, existem filósofos cuja busca por uma verdade antinômica da mentira os leva a pensar superficialmente (ignorando os nauances entre verdade e mentira), por outro existem “amigos da verdade” que são amigos da sua verdade. Nietzsche diz que isso acontece porque também o pensamento é um instinto e que somos postos pra pensar por causa de nossos instintos também. Assim, um filósofo, não amigo da verdade objetiva, mas amigo daquilo que ele gostaria que fosse verdade, pode usar toda a sua razão apenas pra justificar seus próprios desejos e levar os outros a aceitá-los como normais.

Esse também é o caso dos filósofos que não olham pro mundo como ele é, mas como eles gostariam que fosse. Tais pessoas, de tanto olhar pro mundo dessa forma, não conseguem mais ver como as coisas poderiam ser diferentes. É como os neoliberais que, de tão cegos por sua ideologia, pensam que não há saída pra economia pós-pandemia. Porque se habituaram a ver o neoliberalismo, o estado mínimo, como a única forma de economia, fora da qual nada mais funciona. Eles veem o mundo por essas lentes borradas e essas lentes já estão coladas na cara deles. Por isso não enxergam o mundo de outro jeito. Claro que tal obsessão em defender a própria verdade, em vez da verdade objetiva, não é automaticamente ruim, seguindo o raciocínio nietzscheano, se isso levar o homem a algum lugar, se isso servir pra alguma coisa. Mas, a bem da verdade (sem trocadilho), poucas vezes isso dá bons resultados.

Por isso, Nietzsche dá um conselho bastante salutar que devemos aplicar quando estudamos filosofia: se pergunte a que moral o filósofo em estudo deseja conduzir você. “Moral” é o conjunto de regras de vida ao qual escolhemos nos submeter. De fato, uma filosofia que não tem nenhuma recomendação de ação, implícita ou explícita, vale pouco ou nada. Então, quando estiver lendo um livro de filosofia, você deve se perguntar “como esse cara quer que eu aja?”. A resposta a essa pergunta revela a índole do filósofo lido. E isso ajuda a saber se ele é um hipócrita ou não. Você vai acabar percebendo que, mesmo quando um filósofo está discutindo metafísica, há uma recomendação de ação gestando em seu raciocínio. Isso pode ser feito de maneira declarada (como é o caso de Marx e Tomás de Aquino, os quais têm objetivos declarados com suas filosofias) ou de forma velada (como é o caso de Descartes e até Agostinho, a meu ver). Você pode se surpreender quando, numa discussão sobre lógica, o autor deixa transparecer, por acidente, que ele tem intenção política.

Nietzsche aponta outras antinomias que os metafísicos de seu tempo têm por caras, como a antinomia entre “bem” e “mal”. Como se uma ação tivesse que ser totalmente pura pra ser considerada “boa”. Olha os bancos e empresas privadas que estão fazendo doações contra a pandemia. Quem não sabe que estão fazendo isso visando ganho futuro? São empresas, são movidas pela cobiça. Mas quem duvida que eles estão abrandando o sofrimento de alguém? Por acaso essa ação é ruim só porque tem vistas em lucro futuro? Se eles não fizessem essas doações seria pior!

Apologia de Sócrates.

Continuando a leitura da Apologia de Sócrates, vemos que Sócrates também era acusado de corrupção da juventude. Mas como isso se dava? Bom, era assim: quando Sócrates debatia nas ruas, fazendo aquele método chato de apenas perguntar e deixar que o outro se enrolasse nas respostas dadas, mostrando que homens que se diziam sábios não sabia nada com nada, vários meninos assistiam ao debate e aprendiam esse método de debate. Aí o multiplicavam. E logo havia vários pequenos Sócrates desmascarando falsos sábios em massa. Isso prejudicava os negócios dos retóricos, por exemplo, e dos professores da época, os quais acabavam perdendo a renda que antes obtiam ensinando retórica aos meninos. Mas isso tinha um agravante: se Sócrates usava apenas perguntas, não estava claro o que ele ensinava. Então, quando perguntavam aos meninos o que Sócrates ensinava, eles não sabiam responder e, pra não passar vergonha, diziam umas coisas absurdas, reforçando a ideia de que Sócrates ensinava o ateísmo, o que ele nunca ensinou. Com efeito, Sócrates dizia que ele não ensinava nada, apenas perguntava.

