O texto abaixo é uma honesta aula filosófica baseada em Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro, escrito por Nietzsche, com sugestões de como as ideias contidas em tal escrito podem ser usadas para desenvolver o país e ajudar as pessoas a se compreenderem.
Coisas que a filosofia não é.
Para pessoas que nunca tiveram contato com a filosofia ou que se formaram em alguma outra coisa ou que, de uma forma ou de outra, não são “entusiastas” por ela, filosofia é história da filosofia. Isso não é verdade. Uma coisa é a filosofia, outra coisa é sua história. A filosofia, pelo menos antes da distinção entre ciência e filosofia, é o estudo racional do homem e da natureza, da qual o homem faz parte. A história da filosofia se ocupa apenas da documentação da evolução desse processo.
Por causa do gênio de alguns filósofos, a filosofia também não é fácil. Todo escritor tem um público-alvo. Se você quer fazer filosofia para leigos, você escreverá de maneira simples. O problema é que, historicamente, os filósofos mais influentes não escreveram pra leigos, mas para outros filósofos, para políticos, para cientistas, e isso torna as obras capitais da filosofia inacessíveis ao coitado do cidadão comum. Há aqueles inclusive que escrevem para pessoas como eles próprios. Esses são os mais difíceis de compreender. Um filósofo que chega ao ponto de escrever dessa forma, pra gente igual a ele mesmo, provavelmente tem algum objetivo implícito que vai além da mera divulgação do pensamento. Pode ser, por exemplo, que ele queira que suas ideias sirvam de instrução pra os que consomem sua obra, de forma que haja uma ação coordenada de certos segmentos da sociedade, ou talvez ele espere que esses leitores que o compreendam entrem em contato com ele. Isso, ou ele apenas quer evitar que suas ideias sejam usadas por “pobres de espírito” e use uma linguagem difícil ou enigmática pra garantir que só os “iluminados” entendam ele. Elitista, não?
Os erros dos filósofos.
Para este texto, estou igualando filosofia e ciência como formas racionais de conceber o mundo. Tanto o filósofo quanto o cientista buscam a verdade. Mas já pensou se a verdade for uma mulher? Estereotipicamente, intelectuais são péssimos com as mulheres… Isso talvez explique porque a filosofia já deu tanta mancada no cortejo de sua amada. Tal como o tímido usa os meios errados pra queixar a comadre dos seus sonhos, a filosofia muitas vezes usa os meios errados pra se aproximar da verdade. Por exemplo: generalização com poucos casos. É o caso da mulher que é traída por três caras e conclui que todo homem trai. Isso é uma generalização com amostra limitadas: por causa de três caras, ela diz que todos traem. Tá errado, certo? Bom, a filosofia e também a ciência já fizeram muito isso.
Há que se lembrar que a busca pela verdade já causou vários estragos à humanidade. O exemplo mais memorável é a bomba atômica. Aliás, a energia atômica em geral. A busca pela verdade leva nós, homens, aos mais brilhantes louros de glória, mas também aos mais desesperados fracassos. Talvez porque a buscamos a verdade de forma errada… ou talvez porque a buscamos em primeiro lugar. Afinal, a busca pela verdade é arriscada. Ser filósofo ou cientista é se expor ao risco. Aliás, é expor a humanidade ao risco. Correr risco pode recompensar, inclusive com a felicidade, então… quem sabe? Talvez valha a pena!
Outro erro dos filósofos é achar que uma mentira é automaticamente ruim. Quando o ser humano é frágil, talvez não valha a pena abandonar a ignorância. Mas não só isso: às vezes, uma verdade pode levar o ser humano à indolência. Uma “verdade” que faça o ser humano deixar de se aperfeiçoar vale a pena?
Por exemplo: a paz é possível? Se pararmos pra pensar se ela é possível, pode ser que estoure outra guerra mundial enquanto estamos pensando. E se concluirmos que ela é impossível? Valeu a pena concluir isso? Se a paz for mesmo impossível, isso significa que devemos parar de estimular a paz? Donde decorre que uma verdade nem sempre é útil ou desejável. Isso significa que uma mentira pode ter valor, se ela impele o ser humano a se aperfeiçoar. E daí que a paz é impossível? Ainda a queremos. Então vamos buscá-la, mesmo que ela não exista. E isso é bom, especialmente porque é útil a todos os humanos. A utilidade pública é uma manifestação de amor a todos. Procurando a paz, esse ideal impossível, ao menos reduzimos a violência no globo.
Disso se segue que uma verdade, pra poder pegar, precisa ser também útil. Dispor de uma verdade que não serve é como morrer de sede no meio do mar, água que não se pode usar pra matar a sede. Se você fala uma verdade inútil, seu valor não será percebido pelos leigos, pela política, por aqueles que não são filósofos ou cientistas. Ser percebido pela política é especialmente difícil, porque, na política, somente se considera aquilo que é visto como um problema pra uma determinada classe. Se uma classe política vê que a verdade encontrada por você diz respeito a ela, a verdade terá impacto político. Mas, na política, a menos que a pessoa esteja doente, ninguém se preocupa com problemas que não dizem respeito à sua classe. É preciso que a verdade seja útil a alguém ou resolva algum problema de algum segmento da sociedade, ou a verdade será esquecida (ou tida como mera “curiosidade”) e o mundo continuará do mesmo jeito. Na verdade, se a mentira for útil, as pessoas preferirão acreditar nela. A aparência pode ser mais atraente que a verdade. Muitas vezes, a verdade dói. Uma pessoa pode até esconder a verdade por saber que ela é cruel demais pra ser divulgada. Ela pode se mostrar como uma besta que se quer amansar ou ainda da qual se quer fugir.
Alguém pode argumentar que isso é um absurdo, porque todo o mundo quer educação, sabedoria e, portanto, a verdade. Não, cara, nem todo o mundo quer educação e sabedoria, nem todo o mundo quer a verdade. As pessoas querem viver bem, querem fruição da vida, gostoso conforto (o qual, a bem da verdade, convida o conformismo), mas os problemas da humanidade ficam no caminho.
Cada problema é, portanto, uma possibilidade de aperfeiçoamento e a ciência deveria fazer da verdade uma arma contra esses problemas, contra o sofrimento, tomando a oportunidade e sendo útil aos que enfrentam tal problema. O sofrimento nos move ao saber e cada sofrimento superado deixa a humanidade em um estado melhor que o anterior. Claro que pessoas acostumadas ao sofrimento veem a felicidade como algo efêmero, mas não seria isto também uma oportunidade? E se a filosofia e a ciência não apenas proporcionassem simples felicidade, mas também felicidade duradoura? Se a verdade for difícil de obter, for difícil de compreender, não resolver nenhum problema e não trouxer a felicidade, as pessoas procurarão a felicidade por outros meios.
Por isso tantos acreditam em belas mentiras. A ignorância proporciona a despreocupação! Se não valer a pena deixar a ignorância, ninguém a deixará. Isso é grave, porque felicidade e infelicidade não são argumentos. Não há lógica no mundo que faça uma pessoa agir de uma forma que ela reconhece como danosa à sua pessoa, inclusive ao seu estado de espírito, a menos que ela veja como ela pode derivar disso um benefício que compense a dor sentida.
A menos que a verdade seja também útil, ela não será aceita. Por isso o reacionarismo intelectual é tão forte hoje. Porque as verdades produzidas em nosso tempo não agradam. A verdade pode não ser tão prazerosa. Exemplo: o estado deve ser laico, moral é relativa, a liberdade de expressão deve ser total, o critério de avaliação de uma relação sexual é sua qualidade, entre outras coisas que deixam muita gente desconfortável, tanto na esquerda quanto na direita. Na verdade, pra alguns, elas soam até criminosas. Isso é agravado pelo fato de que mudanças estimulam hostilidade. Por isso se censuram livros feitos por gente da melhor espécie. É preciso que as pessoas vejam como tais ideias podem melhorar a vida delas, ou elas não aceitarão e se voltarão aos astrólogos.
É preciso fazer o bem, mas não somente à humanidade. É preciso fazer o bem também aos seres individuais: amigos, família, a si mesmo. Por mais que nossas ideias sejam verdade, se não forem úteis, não apenas à república, mas também aos indivíduos que dela participam, voltar à mentira é mais confortável, fácil e desejável. Todos querem a felicidade, mas a verdade não é prioridade de muita gente. Se a verdade, além de inútil, parecer também danosa, você diminui ainda mais as chances de aceitação, porque ninguém aceita algo que vê como prejudicial a si mesmo, não importando se é bom pra república. Isso é algo que se deve considerar na busca pela verdade.
Se a verdade tem também que ser útil, não podemos fazer filosofia ou ciência “desinteressamente”, como se agir de outra forma fosse imoral. Aliás, nada é feito sem interesse. Nem amor é feito desinteressadamente. Então essa ideia de que se deve procurar conhecimento “desinteressadamente” não apenas é um ideal pernicioso, mas também impossível de alcançar plenamente. Quem faz pesquisa sem, pelo menos, sentir prazer ao fazê-la? Esse prazer não é um interesse que te motiva a pesquisar? Pois então! Se não é possível agir sem interesse (toda ação voluntária pressupõe um objetivo), por que não permitir agir com interesses mais abrangentes, como o bem-estar coletivo?
É preciso fazer com interesse e o interesse é descobrir meios de melhorar nossa vida. É o interesse que nos diz em qual direção ir. Se você não sabe pra onde ir, você fica no mesmo lugar. É verdade, algo não é verdade porque me deixa feliz, algo não é belo porque me agrada, eu não sou grande porque me elogiam. Mas o ideal é que a filosofia e a ciência produzam conhecimento que seja verdadeiro e também útil. Observe que isso não é o mesmo que maquiavelismo: quando falo de utilidade, falo não somente dos resultados, mas também dos melhores meios de atingi-los, ou as consequências dos nossos meios voltarão pra ferrar a gente.
É pra isso que a filosofia e a ciência deveriam servir. Para isso, a filosofia deve se orientar por problemas. Em vez de simplesmente procurar conhecimento “desinteressadamente”, devemos pensar nas coisas que nos incomodam e procurar uma solução pra elas. É por isso que o ser humano mostra seu verdadeiro potencial na adversidade: se não houvesse problemas que nos incomodassem, ninguém procuraria mudar de condição, ninguém procuraria melhorar de vida. A existência de problemas e a busca por soluções pra eles é o que mantém o ser humano em movimento ascendente. Devemos usar nosso conhecimento pra fazer o bem, particularmente aos nossos próximos imediatos. É esse tipo de pensamento que faz o ser humano progredir, porque ele nos motiva a eliminar problemas que identificamos, o que torna a nossa vida melhor. Aí, sim, a verdade passará a recompensar no céu e na terra! Aliás, se a ciência e a filosofia forem usadas pra sistematicamente resolver nossos problemas, a terra gradualmente será um paraíso.
