Pedra, Papel e Tesoura

30 de junho de 2020

Leituras da semana #10.

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Continuando a leitura de: Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche); Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud); Arte poética (Aristóteles); A Bíblia Sagrada (Jehovah); O anticristo (Nietzsche); Antologia ilustrada de filosofia (Ubaldo Nicola); A arte de escrever (Schopenhauer); Assim falava Zaratustra (Nietzsche); Aurora (Nietzsche).

Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche).

Nietzsche aponta que, já em sua época, havia uma tendência a considerar a ciência como mais importante que a filosofia. Pra ele, isso acontece por uma variedade de razões, mas principalmente porque os filósofos de sua época acabavam, com seus livros, inspirando desprezo pela filosofia. Imagine uma mulher lendo Parerga e Paralipomena, de Schopenhauer, o quão absurdo ela iria achar aquilo. Nietzsche afirma, apesar de sua reverência por Schopenhauer, que o ciúme que Schopenhauer tinha de Hegel acabava por ferrar a recepção de sua obra.

Parece que os filósofos mais bem quistos na academia da época de Nietzsche eram justamente os mais inúteis e complicados (dentre os quais não estava Schopenhauer). Também os mais imparciais, sem objetivos, “desinteressados”, a quem Nietzsche compara com vasos sem conteúdo. Dentre esses desinteressados estavam os céticos conservadores da época, os quais odiavam qualquer resposta definitiva a qualquer pergunta. Por quê? Porque certezas mudam o status quo. Se você duvidar de tudo quanto se apresenta de novo, se você se abstém de julgar, você trabalha pra que as coisas não mudem. É um ceticismo estratégico, disfarçado na separação entre o pensamento e a ação (em conceitos como “pensamento puro”).

Margarida Trip, como Minerva, instruindo sua irmã, Anna Maria Trip. Autor: Ferdinand Bol. Fonte: Wikimedia Commons.

Uma filosofia dessas, especialmente quando também se pretende ser algo de “elevado”, inspira desconfiança em qualquer cientista ou aspirante a homem da ciência. Não deveria ser assim. A opinião que os não-filósofos têm da filosofia é quase a opinião que eles têm do eremita ou de um guru good vibes. Isso é totalmente errado, mas devemos culpar os vulgos por terem essa impressão ou a nós mesmos por darmos a eles motivos pra isso? Mas isso não quer dizer que os cientistas estão livres de reprimendas, nem por parte de filósofos e nem de leigos. A ciência passa de si uma imagem de fria e apática, de competição rancorosa entre os que dela participam e até de mediocridade, quando um determinado cientista, por ter um trabalho que foge demais dos trabalhos comuns, acaba por precisar ser sustentado por outros. Isso se relaciona à mediocridade porque o cientista passa a fazer apenas o que é minimamente necessário pra receber seu pagamento.

Nietzsche então muda de assunto pra falar que também nossa gratidão deve ser limitada. Se você não sabe dosar sua gratidão, será escravo de qualquer um que te fizer um favor. Na verdade, Nietzsche já menciou isso anteriormente no livro, sobre como as pessoas se aproveitam da gratidão dos outros pra levá-las a agir contra seus próprios interesses. É o que acontece hoje com o pagamento do auxílio emergencial: quem receber, fica grato ao cara que permitiu que maio de 2020 se tornasse o mês onde mais mortes ocorreram no Brasil. E a coisa vai ficar pior, mas, por causa dos seiscentos paus… Existem virtudes pelas quais se paga caro. Por isso saiba quando negar sua gratidão. Saiba quando confrontar seu país com o que há de mais perigoso a ele: a revolução interna.

Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud).

Embora Freud admita que sua teoria acerca dos instintos é limitada e provisória, deixando várias pontas soltas na teoria do princípio do prazer, ele afirma que tal teoria não deve ser totalmente rejeitada só por causa disso. Existem teorias concorrentes pra explicar o mesmo fenômeno e cada um deveria ficar com a teoria que melhor resiste às críticas. Mesmo que não tenhamos certeza do que estamos pensando, dizendo ou fazendo, é certo que existem opiniões melhores que outras.

Logo, o fato de uma pessoa aparecer com uma hipótese ainda não provada não garante que essa pessoa está errada, mas também não garante que sua hipótese tem o mesmo valor que outras teorias concorrentes. Essa competição entre pensadores revela quais são os melhores. E, se você estiver errado, se retrate. Ciência não é catecismo e nem religião. Nada na ciência precisa ser dogma. Não há nenhuma vergonha em um cientista admitir que errou, mesmo que isso implique uma reação em cadeia que leve vários outros que basearam seus trabalhos num erro a também se retratarem. Com isso, termina Além do Princípio do Prazer, e começa Psicologia de Grupo, onde Freud analisa a influência do pertencimento a um grupo ou relação social sobre o ego.