Continuando sua defesa, Sócrates responde a um de seus acusadores, presente no tribunal: Meleto. Então, Meleto o acusava de corromper a juventude, pregando que os deuses da cidade não são deuses e que se deveria cultuar outros. Aí, Sócrates responde algo como “se eu corrompo a juventude, então você deve saber a forma certa de instigá-la, certo?” Olha isso com atenção. Pra eu dizer que outro está corrompendo um menino, eu tenho que saber, eu mesmo, o que é melhor pra ele. Se eu não sei o que é melhor pra um menino, eu não tenho autoridade pra dizer que outro o corrompe. E aí, Meleto? Como se cria um menino?

Meleto diz que todo o mundo sabe, menos Sócrates. Dessa forma, Sócrates seria o único corruptor da juventude na cidade inteira. Mas, fazendo uma analogia com o reino animal, Sócrates mostra que não é assim. A maioria das pessoas, ao cuidar de um animal, não sabe o que está fazendo. O mesmo é válido, e ainda mais válido, pra meninos. A maioria das pessoas, ao cuidar de um menino, não é capaz de produzir um ser humano virtuoso. Se todos os que se dizem bons pra juventude assim o fossem, não haveria tantos jovens entregues à perdição. O mesmo se aplica hoje: se todo pai fosse tão bom pai quanto diz ser, o número de meninos entregues ao fracasso escolar, ao crime, à doença, ao mal em geral, seria menor. Então, é absurdo dizer que todo o mundo na cidade sabe cuidar dos meninos, com a exceção de Sócrates, porque, se assim o fosse, todos os meninos seriam excelentes, tendo tantas boas influências agindo sobre eles.

Meleto segue com a próxima acusação: de que Sócrates é ateu e prega outras divindades. Basta meia página pra mostrar que isso é contraditório: se você é ateu, você não acredita em deus nenhum. Não dá pra ser ateu e pregar divindades novas, a menos que você esteja frescando. Além disso, Meleto não é capaz de provar que Sócrates pregou o ateísmo em qualquer ocasião e dirige a ele acusações que, na verdade, cabem a Anaxágoras, um pré-socrático. Meleto parece deixar implícito que Sócrates, por ser filósofo, necessariamente concorda com o que outros filósofos anteriores a ele afirmam, como se a filosofia fosse uma seita dogmática. E não é assim. Sócrates não acredita, como Anáxagoras acreditava, que o Sol é uma pedra! Além disso, se Sócrates fosse mesmo ateu, como ele poderia ensinar ocultismos, que era outra acusação que se fazia ele? Pra ensinar coisas demoníacas, é preciso acreditar em demônios. Lembrando que, na Grécia Antiga, demônio é espírito, uma entidade sobrenatural não necessariamente má. Por exemplo, Eros, divindade patrona do amor, é chamado de demônio em algumas traduções do Banquete. Se você acreditaem Eros (um “demônio bom”, portanto, a ponto de ser considerado uma divindade), como que você é ateu? Não é possível, portanto, conciliar ocultismo e ateísmo, não na Grécia Antiga. Pra ensinar coisas relativas aos espíritos, malignos ou não, é preciso antes acreditar que tais espíritos existam.

Sócrates, após se defender de Meleto, diz que talvez o juri se pergunte se Sócrates, agora prestes a ser condenado à morte, pensa que valeu a pena desmascarar falsos sábios. Sócrates diz que não se deve pensar nos riscos para a vida, quando se defende uma causa justa. Porque, ele diz, a justiça é maior que a vida nesse tipo de discussão. Talvez por isso, ele tenha se recusado a deixar a prisão quando seus amigos organizaram a fuga dele. Ele não saiu da cela. Preferiu morrer como determinado pela justiça de sua cidade. Claro que, pra pensar assim, Sócrates precisa pensar que as leis da cidade dele são, necessariamente, justas. Mas isso é lá com ele. Em todo caso, o conselho dele vale: se você acha que sua causa é importante, não tema morrer por ela. Sócrates vai mais além, dizendo que ele não pararia de filosofar e instruir os outros a se desapegar das coisas materiais e buscar as virtudes imateriais, mesmo que o tribunal o absolvesse sob a condição de que ele parasse de fazer isso. Sócrates prefere morrer a deixar a filosofia. Até porque, quem sabe? Talvez a vida depois da morte seja melhor! Você não sabe o que te aguarda. Então não assuma que a morte é a pior coisa que existe. Talvez valha muito a pena morrer pelo que é correto, portanto. Mas, se você for justo e te matarem, azar o dos que te mataram! Perderam alguém que poderia melhorar a nação. Matar alguém injustamente é sempre uma perda, a longo prazo, pros assassinos. Por outro lado, muitas vezes, fazer o que é justo pode até prolongar sua vida. Por exemplo: participando da guerra, você morre; protestando contra ela, você vive. Nem todas as lutas justas são mortais.