Há que se lembrar que as mentiras são facilmente aceitas por também serem, ao menos em sua superfície, simples. Amamos a simplicidade e isso nos deixa abertos ao consumo de conhecimento falsificado, o qual transforamará a mente como o alimento estragado transforma o corpo: estragando. Uma informação, verdadeira ou falsa, que seja também útil e simples será aceita por um maior número de pessoas do que se ela fosse apenas útil ou apenas simples. É preciso que a verdade se adeque a esses dois critérios, porque a mentira já se adequa. Alternativamente, você pode fazer a mentira soar complicada, reduzindo a adesão a ela. Se algo é simples, complicar aquilo reduzirá sua adesão. Isso também contribui pra que pouca gente se dedique à filosofia ou à ciência, porque temos o preconceito de que o conhecimento é difícil de conseguir, algo para velhos que já fazem isso a vida inteira, não algo que os jovens possam fazer. É verdade, existem problemas dignos dos mais sábios, mas nem todos são assim.
Você também pode mostrar a mentira prejudica o bem-estar da pessoa e como seu bem-estar poderia ser mais estável mudando pro lado certo. Essa tática é empregada por mentirosos. Mas os filósofos e cientistas acham que, só porque falam algo real, serão aceitos sem esses esforços. Pelo contrário: todo intelectual deve se esforçar pra ser compreendido e validado pelo maior número possível de pessoas.
Se o leigo não tem saco pra um artigo científico, desenhe uma história em quadrinhos, escreva um romance, componha uma música, qualquer coisa. O que importa é que sua ideia chegue a seu destinatário e seja compreendida. A maior dificuldade pra alcançar esse objetivo é que os sábios, de tão especialistas no que são, se distanciam da realidade do leigo e perdem de vista aquilo que interessa a eles, como eles pensam, do que eles falam. Isso afeta até mesmo sua pesquisa: um intelectual pode ter dificuldade em perceber algo que o leigo percebe, não porque o intelectual é idiota (porque ele não é), mas porque seu objeto de estudo lhe toma tanta atenção que ele esquece da vida. Na verdade, um sábio altamente especialista em seu campo pode até mesmo ser incapaz de compreender a si mesmo, embora conheça bem seu objeto de estudo. Isso dificulta a compreensão do sábio pelo leigo.
Sabe o que seria interessante? Se intelectuais escrevessem como comediantes ou, pelo menos, empregassem comediantes como editores. Porque comediantes, mesmo com o ocasional erro de português, escrevem melhor e mais desinibidamente que intelectuais puros. Os livros mais lembrados e mais influentes não necessariamente são os mais verdadeiros, mas os mais tocantes, mais belos, os que dão vontade de ler em voz alta. Nisso, a literatura de ficção ganha da literatura científica. É preciso que os filósofos e cientistas aprendam a escrever com um estilo mais interessante.
Mas tem algo mais… a busca da verdade não é somente uma questão de método, mas também de índole. Uma pessoa, ao falar da verdade, pode não ser suficientemente verdadeira. Existem filósofos que não são realmente amigos da “verdade”, mas amigos da “sua verdade”. Esse é um problema comum entre os filósofos que são, na verdade, moralistas disfarçados, que querem que seu modo de vida se torne (ou permaneça) o modo de vida dominante. Ora, a moral é uma interpretação particular do mundo, um modo de vida que escolhemos, por isso ela muda com o tempo, porque nossas necessidades mudam com o tempo. Um filósofo (ou melhor, ideólogo) que seja também moralista provavelmente está interessado em fazer com que todos adotem o comportamento pregado por ele, o que revela muito sobre quem ele é. Eles passam a usar sua lógica, sua dialética, pra disseminar o ódio a qualquer pessoa que possa posar uma ameaça ao que eles acreditam, chegando à estupidez de fechar os ouvidos aos argumentos contrários, postura parcial, oposta ao ceticismo e, por isso, suspeita.
Ora, o ódio nos predispõe a atitudes inconsequentes, como a mentira, por mais que a mentira seja bem-intencionada. Isso não é filosofia (a qual deveria se comprometer com a verdade), mas doutrinação. Lembre que uma conclusão plausível, convincente, nem sempre está certa. É por isso que até mesmo pessoas que acreditam na moral devem manter seu senso crítico alerta, para distinguir aqueles que raciocinam bem daqueles que falam bem. Preste mais atenção no que a pessoa faz, não tanto no que ela fala, quando o assunto é moral. Além disso, é preciso que aqueles que combatem tais ideólogos não se tornem também ideólogos.
Um moralista pode se apropriar da lógica, da dialética ou do método científico com o único intuito de justificar seus desejos reprováveis e fazê-los parecer aceitáveis ao mundo inteiro, pra se sentirem superiores, pra humilhar os outros, pra mentir pra si mesmo, pra subjugar ou até pra se humilhar (talvez pra gozar da aparência de modéstia). “Descobrem” coisas e dizem que elas são propriedades da natureza, querendo submeter a natureza, que é amoral, à tirania da sua moral, mas uma coisa é inventar e outra é descobrir. Há uma diferença entre o ser e o dever-ser, a natureza não é do jeito que gostaríamos que ela fosse. O problema dessas pessoas é que elas tentam resolver esse problema mentindo, dizendo que a natureza, o mundo, as pessoas são como ela diz serem, o que não muda nem a natureza, nem o mundo e nem as pessoas.
Falsificar a realidade é uma tentativa de vingança, perpetrada por pessoas que não aceitam o mundo como ele é e nem têm forças pra mudá-lo. De tanto se esforçar em ver a natureza como ela não é, a pessoa perde a capacidade de olhá-la de outro modo. A parte chata é que, quando um desses filósofos, que são, na verdade, ideólogos, obtém reconhecimento, outros como ele surgem, surfando a onda iniciada. Mas por que tais filósofos existem? O que leva um filósofo a agir de forma tão egoísta? Afinal, cada ação voluntária pressupõe objetivo.
É que o pensamento é um instinto. Se a filosofia tem como seu princípio o pensamento, ela se origina, em última instância do instinto. Pode ser o de autopreservação, reprodução, aperfeiçoamento próprio ou aperfeiçoamento da espécie. As pessoas filosofam porque percebem problemas e temos um instinto que nos leva a tentar solucioná-los (porque não queremos apenas viver, mas viver bem), mas a percepção do problema é algo bem pessoal. No final, nós somos parte da natureza… E tudo o que é parte da natureza comporta uma porcentagem de instinto. Isso é grave, porque deixa implícito que não existe filosofia imparcial. Qualquer adepto de uma escola filosófica, de um mestre, está sendo doutrinado. Um uso imparcial da filosofia iria requerer o estudo, ironicamente, de sua história, passando em revista o pensamentos de tantos filósofos quanto possível, a fim de permitir que o próprio leitor julgue quem tem razão e quem está só contando uma mentira plausível, tanto na filosofia quanto fora dela. A filosofia só tem valor se ensina também senso crítico, inclusive quando aplicado ao pensamento que está sendo aprendido.
O nosso raciocínio diz muito sobre nós. Por exemplo, uma pessoa que valoriza a liberdade colocará esse conceito como central em sua filosofia e isso diz algo sobre sua personalidade. Se essa pessoa, além de valorizar a liberdade, sistematicamente ignora qualquer argumento favorável ao determinismo, pode ser que ela esteja apenas tentando proteger o que ela considera importante, em vez de verificar se o outro lado tem ou não razão. Esse tipo coisa pode nos dizer quando uma pessoa é uma filósofa e quando se trata de charlatanismo. Como regra geral, o estudo da filosofia que não estimula o senso crítico, inclusive das doutrinas que são consumidas, é doutrinação. Por causa disso, sempre que um filósofo ou cientista disser algo como “é assim, e pronto”, isso é digno de suspeita.
E isso nos leva ao próximo erro filosófico: a adoção e o exagero de preconceitos populares em um raciocínio. De fato, se nós tivermos que provar tudo o que estamos dizendo, a conversa de verdade nunca vai começar. Então, todos os debates, filosóficos ou não, precisam começar por algo que ambos os lados considerem como certo. O problema é que um filósofo pode acabar adotando como ponto de partida um preconceito popular. Até aí, tudo bem. O verdadeiro problema é quando ele eleva esse preconceito, a afirmação inicial, ao posto de elemento mais elevado do raciocínio dele.
A afirmação inicial, o ponto com o qual ambos os lados de um debate concordam, é uma afirmação gratuita por definição, porque ela não é provada, só assumida. Ela não pode ter importância central. Se esse ponto de partida mútuo é depois tornado elemento central, alguém pode virar pra você e pedir que você o demonstre. Aí você vai ter que provar o ponto de partida. Isso pode ser bem embaraçoso. Outra variação desse problema é usar preconceitos populares não como ponto de partida, mas o longo do raciocínio. Um preconceito é uma afirmação que não é provada. Ora, mas depois que o raciocínio começa, você precisa provar tudo o que você diz.
Outro erro filosófico é a tendência humana a conceber o mundo em antinomias. É bom ou mal, sem meio-termo. É certo ou errado, é justo ou injusto, sem meio-termo. Fazemos isso porque valorizamos mais uma certeza (mesmo que seja uma certeza falsa) do que várias possibilidades. Aceitar a existência de um meio-termo abre caminho pra entrada de outras possibilidades entre dois extremos. A maioria das pessoas não gosta de raciocinar dessa forma, porque é difícil e desconfortável. Por exemplo: a separação entre verdade e aparência é uma escada, não um muro. Mas é desconfortável admitir que existem “meias-verdades”, mesmo de coisas são 80% verdade e 20% mentira.
O problema é que o meio-termo existe tanto na ação humana realista quanto na natureza. Por exemplo: uma boa ação, pra ser boa, precisa ter motivos honestos? Porque existem boas ações motivadas por sentimentos “feios”, como a luxúria ou a ganância. Se uma pessoa faz o bem porque isso dá dinheiro, podemos dizer que ela está agindo mal, só porque sua boa ação é motivada por interesse? Se algo bom é feito por interesse, ainda é bom.
Além disso, é preciso lembrar que diferentes pessoas têm diferentes conceitos de vício e virtude (porque moral não é absoluta). Por exemplo: uma pessoa que valoriza a ignorância ensinará que a curiosidade é um vício. Se é vício, a curiosidade é o mais útil deles. A curiosidade move a ciência, move a filosofia, move o intelecto. Se a curiosidade é um defeito, nem por isso seus resultados são ruins. Outro exemplo: a agressividade é ruim, mas, por causa disso, você vai apanhar de graça quando uma pessoa atenta contra sua vida? A agressividade (um impulso ruim) pode levar à sobrevivência (um resultado bom).