A psicologia de grupo difere da psicologia individual porque não considera a mente do homem como indivíduo, mas como membro de um grupo específico. Ela não estuda eu ou você especificamente, mas nos estuda como parte de uma nação (brasileiros), como parte de um sexo (macho humano), como parte de uma classe (professor), como parte de uma família (filho, irmão). A função da psicologia social é estudar as influências do pertencimento a um grupo sobre a mente de indivíduos, tendo um alcance, por isso, mais pervasivo. A necessidade de uma psicologia social surge com a pergunta: por que determinadas pessoas agem de modo diferente quando estão em um grupo? Algumas ideias só surgem quando a pessoa se encontra com seu grupo. Já outras ideias que já existem na pessoa só encontram expressão em um grupo. Separado do grupo, a pessoa volta à normalidade. Por que isso acontece? Porque uma pessoa pode agir de um jeito sozinha e de outro jeito quando se sente parte de um grupo? A psicologia individual não basta pra responder isso satisfatoriamente.

As três graças. Foto da Bibliothèque de Toulouse. Fonte: Wikimedia Commons.

Citando Le Bon, Freud explica que uma das razões pelas quais a pessoa age de um jeito sozinha e de outro jeito quando parte de um grupo é o fato de que uma associação humana é mais poderosa que um homem só. Quando você está num grupo violento, você se sente empoderado pra satisfazer suas próprias tendências violentas, se estas se coadunam com a índole do grupo. Exemplo, suponhamos que você passe na frente do Supremo Tribunal Federal todos os dias. Você odeia aquela corte, mas não faz nada porque teme punição. Agora, você descobre que tem um grupo plenejando um ataque à corte. É sua chance de satisfazer a vontade, porque é mais difícil punir um grupo do que um sujeito em particular. Dependendo do grupo, sentimos que não precisamos nos segurar e algumas tendências que mantemos reprimidas afloram. Isso nem sempre é ruim, mas nem sempre é bom também. Tudo depende do grupo e de qual tendência é habilitada pelo grupo.

Mas existem outras coisas que fazem com que o sujeito mude seu comportamento quando está em um grupo: o contágio e a dissolução. O pensamento de um grupo é mais ou menos homogêneo quanto maior o trânsito de ideias e comportamentos considerados padrão. Cada membro do grupo passa a pensar e agir como seu conterrâneo, porque ele está em um lugar onde suas ideias são aceitas, facilitando que ele aceite outras ideias daquele grupo. Isso geralmente ocorre depois da dissolução: quando você se identifica com o grupo, você se torna o grupo quando está com seus colegas, se sacrificando por ele, agindo em função dele e obedecendo aos ideias dele. Pessoas que se dissolvem num grupo deixam, na prática, de ser quem são. Perdem sua individualidade e agem como um homem só.

Assim, o sentimento de pertencimento a um grupo leva as pessoas a experimentarem empoderamento, contágio ideológico e sugestionabilidade. Essas três coisas tornam o homem uma força ameaçadora quando age em grupo, visando um objetivo comum com seus conterrâneos: sente que nada é impossível ao grupo, mantém a ideologia do grupo homogênea e cada um influencia o outro permanecer na causa. Esses elementos também são observados naquilo que hoje o povo chama de “mentalidade de rebanho“.

Arte poética (Aristóteles).

Ao falar dos episódios em que uma tragédia pode se dividir, Aristóteles aconselha a variedade. Quando uma peça teatral fica muito uniforme, a audiência acaba ficando satisfeita do assunto tratado. Se o assunto continua, ocorre uma sensação horrível de tédio e tempo perdido. Portanto, ao escrever uma tragédia, ou mesmo uma comédia, dividida em episódios, é preciso que cada episódio seja suficientemente diferente dos outros pra evitar que o leitor ou a audiência fiquem entediados. Um bom jeito de fazer isso é introduzindo pormenores na história que mantenham a atenção do leitor ou da audiência. Tais pormenores podem ser fantasiosos ou pouco realistas. O fantástico pode também ser parte da trama principal. Na verdade, Aristóteles diz que é mais interessante mostrar algo impossível, mas plausível, do que mostrar algo possível, mas incrível. A ficção científica moderna está tão cheia de impossibilidades plausíveis, que algumas de suas “predições” se mostraram bem reais.

No entanto, Aristóteles adverte: uma trama precisa ter apenas o número de passos necessários para que a história seja entregue. Se você pega uma trama pequena e a dilui em vários episódios, cada episódio será insignificante e a trama se moverá lentamente, a ponto de perder a atenção da audiência. Aristóteles pergunta o que seria da recepção de Édipo se ele tivesse o mesmo número de versos que a Ilíada. Para usar um exemplo de otaku, você acha que alguém teria saco pra Neon Genesis Evangelion se este tivesse cinquenta e dois episódios? Você não acha que Appmon seria melhor em formato de vinte e seis episódios (o que removeria todos os fillers)? Assim, se a história que você tem mente for melhor apresentada em formato curto, não a espiche: quanto mais longa a história, mais facilmente a audiência se entedia.

Alegoria da poesia lírica. Autor: François Boucher. Fonte: Wikimedia Commons.