A arte de lidar com as mulheres.

Continuando minha leitura desta peça schopenhauriana, os tradutores, ainda no prefácio, afirmam que a maioria dos grandes filósofos teve muito azar no amor. Pra mim, isso é quase uma surpresa. Já imaginava, que intelectuais se saem mal no amor, mas, como não tenho o costume de ler biografias de homens célebres, eu não sabia que isso era tão comum! Há poucos exemplos de filósofos que se deram bem com as mulheres. Acho que o único que se deu muito bem, a níveis cruéis, foi o Kierkegaard. Os outros foram medíocres (alguns) ou fracassos (muitos). Schopenhauer está na maioria fracassada. Observe porém que ele não era um incel: Schopenhauer mantinha relações sexuais com uma e com outra, só não encontrava “amor” nessas aventuras. Ele quase se casou, aliás, mas, infelizmente, essa noiva tinha tuberculose. Isso, claro, numa época em que tuberculose não tinha cura. Mas tudo bem, já que ele próprio escreveu que o casamento é um saco cheio de cobras do qual você tem que tirar a única enguia. Assim, embora sexualmente ativo, Schopenhauer nunca se casou.

Na época de Schopenhauer, a presença feminina no campo intelectual e no campo literário estava em seus primórdios. O mundo estava dando seus primeiros passos na direção daquilo que hoje chamamos “feminismo“. Então, se Schopenhauer era machista (e o foi por boa parte de sua vida) e um fracasso com as mulheres, claro que o livro seria uma acidez estratosférica. Os tradutores querem que você tenha isso em mente. A Arte de Lidar com as Mulheres é um livro de uma época em que o feminismo nem tinha esse nome. Então, tente vê-lo como um registro histórico de uma época, não como um manifesto pros dias de hoje (se bem que, se você quiser vê-lo dessa forma, eu não vou impedi-lo e eu consigo imaginar um MGTOW fazendo uso deste livro pra passar o tempo).

Amor dormindo. Desenho de Victor Brodzsky. Fonte: Wikimedia Commons.

Os tradutores, neste prefácio enorme, seguem falando das razões que poderiam ter levado Schopenhauer a detestar mulheres. A mãe dele era uma dessas mulheres empoderadas da época. Ela escreveu vários trabalhos sobre arte e tinha ambições literárias. Mas, enquanto ela se divertia por aí, o pai de Schopenhauer estava muito doente e sofria com dores terríveis e com a solidão, já que sua mulher tinha ambições intelectuais pra seguir. Aí o marido cometeu suicídio e ela se mudou pra um outro canto onde conheceu outro cara e eles tiveram um caso. Schopenhauer e sua irmã acharam a nova relação um escândalo. Imagino que daí pra formarem uma ligação entre empoderamento e imoralidade foi fácil, já que as pudicas viúvas não eram empoderadas. Mas o golpe final foi outro. Schopenhauer queria que sua mãe voltasse pra casa, mas ela não queria abandonar seu novo romance. Escolhendo o novo companheiro, ela abandonou os filhos (como abandonou o marido doente) e lhes impediu a “intromissão”, que poderia muito bem ser só a preocupação que o filho sente com a imagem da mãe. É… eu entendo, Schops. Eu entendo você.

Schopenhauer então afirma algo que muitos MGTOWs hoje afirmam: que a mulher (pois Schopenhauer parece considerar todas as mulheres como iguais entre si) vê no casamento apenas uma assitência. Se assim for, então é claro que ela abandonaria um marido que não mais pode sustentá-la. Talvez Schopenhauer projetasse em todas as mulheres o ódio e a decepção que ele tinha da própria mãe, o que era reforçado pelos fracassos em encontrar amor de verdade. Mas também, a mãe dele era incapaz de manter compromissos com as pessoas que amavam ela (marido e filhos). Realmente, uma egoísta. Não me admira que Schopenhauer tenha se tornado misógino, com uma mãe dessas.

Moro demitido.

Sérgio Moro saiu do governo. Por mais que eu não goste do Sérgio Moro, eu acho que ele deveria ter ficado, já que ele não tava fazendo nada de ruim. Verdade, não estava fazendo nada de bom também, mas o importante é que esse governo não piore. Ele nunca vai ser bom, então é preciso que cause o mínimo possível de estorvo, esse governo. A causa da demissão foi a troca do comando da polícia federal. De acordo com Moro, essa mudança visava o vazamento pro presidente de informações sigilosas relativas a investigações envolvendo os filhos do presidente. Segundo Moro, Bolsonaro sabia que essa seria uma interferência política. Então foi premeditado.