Ainda outro exemplo: existem crimes que são belos e esses são mais defensáveis, como aqueles cometidos por amor, um instinto que frequentemente cega a razão e que temos como um “vício louvável”. Ora, mas todo crime não deveria ser feio? Por que, então, até o assassinato de alguém pode ser celebrado? Donde decorre que existe um meio-termo entre a ação totalmente pura e a ação totalmente má. Se uma boa ação é motivada por um impulso “sujo”, ela não é uma ação pura, mas não podemos dizer que é uma má ação. É assim com quase tudo, não só a moral, mas também na saúde (a loucura é rara, mas até na loucura ninguém é completamente louco), na política, na natureza, educação, nas relações humanas.
Se você conceber as coisas de forma antinômica, é isto ou aquilo, sem verificiar se existe um meio-termo, você está afastando do seu raciocínio um monte de coisas que poderiam enriquecê-lo e levá-lo a uma conclusão mais realista. É como errar de propósito. Lembre-se: alguns filósofos estão mais interessados em se justificarem do que realmente alcançar a verdade objetiva sobre algo, então “errar de propósito” é um truque comum. Desonestidade total, e mau caratismo.
Isso fica mais grave porque algumas coisas que percebemos como antinômicas podem muito bem ser duas manifestações da mesma coisa. Por exemplo, pense na teoria da ferradura: na política, a extrema esquerda e a extrema direita apontam na mesma direção, de forma que a verdadeira polarização não é entre esquerda e direita, mas entre extremos e centro. A extrema esquerda e a extrema direita, sendo opostas, são muito parecidas em seus planos de governo. Por quê? Porque são duas manifestações do autoritarismo.
Infelizmente, não apenas filósofos, mas também pessoas comuns caem no erro de ver o mundo de maneira antinômica. É preciso uma pessoa especial pra ser capaz de perceber e estudar o meio-termo entre dois opostos. Uma pessoa que não é capaz disso é facilmente manipulada por qualquer um que a convença de que certa posição é “má”. É preciso ver o meio-termo antes de fazer uma escolha, mesmo que, no final, você escolha a polarização.
Outro erro filosófico é chegar à conclusões que são bonitas na teoria, mas impraticáveis. Por exemplo: estoicismo. Alguns filósofos afirmaram que se deve viver como a natureza quer que nós vivamos. Na filosofia estóica, viver segundo a natureza é agir segundo sua espécie. Ora, o ser humano é um ser racional, é de sua natureza. Logo, não agir de maneira racional é agir como outra espécie, é agir como bicho. Muito bem. Mas quem quer agir como a natureza quer que ajamos? É que valorizamos nossa individualidade. Se todos agissem racionalmente, o tempo todo, seríamos todos iguais e pouca gente iria querer isso. Os homens valorizam demais as diferenças pra querer agir tal como o outro age. Ora, o que torna os homens diferentes entre si não é a razão, porque a razão homogeiniza. Por isso valorizamos as outras dimensões do homem, como a emoção… o que não é sempre algo bom.
Outro erro filosófico é dar respostas que não significam nada e, basicamente, repetem a pergunta. Tipo: responder “porque ele tem esse poder” quando você pergunta “por que o fogo queima?”. Em muitos raciocínios ao longo da história da filosofia, esse truque é utilizado. Pode até ser que o filósofo genuinamente acredite no que está dizendo e sua teoria faça sentido pra ele próprio e seus adeptos, mas o fato é que ele não consegue explicá-la satisfatoriamente. Contra esse erro, a única coisa que você pode fazer é admitir que existem aspectos de seu raciocínio que ainda são obscuros, coisas pras quais você ainda não tem resposta. Sabe? Ser humilde, em vez de dizer uma coisa enigmática que não tem sentido e não subsiste à crítica.
Por último, outro erro, particularmente da filosofia ocidental, é não olhar pra filosofia oriental. O pensamento é organizado gramaticalmente e numericamente, o que significa que nações com gramáticas parecidas terão filosofias parecidas. O chinês em nada lembra o latim, por isso a filosofia chinesa em nada lembra a europeia. Isso é tão real que uma tradução literal de um texto filosófico chinês perde muito significado. Dar uma chance ao pensamento produzido em outras nações nos permite ver as coisas de um ponto de vista diferente, o que nos enriquece. Mesmo que os orientais discordem dos ocidentais em muitas coisas, existem pontos em comum com os quais ambos podem concordar. Essa aproximação é muito interessante. O oriente é melhor em muitos aspectos, em relação ao ocidente. Quem sabe? Pode ser que nós, ocidentais, estejamos errados em muita coisa que os orientais já resolveram. Se esse é o caso, nós devemos aprender com os orientais e não tentar torná-los ocidentais. “Ocidentalizar” o oriente seria manifestação de mentalidade de caranguejo: como o oriente resolve problemas que não conseguimos resolver com nossas “ideias modernas”, queremos que o oriente fracasse também. Sabe quem faz isso? Os antissemitas: vendo o sucesso dos judeus em quase todas as áreas da vida, os antissemitas querem urgentemente que os judeus fracassem, só pra se sentirem melhor. Pode prestar atenção: maioria dos antissemitas é feia, burra e pobre.
O filósofo que evita esses erros é verdadeiramente útil à sociedade. É o tipo de cara que faz falta. Só dele calar a boca a sociedade já começa a piorar de condição. Esse é o cara que devia estar legislando. Já os filósofos, ou ideólogos, que caem nas armadilhas acima trazem má fama à toda a filosofia, justificando os preconceitos que os leigos têm. Se filosofia se mostra inútil ou prejudicial, os jovens promissores não quererão participar dela e passarão a pensar que filósofo bom é aquele que vive num retiro bem longe da sociedade, meditando até a morte.
Percebendo e reparando erros.
Felizmente, enquanto que o jogo do amor tem bons e maus jogadores, o jogo da busca pela verdade também tem seus bons jogadores. Os grandes homens da ciência que a fazem avançar e depuram a ciência de seus erros, desmascarando os métodos fracassados usados por seus antecessores. Foi assim que a astrologia caiu em descrédito. Mas não basta apontar o erro, é preciso também estudá-lo pra não cometê-lo novamente. E, no estudo dos erros, uma coisa se deixa transparecer…
É que todas as conclusões tiradas de métodos falidos são “dogmáticas”, isto é, tentam se passar por incontestáveis. Por causa disso, sempre que alguém te disser algo como “é assim e pronto, acabou”, não baixe sua guarda. Claro que existem verdades que são incontestáveis: dois mais dois é quatro, todo solteiro é um não casado, entre outros. Mas mentiras são as que mais tentam te convencer de que são reais, enquanto que a verdade de fato não tenta fazer isso. Afinal, se ela é verdade mesmo, ela não precisa ser dita a você: um dia, você vai se tocar que é assim. A verdade não precisa de defensores: ela se impõe. Isso não quer dizer que não devemos falar a verdade, mencioná-la ou buscá-la, mas que, quando você fala a verdade pra alguém e a pessoa não acredita, não tente convencê-la. Deixe que ela sinta as consequências de seus atos e ela vai perceber que você tinha razão.
A ciência e sua validade.
O mundo objetivo não é obra dos nossos sentidos. Os nossos sentidos nos mostram imagens, sons e sensações que o mundo provê, dentro de suas limitações. Conhecemos o mundo primeiro por suas aparências. Nossos sentidos são em número limitado e em qualidade limitada. Então, a ciência que se apoia nos sentidos produz uma interpretação inteligível do mundo que é segura, mas não absoluta. Ela é uma interpretação entre outras (filosofia, ciência são apenas dois tipos de interpretação do mundo). Embora existam interpretações racionais que possam ser melhores ou piores em um caso concreto, nenhuma pode se afirmar absoluta: um ser humano imperfeito não pode criar uma interpretação perfeita do mundo. O mundo é como um texto: pode ser lido por todos e interpretado de diferentes formas.
Isso quer dizer que, embora você possa, aliás, deva acreditar na ciência pra que você possa viver bem, entenda que a ciência, por se apoiar nos sentidos, que são limitados, não é uma verdade absoluta. Tanto que ela se atualiza. Pense na ciência como o uso da razão na derivação de sentido dos dados sensoriais, que são limitados, a fim de superar, pela razão, as limitações desses sentidos. Se os sentidos fossem perfeitos e infinitos, não precisaríamos fazer ciência, bastaria só olhar, ouvir, sentir o mundo pra dele derivar a verdade.
Isso não quer dizer, de forma alguma, que você deva desacreditar da ciência porque ela se baseia em sentidos falhos. Esse é outro meio-termo que somos treinados a não ver: a ciência produz conhecimento provável e o provável é seguro. Ela não precisa produzir verdades absolutas pra ser uma forma de conhecimento válida. O fato de ela ser provável, em vez de absoluta, não indica que devamos jogá-la fora. Pelo contrário: a ciência pode não ser perfeita, mas ela é o melhor que temos. Num local onde nossos sentidos não funcionam, a mente não tem nada pra fazer. Se não pudermos usar nossos sentidos, o que usaremos? A especulação. E a especulação é uma forma de conhecimento menos útil que o conhecimento sensorialmente verificável e logicamente plausível. Um conhecimento que não se pode provar pelos sentidos é, na verdade, menos seguro.
Por causa disso, todo o conhecimento produzido pelo ser humano deve ser, idealmente, tanto logicamente plausível quanto sensorialmente verificável (mesmo que através de um instrumento). Mais que isso: o conhecimento deve, pra cativar também o leigo, ser apresentado de forma que os sentidos dele possam constatar a validade do que está sendo dito. Nossa posse mais íntima é o corpo, ninguém tira nosso corpo de nós, mas nem todo o mundo tem telescópio. Uma verdade abstrata não desperta interesse se os sentidos do aluno não são seduzidos por ela primeiro. Os sentidos são seguros e o que não passa por seus critérios é suspeito. Então, quando quiser convencer um leigo, pense nos meios que ele tem à disposição. E ele geralmente só tem à disposição a razão e seus cinco sentidos.
Se a ciência é sensorial, segue-se que ela só deve se ocupar de coisas sensorialmente verificáveis. Temas como a alma ou Deus não devem ser estudados pela ciência. Esses são temas especulativos e, como tais, só podem ser estudados especulativamente, de outra forma.
Desejo e ação.
Lembra que temos a péssima tendência de ver o mundo como uma série de antinomias? Uma delas é a clássica: “o ser humano é livre ou determinado”. Mas não é assim. O ser humano não é totalmente livre pra fazer o que quiser, mas nem por isso ele não tem nenhuma liberdade. A liberdade humana consiste em escolher dentre as opções disponíveis de ação. Isso acontece porque nosso poder é limitado: não temos asas, então só podemos escolher dentre as várias formas de locomoção terrena (ou aquática, se tiver um rio por perto, por exemplo). Isso é uma quantidade digna de liberdade pra seres limitados como nós. Mas dizer que, porque não podemos fazer qualquer coisa que queremos, não temos liberdade nenhuma… É um exagero, não acha?
A liberdade humana, então, se manifesta por ações. Se você pensa que querer é o mesmo que agir, vai ficar só na vontade. Nunca a mera vontade triunfa sobre nada. Se você manda alguém fazer algo e essa pessoa faz, o que realizou a ação foi o subordinado, não você, não sua “vontade”. Então o subordinado é mais digno de crédito, porque ele é quem possibilita que sua vontade seja efetivada. Quando alguém com vários subordinados consegue algo grande, arroga pra si todo o crédito pelas ações desses subordinados. Esse tipo de sentimento faz com que a classe dirigente da sociedade obtenha pra si o produto das classes subalternas, porque o chefe, só porque é chefe, pensa que tem o direito a tudo o que seu “subordinado” produz. Depois ele diz que não se mistura com pessoas vulgares ou pobres, sendo que essas pessoas é quem são responsáveis pelo sucesso dele. E isso é muito injusto. Por exemplo, numa empresa, o chefe manda e os empregados obedecem. Mas, se não fosse pelo empregado, o empresário não seria nada. Por isso tanto mais digno de crédito é quem faz do que quem manda.
Dominantes e dominados: chefes, pastores e o governo.
Isso abre uma possibilidade interessante: de que os trabalhadores passem a trabalhar somente pra si mesmos, conquistando a independência de seus patrões, tomando pra si a responsabilidade por suas vidas, sem partilhá-la com outros. Imagine só! “Trabalhadores seguindo seu próprio caminho!” Muitas pessoas fazem isso porque precisam. É o caso dos desempregados que a mídia de massa oportunamente chama de “empreendedores“. Mas existem outros que fazem isso sem necessidade, porque assim desejam: um homem forte, inteligente e útil à sociedade só se submeteria a um chefe se fosse necessário à sua sobrevivência. Um cara desses que se submete a um chefe que é pior que ele como pessoa, sem necessidade, está se prejudicando.
Se todo o mundo trabalhasse apenas pra si, se todo o mundo conseguisse tal audácia, os chefes veriam o quanto precisam dos trabalhadores. Um movimento desses seria rapidamente alvo de todo o ódio do sistema capitalista. Afinal, “de cada um segundo sua capacidade” é a primeira partícula do lema comunista. Isso não quer dizer que todo o mundo deveria deixar seus empregos, já que alguns morreriam se o fizessem, enquanto outros simplesmente preferem trabalhar pra alguém por temperamento ou comodidade. A dependência atrai, porque traz benefícios também. Eu mesmo não quero ser um empreendedor independente, porque realmente prefiro trabalhar pro estado. Cada pessoa decide se sua vida será melhor com ou sem um chefe. Quem tem meios de viver sem chefe deveria considerar isso.
Mas isso não quer dizer que o trabalhador que vive pra si está livre de qualquer tipo de servidão. Ainda haverá outros, que não precisam ser chefes pra dominar uma pessoa: os pastores corruptos. A religião tem valor formativo, mas também potencial destrutivo. Se o trabalhador, em seu tempo livre, vai à igreja, ele precisa estar atento… Porque existem líderes religiosos que usam a religião da mesma forma que o trabalhador usa sua força: como meio de enriquecimento pessoal. Tem gente que acredita em Deus de má vontade. A diferença é que o trabalhador não precisa explorar ninguém pra conseguir melhorar sua vida.
O líder religioso, que descobre na religião uma forma de exercer dominação, usará a fé das pessoas pra obter influência, dinheiro e um curral eleitoral, ao mesmo tempo que usa seletivamente a doutrina do amor e da tolerância ao sofrimento pra manter as ovelhas mansas. A doutrina da tolerância ao sofrimento não é inerentemente ruim: o cristão que sabe sofrer tolera melhor as dificuldades da vida. Não é de todo mal que o sofrimento tenha seu lugar na religião: é preciso ser capaz de rir até em situações sérias, pra que não se caia no desespero. O problema é dizer que o sofrimento e a miséria são razão de orgulho, desestimulando o crescimento pessoal dos fiéis, levando-os a se desesperar de seu próprio potencial, a não cultivá-lo, a se verem como seres sem qualidades que, por fim, passam a odiar a vida. Ensina-se a pessoa a sentir orgulho de seu próprio desprezo por si mesmo. Não querer evoluir por sentir prazer na sua infelicidade é algo de muito mal gosto.
Isso arruína a pessoa, que passa a ser dependente da igreja. E isso é ótimo pra igreja, porque sustenta a ideia que eles querem passar, a saber, de que você precisa da igreja pra viver bem. É assim que as pessoas manipulam os necessitados. O fiel que sente que a igreja está ajudando ele, se sentirá também em dívida. De dependente, passa a escravo. Por acaso isso glorifica a divindade? Não será melhor se o piedoso for também um homem da melhor espécie? Como uma religião que mantém seus fiéis miseráveis pode ser reconhecida como “boa”? Geralmente, as pessoas evitam grupos assim! De que serve o culto ao sofrimento? Segue-se, portanto que uma religião que mantém seus fiéis em más condições descredita a fé.
Não é assim que funciona. Se o homem não tivesse qualidades, se ele fosse tão ruim como o pastor corrupto diz que ele é, a escritura não diria que é possível a um jovem vencer o mal. A boa religião é aquela que fortalece o fiel e o estimula a fortalecer outros que sejam fracos ou oprimidos. Qualquer um vê as qualidades que os homens têm, mas parece que a religião porca treina as pessoas a olharem só pros defeitos, ignorando até mesmo as próprias qualidades. Isso estanca o aprimoramento. Ora, se a religião não está servindo para o aprimoramento do ser humano, tem algo errado com ela…
É preciso tomar cuidado com esses sujeitos, com esses pastores corruptos. Se um crente parece escandaloso ou indiscreto, evite-o. Deus não precisa nem de dinheiro nem de votos dados a um certo político. Por causa disso, um intelectual que tem fé provavelmente não vai à igreja; leu nos livros tudo o que as igrejas fizeram e ainda fazem de ruim. Ele vê que tem gente que mata inocentes por sua fé. Isso não quer dizer que ele odeie a religião, só quer dizer que ele sabe como uma igreja pode ser cruel e, por isso, não participa de nenhuma. Mesmo aqueles que são realmente anticristãos podem reconhecer o valor da religiosidade em geral e concluir que existem algumas religiões melhores que outras.
Por último, se você é cristão, você sabe que o cristianismo é uma religião de igualdade, uma religião que não deveria admitir gradações entre os fiéis. Se o único mestre é Jesus e o ensino dele está nos quatro evangelhos, pra quê ir pra igreja? Se submeta a Deus, não à igreja. Na verdade, é porque as igrejas são o que são que existem cristãos que têm vergonha da moral cristã. São cristãos, mas não dizem isso abertamente, porque sentem que podem ser julgados, não por seus defeitos, mas pelos defeitos da igreja e pelos defeitos dos que se dizem cristãos pelos motivos errados.
No entanto, não é só com o pastor corrupto que você deve se preocupar, se o que você quer é manter sua autonomia. Existe mais gente disposta a dominar você. A igreja ficará com ciúme se não for ela, mas isso não quer dizer muita coisa se outro dominador se sentir satisfeito em ter você como servo. Os outros dominadores são o governo, seus pais, seu cônjuge e qualquer pessoa que ache que você está em dívida com ela.
Vamos focar no governo. Para manter a aparência de legitimidade, um governo corrupto precisa ter a aura de virtude e passar a ideia de que ele não pode tudo. A melhor forma de fazer isso é usando a virtude da obediência. Como a obediência é um valor, mesmo que não reconheçamos, dominadores fingem se submeter a alguém ou outra coisa, como ao “povo” ou à constituição. Gregário, o povo se sente bem ao ver que seu governo também se submete mutuamente a ele, criando aquilo que chamamos de “estado” (associação entre governo e povo).
Como essa obediência é, supostamente, mútua, o governo, que, na verdade, pode mais que o povo, estimula mais obediência de seus súditos, enquanto secretemente se exime de obedecer ao povo de volta, como deveria ser. Tornam-se valores, estimulados pela máquina da propaganda, qualquer coisa que estimule a obediência ou torne o ser humano mais dócil, como a sociabilidade e a indulgência. Não precisar da república torna-se “mau”, precisar dela torna-se “bom”. Ironicamente, consideramos pessoas com essas qualidades como possíveis líderes aos quais nos submeteremos no futuro. É importante, então, que o governante tenha a aparência desses valores também.
O governo também estimula o patriotismo, que é uma espécie de adulação e coisa péssima pra quem é cristão, porque o patriotismo conflita com o amor ao próximo. O patriotismo é uma forma de manter a república como está, manter o estado de coisas, estimulando o amor pelo país. Mas esse amor é de um tipo específico: é o amor pelo que o país é, não por aquilo que poderia ser. Então, um sujeito subversivo, mas genial (porque muitos gênios também odeiam seu país), será odiado pelo patriota. Se o patriota for também cristão, ele estará em conflito consigo próprio: se ele ama a república, deve odiar o subversivo, que é inimigo público; se ele ama a Cristo, deve amar o subversivo, que é seu próximo. Entende porque o cristianismo é ilegal na Coréia do Norte?
Felizmente, o patriotismo é muito facilmente destruído pelos deslizes feitos pelos líderes da nação. Os nossos dirigentes podem agir tão mal, nos representar tão escandalosamente, que qualquer patriotismo se torna inviável. Quem representa nossa nação diante das outras é nosso governo. Um governo que nos inspira vergonha torna impossível qualquer patriotismo. Não tem como sentir orgulho da nação quando todo o mundo ri dela, ou a odeia.
O patriotismo é um estado de espírito e, como tal, irracional e embaraçoso pra quem dele se recupera. É também um ótimo meio de ferrar sua capacidade de adaptação a outros ambientes, porque o patriota sempre julga seu país como melhor que os outros. Ele também prejudica a relação com seus compatriotas, como vimos no parágrafos anterior. Odiar os “subversivos” é uma postura altamente conservadora, porque abandona ideias novas, que poderiam até enriquecer a república, à calúnia. É preciso que todo o mundo odeie essas ideias. O governo, usando a mesma máquina de propaganda que estimula a obediência, poderá promover censura e manipulação da opinião pública, quando essas ideias o ameçam. O governo que age dessa forma não está interessado em servir ao povo, mas garantir que o povo continue o servindo. Qualquer governo que empregue censura ou manipulação é suspeito.