Isso é um crime de responsabilidade, certo? Bom, é mais um pra lista e, se dependender do Maia, mais um que não vai dar em nada. Eu realmente não tenho mais esperanças de que Bolsonaro sofrerá um processo de impedimento, especialmente neste ano, talvez nem no próximo. Mas admito que, se ele saísse, seria ótimo. O Mourão certamente não é um cara com um projeto de governo com o qual eu possa me alinhar, mas nada é pior que Bolsonaro no momento. Mourão seria mais competente, combateria a pandemia com seriedade, e eu acho que ele colocaria o povo na frente da economia se tivesse que escolher entre os dois. Bolsonaro, ele só faz a gente passar vergonha mundial. Diuturnamente. Pelo amor de Deus.

Mas talvez não seja tão ruim assim. Com o Pró-Brasil, o governo vai, aos poucos, adotando medidas econômicas de esquerda, o que é bom. Já vai saindo outro membro de direita “pura” do governo. Basta que Bolsonaro agora se livre de Paulo Guedes. Se ele fizer isso, o governo, mesmo que seja publicamente de direita, terá uma economia de esquerda. Isso, a meu ver, é bom o bastante. Claro que seria ótimo ter um governo que defendesse outras pautas da esquerda, fora a economia. Mas, às vezes, temos que nos contentar com o que nos é dado. E o que nos está sendo dado é Braga Neto.

Boneco do juiz Moro num protesto de 18 de março de 2016. Autor: Luizpuodzius. Fonte: Wikimedia Commons.

Se isso der certo e o Brasil voltar a crescer, o governo como está pode recuperar popularidade e talvez até melhorar a imagem da direita, já que o governo é, como eu disse, publicamente de direita, embora a política econômica esteja indo pra esquerda agora. Por outro lado, se Guedes for demitido ou pedir demissão, o dólar vai subir (o que é ótimo pra mim) e o empresariado vai retirar de Bolsonaro o resto do apoio que ele ainda tem. Aí, nada mais estará segurando Bolsonaro.

Claro que eu não acho que ele será impedido por isso. Se fosse pra ele ser impedido, já teria acontecido: o cara comete um crime de responsabilidade a cada três meses. Mantê-lo seria um meio de governar, da melhor maneira possível, sem colocar Mourão no poder. Mas qual seria o problema do Mourão? Bom, com a mudança do poder militar pra um nacionalismo de esquerda, talvez o Mourão não aderisse ou mesmo ignorasse as demandas do empresariado. Ele é indesejável, portanto, pra uma elite que quer o seguimento de uma agenda neoliberal. Lembre que ele se reuniu com a central única dos trabalhadores lá no comecinho. Além disso, ele é também indesejável aos evangélicos, porque ele é maçom (grau 33). Então, deixar Bolsonaro é, pros neoliberais, o menor de dois males. Pra sociedade, é o contrário: Mourão seria melhor presidente que Bolsonaro, pela simples lógica de que Bolsonaro é o pior que temos.

Mas voltando ao Moro. Eu tive a impressão de ter ouvido, com meus ouvidos de leigo, a confissão de um crime no discurso de demissão do Moro. Mas ouvidos mais aguçados que os meus ouviram bem mais que um só, tais como prevaricação, omissão, solicitação de vantagem indevida e coisa e tal. Muito bem, então, já que ele não está mais no governo, ele poderia ser preso? Eu acho que não no momento. Porque isso causaria o processo e talvez condenação de uma figura pública muito querida por gente que compra o discurso anticorrupção do Moro. E isso tiraria o foco do coronavírus, que é a crise mais grave do momento!

Vamos lá, pense comigo: se Bolsonaro sofresse um processo agora, com a popularidade que tem, ainda conseguiria invocar uma carreata e até uma passeata a favor dele. Quantas pessoas não deixariam o isolamento pra protestar contra um processo movido contra Moro quando sua popularidade é superior a de Bolsonaro? Processá-lo num momento em que é importante ficar em casa seria contraprodutivo no combate à pandemia. Talvez por isso ele se sentiu tão confortável fazendo um discurso no qual ele confessa que também ele meteu as mãos na lama. Ciente de que o isolamento é importante e ciente da própria popularidade, ele especula, como eu especulo, que um processo contra ele poderia acarretar protestos presenciais e aumento da velocidade de contaminação. Ele não estava, eu acho, nem um pouco sentido por causar uma nova crise política no governo em tempos de pandemia. Pelo contrário: esta é a hora perfeita pra se criar crises no governo impunemente.

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