Mas essa postura tem um grave problema: marginalizados, os subversivos podem chegar a um ponto em que não têm nada mais a perder. Abandonados pelos antigos amigos, pela sua “pátria mãe”, encontram novos amigos uns nos outros. É quando eles estão mais propensos a apoiarem uns aos outros, se organizarem e fazer seu ativismo. Quem tira tudo de uma pessoa, tira dela também o medo de lutar.
Mas como se emancipar? O primeiro passo é moderar sua gratidão. Ao retribuir um favor, a retribuição não pode te deixar numa situação pior do que aquela em que você estava antes de o favor ser prestado. Se assim é, você foi vítima de um golpe; trocou um mal por um mal maior. Portanto, se você tem que retribuir à igreja, aos pais, ao governo, a qualquer um que tenha te feito um favor, não permita que sua retribuição ferre você. Recuse o favor, por exemplo, se isso custar sua liberdade, seja artística, de pesquisa, de expressão ou de pensamento. Depois disso, evite pensar nos seus antigos dominadores. Se, após se emancipar, eles ainda habitam sua mente, sua emancipação não está completa. Não imortalize, mesmo que em sua memória, aquilo que é podre. Esqueça-os, viva sem rancor.
A pobreza intelectual da elite.
Há outro risco nessa divisão entre dominantes e dominados. Os dominantes aspiram o conhecimento do mundo, mas sem se misturar ao povão, que representa a maioria. Para conhecer o mundo, é preciso experimentá-lo. Então, se você só olha pra pessoas “iluminadas” como você, só com elas conversa, em vez de participar da miséria humana que aflige a maioria da população, você está experimentando o mundo em sua exceção, não em sua regra, porque o comportamento majoritário é a regra. Ora, o conhecimento da exceção é inferior ao conhecimento da regra, porque abrange menos casos. Esse conhecimento “elitista” é imprestável. Se devemos nos ocupar primeiramente da regra, é preciso se ocupar dos fracos, dos iletrados, dos pobres, que são a maioria, portanto a regra. Se fechar à regra é atitude de quem não tem vocação pro conhecimento. Logo, um cientista que não participa da sociedade, do povão, é menos produtivo, menos nobre e menos relevante. Quem se abstrai da miséria humana pra viver numa torre de marfim acaba tendo menos experiências de vida e seu conhecimento, até mesmo seu gosto, se torna muito restrito: a classe média tem medo de aparentar ter mau gosto, mesmo quando tem mau gosto e vontade de fazer coisas que seus pares considerem “brega”, “escandaloso” ou “de pobre”, o que fecha esses certinhos a um monte de coisas que o mundo tem de bom.
Aliás, pra quê fazer isso? O fato de uma pessoa ter “bom gosto” (uma característica que uma pessoa pode falsificar ou se forçar a ter) não garante que a pessoa é moral ou boa. São coisas diferentes. Na verdade, tem muita gente de bom gosto que é altamente arrogante e cheia de imundície. Muito da arte moderna, essa chamada “alta cultura”, é sublimação da crueldade: gostamos de ver os personagens se dando mal.
Essas novelinhas apreciadas pela classe média por exemplo. Mas já viu o tipo de música que os pobres ouvem? Não fazem referência constante ao sexo? Ora, o sexo é uma expressão do amor. Além disso, os incultos têm belíssimos rituais, particularmente os religiosos, e tradições lindas. A alta sociedade não tem nada disso, porque nada é sagrado pra alta sociedade. Uma pessoa de mau gosto pode ser boa e o bom gosto não é exclusividade da classe média. Donde decorre que gosto não quer dizer nada.
Outro problema dos intelectuais de elite é que eles são os mais interessados em fazer filosofia “desinteressadamente”. Se você só busca conhecimento “desinteressadamente”, você só encontrará uma direção real e produtiva quando alguém disser pra você o que você deve pesquisar. Pesquisadores “desinteressados” são, portanto, mais semelhantes a ferramentas que a seres humanos. Aliada à objetividade, a busca desinteressada pelo saber propociona uma imparcialidade tão grande que o sujeito parece deixar de ser humano: não toma partido de nada (vira um “isentão”), não afirma e nem nega para além dos dados que tem (incapaz de discurso diretivo), não emite juízos de valor, nem mesmo é capaz de sentir raiva, tristeza ou alegria (pela insistência em só observar a realidade de longe). Por causa disso, uma pessoa imparcial, objetiva e desinteressada não tem iniciativa; precisa ser provocado à ação por uma fonte externa. Não estou dizendo que a objetividade ou a imparcialidade são prejudiciais, mas que se tornam prejuciais quando a pessoa tem essa ideia de que o conhecimento deve ser buscado “desinteressadamente”, essa ideia de saber só pra saber, ou “saber pelo saber”.
Da justa valoração.
Como já foi dito, Nós temos a péssima tendência de ver o mundo como uma série de dicotomias. Uma outra dicotomia, esta bastante juvenil, é a de que tudo o que achamos que é “bom” tem que ser venerado, enquanto tudo o que achamos “ruim” tem que ser odiado. Lembre que há um meio-termo, talvez mais de um. Cada coisa merece um grau justo de admiração ou de reprovação. Se não fosse assim, todos os crimes teriam penas iguais. Mas como definir o valor que eu devo atribuir a alguma coisa ou ação? Quando se fala de ações, certamente não é pela intenção. Por exemplo: o direito muito raramente leva em conta a intenção de um crime ao julgar, porque nem sempre o mero homem é capaz de dizer o que se passa no coração do outro. Olhar pra intenção de um ato é julgar o ato sem conhecê-lo, sendo, portanto, uma forma de preconceito. Então, como valorar algo? Pelas suas consequências, que são inerentes ao ato, enquanto que a intenção lhe é externa.
Lembre que muitos ditadores começaram suas ditaduras com boas intenções. Por exemplo: a nossa ditadura militar começou como combate à ameaça de um regime impopular, que era o comunismo. Acabou que não havia essa ameaça. O “movimento democrático” então degenerou nos anos de chumbo. Outro exemplo: vender uma estatal importante, estratégica, pra acabar com a corrupção que nela ocorre, enfraquecendo, por seu turno, a independência nacional, porque o país terá que comprar aquilo que poderia estar produzindo (o que, por seu turno, aumenta o preço dos bens consumidos). Ao fazer uma privatização dessas, aquilo de que mais nos orgulhamos, nosso patrimônio, se torna concessão, dada a nós por outros. Por acaso uma empresa estrangeira em solo nacional é motivo de “orgulho patriótico”?
Por outro lado, esse mesmo pensamento pode levar uma pessoa a se recusar a fazer o bem, a ser um medíocre, por vergonha de suas motivações. É o caso da autocensura: ao perceber que algumas de suas ideias não podem ser discutidas em qualquer lugar, a qualquer hora, com qualquer pessoa, um filósofo ou cientista pode esconder o que pensa, se conformar e abrir mão de seu potencial. E por que ele pensaria que não pode falar o que pensa com qualquer um? Porque seu interesse transparece por toda sua pesquisa, mesmo quando ela conclui algo correto. Talvez o pesquisador até prefira não ter o conhecimento que tem. Infelizmente, isso não é coisa que se esconde por muito tempo. Isso é verdade não apenas na filosofia e na ciência, mas também na arte, porque o artista também tem motivações que ele não pode admitir. Talvez ele use sua arte pra se vingar de algo ou alguém, por exemplo, ou da sociedade que lhe proibiu a felicidade.
Como as pessoas julgam mal quem age, ou apenas parece agir, com interesses “errados”, ele prefere se colocar como obediente à opinião pública, por medo de ser considerado imoral. Condenar moralmente uma pessoa, porém, não é argumento. Só quem faz isso são almas pequenas que não podem te acusar de mais nada e nem podem refutar seu raciocínio. Mas e daí? Se você é imoral, mas bonito, inteligente, obediente à lei e rico, de que importa a reprovação de uma pessoa de moral, de um “homem de bem”, que provavelmente, no todo, não é nem metade do que você é? O lado bom disso é que esses pregadores da virtude eventualmente se tornam altamente irritantes e logo ninguém terá mais saco pra eles. É esse tipo de pessoa que transforma a moral num assunto nojento.
Lembre que houve uma época em que a homossexualidade era razão de vergonha. Os primeiros pensadores a defender a homossexualidade num mundo que odiava a homossexualidade provavelmente tinham medo de (por vezes com razão) serem acusados de serem, eles próprios, homossexuais. “Se você defende gay, você deve ser um; se você é um, você não quer o bem de todos, só o seu próprio!” Esse suposto egoísmo é uma intenção errada. Isso causa vergonha e um sábio envergonhado inspira suspeita. Mas isso também é injusto. Afinal, agindo com a mesma motivação, duas pessoas podem buscar objetivos diferentes. Então o que impede que pessoas com motivações diferentes busquem o mesmo objetivo? Uma pessoa que defende gays não necessariamente é gay. Mas e se ela for? E daí?
Não deixe que suas virtudes sejam transformadas em vícios. É isso que uma pessoa tenta fazer quando não aceita uma virtude que você tem. Ela tenta te fazer pensar que suas qualidades são, “na verdade”, defeitos. É preciso ter a coragem de olhar sinceramente pros seus “defeitos” e ver se são realmente defeitos como todo o mundo diz. Quem sabe? Talvez o que os outros apontem como um defeito seu seja, na verdade, sua melhor qualidade. Nossas vontades, necessidades, desejos mais secretos podem ser uma fonte da qual derivar uma nova virtude. Qualquer pessoa pode ser admirada, até aqueles que pensam que nunca seriam admirados. Portanto, não se deixe coibir pela vergonha. Isso, sim, é um defeito e defeitos não são úteis a ninguém, exceto àqueles que os exploram. Defeitos precisam ser eliminados.
Um filósofo não deve se entregar ao medo da reprovação. Siga sua pesquisa se você acha ela útil ao mundo, não importa qual é a motivação inicial. E, se seu raciocínio estiver correto, não desconfie dele. Toda nação produz uns poucos homens de respeito, os quais são evitados num primeiro momento até terem seu potencial reconhecido. Na verdade, uma ideia pode só ser entendida depois que você morrer… Então tente não se sentir muito mal se parece que todo o mundo odiaria você, sua pesquisa ou suas motivações. Se oriente pelos resultados. Se tiver medo, encontre alguém que partilhe de suas ideias, pra que vocês as desenvolvam juntos. Afinal, quem tem boas ideias procura alguém que as desenvolva e quem entra em contato com boas ideias tidas por outros acaba querendo desenvolvê-las. É bom que hajam esses dois tipos de intelectual: o que produz e o que desenvolve. Isso é bem produtivo. Mas, se você não encontrar, tudo bem. A solidão também é virtude, afinal de contas, já que nos purifica da sujeira que contraímos no convívio com outros.
Mesmo assim, só o medo de uma motivação “errada” ser atribuída ao seu trabalho pode causar desconforto em defender certa causa. Isso mostra tanto como uma intenção percebida pode ser fatal pra credibilidade de alguém quanto mostra como a intenção na verdade não importa pros resultados. Invocar a intenção, hoje, é visto como falácia (argumento inválido), geralmente feito por gente que quer deixar o outro com vergonha de sua posição. Ignore essa gente. Deixe que briguem entre si. Infelizmente, nem todos conseguem ignorar e se deixam consumir. Esses abandonam seu modo de pensar anterior e pedem desculpas por terem pensado com a própria cabeça.
Isso é ainda mais grave quando a pessoa tem a sensação de ser a única que pensa daquele jeito, que nenhum outro bom cientista apoiaria sua causa. Se você fosse o único a apresentar certos resultados, seria mais fácil que alguém dissesse que você defende certas coisas motivado por um interesse particular que não condiz com o interesse público, mesmo que, no fundo, condiga.
A vergonha nos leva a vandalizar nossas próprias crenças, quando são, ao mesmo tempo, corretas por consequência e dignas de vergonha por suas motivações “sujas”. Deturpamos elas pra que as odiemos como todo o mundo também odeia. O lado da maioria nem sempre é o certo, mas sempre é o mais seguro. Mesmo que o mundo precise saber de algo que lhe é pertinente, se a intenção for posta em questão, o pensador será convertido em pária. Se essa reprovação atingir também sua família, amigos ou outros entes queridos, ele pode até preferir nunca ter pensado certas coisas.
A tirania da inteção também leva pessoas a esconderem o próprio sucesso, não porque conseguiram o sucesso ilicitamente, mas porque suas motivações foram baixas (conquistar a atenção das mulheres, por exemplo). Numa situação dessas, as pessoas sagazes, que sabem como se dar bem na vida, adotam uma vida dupla quando se dão bem por razões reprováveis. Ele não pode permitir que suas virtudes o ferrem. Então, ele aprende a ser hipócrita.
É o caso do filósofo ou do cientista que, só pra ficar rico, estuda pra descobrir algo que revolucione o mundo. Quando ele descobre, ele diz que seu esforço é motivado só por “apreço à comunidade” ou pela “busca desinteressada da verdade”. O que ele está fazendo aqui é ganhando o dobro de admiração fingindo modéstia, fingindo que ele mesmo não é lá essas coisas, só um pesquisador que, como que por acaso, fez uma descoberta. Pra trazer uma pessoa pro seu lado, comece fingindo que você não é superior a ela, mesmo que seja. Não é uma falsidade? Sim, é. Mas ele precisa manter uma imagem boa.
As pessoas se sacrificam pela própria reputação, como se a reputação fosse mais importante que sua própria integridade. A imagem é até mais importante do que aquilo que a pessoa tem a dizer. Temos o instinto de autopreservação que preconiza que sobrevivamos, mas também que nos mantenhamos na melhor condição possível. A falsidade, quando gerada naturalmente, é uma manifestação do instinto de sobrevivência, portanto. Por isso a falsidade e a hipocrisia são tão comuns: porque são úteis ao bem-estar de quem as emprega.
Mas nada disso aconteceria se a intenção não importasse, e sim o resultado. Algo não pode ser julgado por suas intenções, por suas motivações. A vergonha das nossas intenções, dos nossos impulsos, dos nossos desejos, erra vergonha precisa ser desaprendida. Foque nos resultados, sempre. A intenção oculta, a consequência revela. Falar da intenção de um ato pode ser uma tentativa de distrair o ouvinte das consequências.
Algo só pode ser julgado bom, ruim, melhor ou pior segundo suas consequências. É por isso que diferentes crimes têm penas diferentes: quanto pior as consequências, maior deve ser a pena. É isso que todos deveríamos fazer. Algo é mau quando faz mal e algo é pior quando faz mais mal. Por outro lado, algo é bom quando faz bem.
A religião e o comportamento humano.
É normal ser religioso. Não houve, que eu saiba, uma nação composta totalmente de ateus. É verdade, ninguém nasce tendo fé. A criança aprende a ter fé. Mas, mesmo quando a criança não tem fé, conforme ela cresce e se faz as grandes perguntas sobre a origem do universo, ela começa a se perguntar se não haveria algo de eterno que ocasionou a vinda do universo ao ser. É, na verdade, anormal não passar por isso em nenhum momento da vida, mesmo que depois tal estado seja abandonado. No ocidente, a religião hegemônica é o cristianismo. Mas o cristianismo vem em três sabores: católico romano, católico ortodoxo e protestante. Vamos considerar os dois primeiros como um só.
Vocês já perceberam como o protestantismo parece pegar mais nas nações do norte e o catolicismo parece pegar mais nas nações do sul? Talvez isso tenha a ver com nossa herança cultural… As religiões primitivas do sul eram religiões de obras. Você tinha que fazer algo pra ser salvo. As religiões primitivas do norte tinham deuses menos exigentes. O catolicismo então seria mais apreciado por povos que já tinham religiões baseadas nas obras, em rituais, como as religiões nativas da América do Sul e as religiões de matriz africana. Esses povos já imaginavam que Deus não exigiria deles somente a fé. Se ele diz, “ame seus inimigos“, ele quer que tenhamos uma atitude eminentemente prática de amor aos nossos inimigos; não simplemente um amor professado, mas um amor que se reflete em obras.
Entre os povos do norte, os celtas também eram assim. Mas os outros povos não tinham regras muito rígidas em sua relação com a divindade. Com o advento da reforma protestante, as nações do norte voltaram a entrar em contato com essa tendência original. Mas porque a aceitaram tão prontamente?
É que as nações do norte estavam também passando por um período de ascenção burguesa, no qual o trabalho duro tinha muita importância. Só se dedica à religião quem tem tempo livre e ninguém tinha tempo pra Deus, nem trabalhadores e nem chefes. Como ainda eram sujeitos de fé, mas que não tinham saco pros rituais católicos, resolveram abandonar o ensino religioso tradicional e cultivar a fé. Hoje em dia, quando o trabalhador tem uma jornada de oito horas de trabalho e tem dois terços do dia livre, ele pode ser mais religioso que o chefe, que pensa em seu negócio diuturnamente. A ligação entre Deus e a ocupada classe média está prejudicada por causa disso. Isso também implica dizer que os desempregados se apegarão mais fortemente à religião, tornando-se presas fáceis dos pastores corruptos dispostos a tirar deles o pouco que têm.
A admiração pelos santos.
Em um mundo como esse, uma pessoa casta, pobre e que se entrega à igreja de todo coração é algo raro e, por isso, interessante. Por que alguém iria fazer isso? Por que alguém iria querer viver longe dos prazeres da vida? Ele deve ter um bom motivo. O santo desperta curiosidade nas pessoas comuns. Elas querem saber suas razões. Mas não só curiosidade; o santo também desperta admiração. Afinal, sua existência nos mostra que a força de vontade pode vencer a tentação de se entregar ao prazer, à corrida do ouro e à libertinagem. Isso é singular. Mas será que não há um prazer escondido nessas práticas?
A crueldade pode ser desferida contra si próprio, particularmente na religião, na forma de penitência, jejum e autoflagelação, que são pra alguns um prazer e não um desconforto. Então, o comportamento santo pode ser uma canalização construtiva do impulso agressivo para si próprio. Isso não é sacrifício. É só a forma que a pessoa tem de sentir um prazer que lhe é peculiar. Em todo caso, pode ser que ser santo cause mais suspeita que propriamente admiração. Isso ocorre mais quando o santo se destaca pela virtude do amor. O amor ao próximo, quando exercitado perfeitamente, causa suspeita porque ninguém quer perturbar um santo e nem ser vítima de um amigo falso. Quando uma pessoa muito amorosa se aproxima de você e te faz muito bem, talvez mais do que você pagar, você não acharia que tem alguma coisa errada, que a pessoa está armando contra você?
As relações entre os sexos.
Homens e mulheres são diferentes e ninguém poderá negar isso. Por causa disso, o contato entre os sexos enriquece. Até aí, tudo bem. Talvez a crença de que homens e mulheres não são profundamente diferentes esteja por trás da insatisfação conjugal. Tanto homens quanto mulheres nutrem expectativas altas demais um do outro. O amor não pode tudo. Pelo contrário: o amor é fragilíssimo. É muito fácil se decepcionar com o amor.
Passar a vida inteira com a mesma pessoa revela quem ela é. Você se apaixona mais pela ideia que você faz do seu parceiro do que pelo seu parceiro em si. Na verdade, uma pessoa que ama outra se esforça em construir uma imagem amável, que não condiz com o que ela é, por exemplo, falando muito de si mesmo, pra que o amado não preste atenção nos defeitos do amante. Outras vezes, o amante nem se esforça em fazer isso: é porque ele está amando que tudo aquilo que há de excepcional nele vem à tona. Aí, quando o amor começa a esfriar, ele vai voltando ao normal e a pessoa por quem você se apaixonou começa a desaparecer. Quer dizer: você se apaixonou pela pessoa quando esta não estava em seu normal. Isso é um campo fértil pra decepções de todo tipo, quando vemos que o outro não é como pensávamos.
Resolver esse problema não é fácil, porque requer honestidade absoluta. Uma pessoa só pode realmente outra quando a conhece completamente. Se a pessoa ama até seus defeitos, ela realmente ama você. Mas, para isso, é preciso que ambas as partes se mostrem como realmente são, suas qualidades e também defeitos. Por causa disso, se uma pessoa exige que você mude por amor, essa pessoa não ama você do jeito que você é. Pelo contrário: ela quer te transformar em outra coisa. Dessas pessoas você se afasta.
Outra fonte de desentendimento são como os sexos lidam com emoções e desejos. As emoções no homem e na mulher progridem em ritmos diferentes. Deve haver uma explicação pra isso, talvez hormonal. Por exemplo: a raiva do homem é intensa e de curta duração. Na mulher, a raiva pode ser intensa e de longa duração. Os homens também têm, por razões culturais, dificuldade em demonstrar ternura de um jeito aceitável. Dá vergonha, sabe? Mas isso não quer dizer que o homem não gosta da ternura, do abraço (gesto de amor à humanidade inteira), do calor humano. Você não pode, portanto, ao entrar em um relacionamento, esperar que seu parceiro do sexo oposto lide com as próprias emoções do jeito que você lida.
Veja o exemplo dos incels, isto é, celibatários involuntários (pessoas que desejam se relacionar, mas, por qualquer razão, não conseguem). O homem incel pode, dado estímulo certo, rapidamente se tornar misógino, porque é mais difícil ao homem odiar a si mesmo devido a testosterona (que proporciona autoconfiança e, a bem da verdade, uma menor capacidade de ver as próprias falhas). Ele pode culpar as mulheres por seu fracasso. Já a mulher, quando incel, odeia primeiro a si mesma (particularmente seu corpo), só depois pode vir a odiar os homens.
Observe também o que ocorre quando a relação torna-se sexual. Sexo é algo muito antecipado, mas também muito problemático, particularmente em relações monogâmicas. Se um dos dois lados começa a sentir ciúme, a coisa fica grave. O homem cego de ciúme pode pegar uma arma e tentar matar a mulher, mas a mulher cega de ciúmes, quando quer vingança, será mais elaborada e cruel, mesmo que não mate seu alvo. Ela pode, por exemplo, retribuir o mal que lhe foi feito não diretamente ao homem, mas outra coisa próxima dele. Sendo mais sensíveis à emoção, o potencial feminino se mostra verdadeiramente quando motivado por emoção, especialmente amor e ódio. Mas uma pessoa que realmente ama o outro chegaria a esses extremos quado sente ciúme? Não, mas o problema é que a sensualidade (a qual estimula o sentimento de posse) cresce mais rápido que o amor.
Por último, temos as aspirações. A mulher tem um desejo de independência e é estimulada a isso, o que é normal, já que ela passou maior parte da história sob o domínio do homem. O problema é que… isso não é atraente pro homem. Porque o processo de emancipação é feito por meio de exigências. Às vezes, as exigências são feitas de tal forma, que temos a sensação de que o feminismo não é sobre igualdade, mas sobre supremacia. Ninguém quer ficar com uma pessoa exigente, isso inclui o homem. Talvez isso explique porque se diz que “homens não gostam de mulheres independentes”: associam a mulher independente com a mulher mandona, a mulher facilmente ofendível, que desconfia de elogios e gestos de amizade ou ternura.
Entre as objeções postas ao feminismo estão a de que o homem, historicamente, se sensibilizou com as necessidades femininas, mas o feminismo não se sensibiliza com as necessidades dos homens (e não estou falando da “necesidade de domínio”). Outra objeção é a de que as mulheres e o feminismo frequentemente se desentendem. Ainda outra é a de que o feminismo parece que deixa as mulheres mais sensíveis, de forma que nunca foi tão fácil ofender ou machucar uma mulher como é hoje. Por outro lado, um homem sensível, seja por educação ou por medo de machucar a mulher, é indesejável como parceiro romântico. Será que a emancipação não traz também consequências negativas para a mulher (ou para a sociedade), além das positivas, como direito de votar e de trabalhar? Por que os homens que supostamente amam as mulheres não as alertaram também dos riscos implícitos na emancipação? Será que foi a coisa correta a ser feita? E se foi, poderia ter sido feita de uma forma melhor?
Essas coisas podem tornar o convívio entre os sexos bastante desconfortável e improdutivo, especialmente para intelectuais, que terão que dividir o tempo entre sua pesquisa e seu parceiro. Se você considera sua pesquisa muito importante, é melhor deixar o amor de lado. Você deve prestar atenção à sua pesquisa como a criança presta atenção ao seu jogo.
O ódio.
Não é possível sentir ódio de qualquer um. Para sentir ódio de alguém, é preciso reconhecê-lo como igual ou superior a nós. Quando alguém inferior faz algo desagradável, você não fica com raiva, mas ri dele. Então, sempre que você sentir ódio, saiba de que este um sinal de que a pessoa que você odeia tem também uma boa chance de revidar e arruinar você. Se você não tivesse essa sensação, você nem se importaria.
Sentir ódio é uma coisa humana. Mas uma habilidade sobre-humana é ser capaz de manter o bom humor sendo odiado por todo o mundo. Uma pessoa dessas, quando nos faz bem, sempre nos põe numa saia justa, porque não temos ideia de como retribuir a boa ação que nos foi feito por um pária. Pensamos logo se não há malícia na bondade que nos foi feita. Isso quebra a nossa capacidade de gostar da pessoa.
Ciência da moral?
Uma ciência da moral é uma grande presunção. A moral é mutável, segundo tempo e lugar. Existem morais locais, morais de tempo, morais políticas, morais religiosas… mas, para a pessoa que acredita em sua própria moral, tudo que contradiz essa moral é imoral e “degenerado”. É por isso que moralistas, gente com a qual se deve tomar cuidado, são etnocêntricos e odeiam povos que eles considerem “primitivos”, como índios e sociedades pré-industriais: sentem que sua moral é a única que pode trazer “verdadeira” felicidade. É como se quem não seguisse aquela moral tivesse que ser infeliz.
Confrontar outras culturas, pro moralista, pode ser altamente desconfortável, porque mostra que aquilo que ele considera correto é apenas uma das formas de se obter felicidade. Talvez até outras morais façam melhor esse trabalho, mesmo sendo escandalosas… o que desqualifica a moral do sujeito como sendo “a melhor” (portanto, “a correta”). Se formos olhar assim, a melhor moral é aquela que faz bem a todo o mundo, não só a um grupo. Tal moral será estimulada por muita gente. Por exemplo: todo o mundo quer viver bem. Então por que não adotamos os costumes das nações mais longevas e saudáveis, em vez de simplesmente assumir os costumes do norte?
Para contornar o problema da moral mutável, a ciência da moral tenta procurar os fundamentos inerentes a toda a moral. Isso cria outro problema: ninguém está de acordo quando a esses fundamentos e todo o mundo parece ter encontrado fundamentos diferentes em diferentes números, o que nos leva a pensar quanto dessa ciência é arbítrio. Formular leis absolutas da moral, como se faz com a física, é algo muito perigoso, porque você não pode facilmente provar que algo é realmente um “fundamento moral”. Ora, na ciência, tudo deve ser provado. Se uma ciência dessas quiser existir, precisa ter a modéstia de, como fazem as outras ciências, não se pronunciar definitivamente sobre aquilo que não se pode provar.
Além disso, se a ciência deve se orientar por problemas, uma ciência da moral precisa identificar quais são os “problemas morais” que se quer resolver. Mas não é isso que se observa. As tentativas de estudo da moral, quando feitas por moralistas, rapidamente degeneram em meios de justificar e aplicar a moral na qual eles depositam fé. Não há problema na moral, nem problema da moral. O problema é externo: como aplicá-la. Isso não é ciência da moral, mas propaganda.
A moral e a natureza humana.
Para ser justo, a moral tem uma utilidade. Primeiramente, porque o ser humano fica paralisado quando está numa situação de liberdade total. Não ter obrigações, não ter objetivos, não ter métodos, não ter horizontes, isso não é tédio? Uma pessoa nessas condições começa a desejar ter algo pra fazer, ou vai enlouquecer. Assim, uma liberdade total predispõe o ser humano à incapacidade de escolha e, consequentemente, à inação. Por outro lado, colocando regras ao seu próprio comportamento e dirigindo-os a um fim fixo, o ser humano se organiza e se otimiza pra aquele fim, aumentando suas capacidades e se tornando uma pessoa melhor. Por causa disso, formular e se submeter a um conjunto de regras não necessariamente é uma violação à natureza, mas pode muito bem ser uma manifestação dela.
Uma sociedade próspera e que permite o desenvolvimento humano é uma sociedade que emprega uma moral que favorece o desenvolvimento humano, reduzindo suas paixões a um nível em que possam ser satisfeitas. Não é qualquer moral que faz isso, contudo. Existem morais que proporcionam exatamente o contrário: a redução do ser humano à miséria, fenômeno também chamado “decadência”. Então, é preciso escolher qual moral melhor proporciona seu desenvolvimento. Se não existir, ainda há a possibilidade de inventar uma. Depois, você deve se submeter a essa moral, o que requer disciplina.
Mas não acaba aí. Muitas morais pessoais são elevadas ao grau de morais comunitárias. Como o ser humano é um bicho gregário, ele tem um instinto de obediência. Ao reconhecer um líder, o ser humano se submete à moral do líder, mesmo que discorde em certos pontos, porque, ao menos me tese, só os mais aptos devem governar. Até aí, tudo bem. É quando a moral vai mudando e se tornando mais sufocante, colocando a pessoa em conflito com seus outros instintos, exaurindo o homem na luta contra si próprio, que a coisa fica feia. Isso gera infelicidade, insatisfação e, em homens singulares, o desejo de atacar a moral, por reconhecer nela um obstáculo ao seu desenvolvimento! A moral deve resultar no aperfeiçoamento da humanidade, particularmente intelectual. De que me serve uma moral que me mantém medíocre ou que me deixa ainda mais miserável?
Um exemplo de moral que prejudica o desenvolvimento é a obsessão moderna pela igualdade. Tornar todo o mundo o mais igual possível implica reduzir o potencial de pessoas promissoras. É como manter o superdotado na terceira série, só porque é adequado à sua idade. Além disso, a obsessão pela igualdade nos leva a nutrir preconceitos pelos diferentes, porque a diferença convida o tratamento desigual. Fora que a igualdade absoluta é uma desvantagem em termos de sobrevivência: se todos fossem iguais, o primeiro período de fome, o primeiro inverno rigoroso, que matasse um homem teria potencial pra matar todos. Isso não quer dizer que as leis devam ser diferentes entre as pessoas, isso não quer dizer que um grupo é melhor que o outro. Mas, sim, que fora do âmbito das leis (da isonomia), a diferença é algo a ser celebrado. Por isso, é preciso que a raça humana seja a mais plural possível, é preciso que hava variedade entre os humanos, diversidade.
Então, por que nos submetemos a líderes, se isso depois pode se voltar contra nós? Ser liderado exime a pessoa do peso de se responsabilizar por suas ações, o que torna a democracia representativa, por exemplo, muito atraente. Eis a razão. É ótimo culpar os políticos e não a nós mesmos por tudo de ruim que ocorre em nossa vida. A gente se sente menos fracassado. Isso também nos poupa de planejar nosso futuro, porque elegemos quem o planeje pra nós. Então, adotar um líder (e suas leis, sua moral, que se torna a moral dominante) não é algo feito de graça. Ninguém obedece, ninguém se sacrifica, se não houver benefício. A democracia é o sistema que permite mais benefício em troca do mínimo de dor, mesmo que produza um tirano de vez em quando, o que torna muito popular.
Relação entre filosofia e ciência.
A filosofia e a ciência são duas formas racionais de compreender o mundo, que se diferenciam por seus métodos. A ciência usa o método científico, baseado na quantificação e experimentação. É preciso que algo seja demonstrável pra ser crido e que seja repetido um número suficiente de vezes pra que se possa extrair uma regra geral que represente a regularidade de um fenômeno. Se algo não pode ser experimentado sensorialmente (metafísica, lógica, epistemologia, teoria do conhecimento) ou resiste à quantificação (ética, estética, arte, política), esse algo deve ser estudado pela filosofia.
Como a filosofia tem vários métodos, ela pode transitar no terreno da ciência e em terrenos onde a ciência não transita. Se ela é tão abrangente, seria um desperdício que a filosofia se submetesse à ciência, pela mesma razão que é um desperdício que um filósofo passe a vida toda estudando uma coisa só: ambas as atitudes causariam reduções desnecessárias no seu campo de estudo. O filósofo deve criar valores, mas, para fazer isso, ele deve lançar do máximo possível de conhecimento disponível. Logo, o campo de estudo da filosofia (virtualmente qualquer coisa) não deve ser reduzido. Além disso, a filosofia deve se apropriar também daquilo que é produzido pela ciência como elementos de sua reflexão.
Isso não quer dizer que a ciência é inferior: seu método enxuto permite ir mais fundo em um objeto de estudo, o que tem produzido resultados inegáveis. Só quer dizer que é ridículo tentar posicionar uma como superior à outra. Elas são complementares. Se a filosofia desaparece, apenas a ciência resta, mas a ciência não tem nem pode buscar respostas pra tudo. Numa situação dessas, se a ciência não tiver resposta, um problema é dado como insolúvel! E agora? Disso decorre que a filosofia não deve almejar ser uma ciência, nem a ciência deve almejar ser filosofia.
O ceticismo.
O ceticismo é a ideia de que as certezas disponíveis no nosso tempo (ou até em qualquer tempo) não são seguras e que devemos duvidar delas. Isso não é uma atitude sempre ruim. Há diferença entre o ceticismo e o criticismo: o cético duvida, o crítico julga, apontando os erros pra que estes sejam depurados. O ceticismo é bom quando não mata a vontade da pessoa, quando não coíbe seu potencial: duvidar das certezas disponíveis não quer dizer que nada exista de seguro em algum lugar.
Já o ceticismo levado ao extremo de duvidar de tudo é uma tentativa de acalmar o espírito, porque permite duvidar também das coisas ruins e inquietantes. “Ah, a chance de um colapso climático não é tão grande”, “não faz muita diferença se a Terra é redonda, plana ou em forma de cuia de beyblade“, entre outras formas de se tornar acomodado pra não enfrentar um debate. Além disso, o cético, quando conformista, usa seu ceticismo oportunamente pra extender um debate a fim de que ele não conclua. Afinal, se concluir, haverá um curso de ação e direção de mudança. Se você quer permanecer na mesma condição, questionará ambos os lados de um debate, se ambos os lados desejam proporcionar mudança nas condições de vida. Está no interesse de um cético conservador que esse debate não conclua. Por isso, parece às vezes que os céticos não querem a conclusão de nenhuma discussão.
Observe, no entanto, que somos mais inclinados à certezas. Então o cético não é cético porque quis se tornar cético, mas porque precisou se tornar um. Isso ocorre, por exemplo, quando duas gerações ou dois povos se encontram de maneira tal que as certezas de um de outro são abaladas. Pra evitar o conflito, a pessoa começa a se comportar ambiguamente, “você não é melhor que eu e nem vice-versa”, o que permite que a pessoa mantenha seu modo viver sem interferir no modo de vida do outro. Isso implica dizer que uma pessoa que se torna cética, que duvida de tudo, pode estar se comportando assim porque sente que aquilo que ela tem por precioso está sendo questionado. Então, se tudo for questionável, aquilo que ela acredita, não como correto, mas como aceitável, passa a ter tanto valor quanto a posição do outro. Seu estilo de vida é, então, mantido. Se você não pode ganhar, você empata.
Insurreição dos ressentidos.
A vida é violenta. As primeiras sociedades foram construídas à base da violência. Isso imediatamente cria dois grupos: os dominados e os dominadores. Essa cisão entre grupos naturalmente convida a criação de tipos diferentes de moral: a moral dos dominadores e a moral dos dominados. Antes de entrar em detalhes, é preciso dizer que tais morais não são mutuamente exclusivas e que uma mesma pessoa pode, em sua moral pessoal, carregar elementos dos dois tipos de moral (dominadores e dominados).
Na moral dos dominadores, é a pessoa quem justifica o ato. Quem domina não se importa muito com o que é certo ou o que é errado, mas sim com o que é forte e o que é fraco. Nessa moral, não existem os conceitos de “bom” ou “mal”: é moral aquilo que agrada ao forte, não aquilo que é “bom”. Assim, o nobre atribuía valor às coisas, não as coisas que tinham valor em si mesmas. Claro que pessoas assim quererão levar aqueles sob seus cuidados a uma condição de força e de avanço. Só que o desenvolvimento, não apenas da nação, mas do próprio homem requer uma sociedade hierárquica. Como esses dominadores identificam moral com agradável (e, no caso, agradável a eles), é claro que uma hierarquia na qual eles estão no topo será uma hierarquia opressiva. Isso cria uma massa de excluídos e explorados, extremamente insatisfeitos com sua condição.
Se os fracos passam a criar sua moral, a criarão em oposição à moral dos fortes, considerando coisas como a violência, a astúcia e a riqueza como “más”. Não é mais a pessoa quem justifica o ato, mas o ato que justifica a pessoa. Existem, então, boas e más ações. Para os oprimidos, “bom” é aquilo que permite a sobrevivência do grupo e permite a mútua compreensão de seus integrantes (sociabilidade, compaixão, amor ao próximo, cultura, língua, solo, pátria) e “mau” é aquilo que ameaça sua sobrevivência (violência, intolerância, arrogância). Tal moral permite que o grupo sobreviva ao perigo, porque um grupo é mais forte quanto menos se desentende. Até aí, tudo bem.
O problema é que, numa moral em que você é justificado por suas virtudes e boas ações, você precisará fingir ser virtuoso caso você não seja. Assim, pra aumentar o próprio valor numa sociedade dessas, muitos indivíduos aprendem a ser hipócritas, falsos. Além disso, a virtude, por trazer valor à pessoa, ironicamente passa a fomentar a vaidade. Você sente orgulho (que é um vício, segundo tal moral) de ser humilde, pobre, modesto, manso (todas coisas que são virtudes). Também porque seu valor é atribuído por virtudes, sobretudo virtudes percebidas, essa moral também escraviza todos os que a adotam à opinião pública.
Uma pessoa dominada e ressentida quererá dominar, quererá fazer a sua moral. Mas ela não pode dizer que quer domínio, porque isso a tornaria tão ruim quanto seus dominadores. Então ela racionaliza seu desejo por vingança ou domínio como desejo por liberdade. Agora o caminho está aberto pra guerra começar. E, quando ela termina, quando os dominados estão no poder, sua moral, a moral para a qual há coisas boas em si e más em si, se torna a moral dominante. Esses valores são passados às gerações seguintes através tanto da educação pública como da educação familiar, pois o objetivo de ambas as formas de educação é fazer a geração seguinte adotar os valores morais da geração passada. As grandes revoluções morais foram tidas como subversivas, foram coisas contra as quais os jovens foram alertados, mas os jovens daquela geração agora são adultos e passam seus valores às gerações seguintes, as quais podem ou não tornar-se “subversivas” também, aceitando ou rejeitando os valores que os mais velhos gostariam que os mais novos adotassem. O filho não é o pai. Não há garantia de que o filho será como o pai.
Recomendações.
O grande problema do pensamento leigo é ver as coisas dicotomicamente: algo sempre é “bom” ou “mau”, sem nada entre os dois. Existem outras dicotomias, como “belo” e “feio”, “justo” e “injusto”, “útil” e “inútil”. Esse modo de ver as coisas é simplista e não reflete a natureza nem física e nem espiritual dos seres humanos. É preciso admitir que existem coisas entre os dois extremos. É inaceitável, hoje, uma filosofia que veja as coisas dessa forma no âmbito moral. Claro que isso não quer dizer que extremos não existem, mas quer dizer que a existência de extremos não invalida a existência do meio-termo. Além do mais, a existência de um meio-termo é fatual em situações naturais e na atividade humana, mas ela não é fatual em algumas outras áreas do conhecimento, como a lógica e a matemática, que lidam com o real em sua forma mais simples. Não existe meio-termo nessas áreas. Na lógica e na matemática, não existe algo como “meia-verdade”. Já em coisas como moral e cultura, tal conceito pode existir, uma verdade que não foi contada por completo ou um discurso que comporte uma mescla de falsidade, o que torna a visão dicotômica prejudicial na avaliação de doutrinas morais e culturas humanas.
E de onde vêm nossos conceitos de “bem” e “mal”? Se a análise de Nietzsche estiver correta, esses conceitos nem sempre existiram e foram criados quando o ser humano passou a ver as ações como dignas de valor, não as pessoas. As ações, portanto, dignificam a pessoa (a chamada “moral dos escravos”), não o contrário. O fato de uma pessoa ser forte, inteligente ou bonita não torna tudo o que lhe agrada “moral”, pensam os oprimidos, que sofrem nas mãos dessa pessoa. Como oprimidos só podem sobreviver em grupo, “boas” são as ações que propociam a conciliação e, portanto, a sobrevivência do grupo. É “mau” aquilo que me aliena desse grupo ou que trabalha pra sua dispersão. Em outras palavras, “bom” é o que é útil ao grupo, à sua coesão e à sua sobrevivência. Esses conceitos de bem e mal, embora sejam bons pra manutenção do grupo, podem encher o saco dos sujeitos excepcionais que nascem nesse grupo e veem nessas regras um obstáculo ao seu crescimento. Esse é um caso clássico em que o interesse coletivo conflita com meu interesse particular. Mas é bom que casos assim ocorram, porque põe a moral dominante sob escrutínio, o que pode levar ao abandono de conceitos ultrapassados. Se isso não resultar num mundo com sujeitos mais livres, pelo menos resultará num mundo com sociedades mais justas.
Tais sujeitos aparecem de vez em quando, inclusive hoje. Se eles forem também intelectuais, eles têm potencial pra depurar a filosofia de seus preconceitos, criando uma filosofia nova, que proporcione o desenvolvimento humano, que deveria ser seu único objetivo. A filosofia, pra se justificar, precisa tornar o seu adepto uma pessoa melhor. É preciso que todos os filósofos tenham esse objetivo em mente, em vez de praticar filosofia “desinteressadamente”. Se bem que, a bem da verdade, eu não acho que ainda existam filósofos fazendo isso hoje. Acho que a maioria percebeu que o melhor uso da razão é o aperfeiçoamento humano.