A poesia na época de Aristóteles tinha como objeto a vida das pessoas ilustres do passado ou do presente. Então, ao escrever uma poesia trágica ou comédica, o autor tinha três opções: escrever em verso a realidade, escrever em verso a percepção popular sobre a realidade ou escrever em verso aquilo que deveria ser real (mas não é). Se fôssemos adaptar esse critério pra hoje, tempos em que não se faz mais apenas poesia ou prosa sobre pessoas que existem ou existiram, o primeiro caso seria o conto biográfico ou historicamente correto, o segundo caso seria a fantasia “baseada em história real” e o terceiro seria uma história totalmente original.

Disso decorre que a verdade é mais necessária a certos estilos de poesia do que a outros (e isso está também relacionado ao uso de metáforas fantásticas em vez de expressões literais), mas, se o objetivo da ficção é entreter, a verdade é um meio que se deve usar ou não dependendo do que você achar que será mais interessante. Isso não é válido somente pra verdade, mas pra todos os elementos do trabalho e de sua encenação: em algumas peças, é preciso gesticular ou dançar, mas não em todas, se isso atrapalhar a recepção da obra. O historicamente correto é secundário. Por causa disso, a poesia trágica, bem como trabalhos de ficção em geral, mostram os homens como melhores do que realmente são. Na ficção moderna, um exemplo extremo disso seria Dragon Ball, onde lutadores de artes marciais detém habilidades absurdas, e um exemplo em menor grau seria Danganronpa. Quando escrevo esses exemplos, eu imagino meu professor de metafísica atrás de mim, me julgando por usar exemplos tão vulgares.

A Bíblia Sagrada (Jehovah).

Deus mandou seus anjos para Sodoma a fim de verificar as queixas que vinham de lá. Os anjos entraram na casa de Ló. Acontece então o infame episódio no qual todos os homens da cidade, e talvez também os meninos, tentaram invadir a casa de Ló pra “conhecer” os anjos que ele hospedou. “Conhecer”, neste contexto, é um eufemismo pra fazer sexo. Diante dessa afronta, os anjos cegaram os homens que tentavam invadir, tiraram Ló e sua família daquela cidade, e permitiram que Deus destruísse Sodoma, bem como Gomorra.

Muitas pessoas dizem que a homossexualidade em Sodoma foi a causa da destruição, mas, de acordo com A Profecia de Ezequiel, os pecados de Sodoma foram orgulho, abudância de alimento, insolência e falta de empatia para com pobres e necessitados (Ezequiel 16:49). Se a homossexualidade fosse um problema (numa época anterior a Moisés, logo antes de ser revelada qualquer interdição à homossexualidade), teria sido mero agravante, tanto que A Profecia de Ezequiel diz, várias vezes, que Israel vinha agindo pior que Sodoma e Gomorra, apesar de Israel ter interdições à homossexualidade.

Visão de Ezequiel: um grupo de cadáveres e esqueletos emerge para fora das tumbas e, acima deles, cinco meninos alados segurando uma bandeira. Autor: Giorgio Ghisi. Fonte: Wikimedia Commons.

Após Ló sair de Sodoma, ele estava sem filhos e também sem esposa (porquanto a esposa de Ló virou uma estátua de sal). Assim, não havia como Ló ter um filho macho. Diante desse impasse, as filhas de Ló tiveram uma ideia: embebedaram Ló e se relacionaram com ele. Lembrando: isto foi antes de Moisés, então não havia interdição explícita ao incesto. Dessa união, nasceram Moab e Ben-Ammi.

Finalmente, na velhice, como Deus havia prometido, Sara pariu um filho a Abraão. Esse filho era Isaque. Hagar e Ismael foram então rejeitados e expulsos de casa, por pedido de Sara, embora Abraão tivesse se oposto a isso. Tanto Isaque quanto Ismael foram abençoados, porém. Deus resolveu testar a fidelidade de Abraão ordenando Abraão a sacrificar Isaque, mas, faltando apenas que Abraão degolasse Isaque, um anjo mandou Abraão parar, avisando que era apenas um teste. Mais um pouco e Abraão teria matado seu filho.

Em seguida, na narrativa bíblica, morre Sara e Abraão compra uma sepultura dos filhos de Heth. Em vias de morrer, Abraão proíbe que Isaque se case com qualquer mulher, instituindo uma pessoa que vá buscar uma mulher que valha a pena para que esta se case com Isaque. O servo foi e, com a ajuda de Deus, encontrou Rebeca, futura esposa de Isaque. Rebeca vai de boa vontade, com a aprovação dos pais. Isaque, de quarenta anos, se casa com Rebeca. Como Rebeca era estéril, Isaque teve que orar a Deus pra que Rebeca concebesse. A oração foi atendida. Rebeca pariu gêmeos: Esaú, pai dos edomitas, e Jacó, que mais tarde geraria os patriarcas das doze tribos de Israel (e Diná). Esaú, em sua maturidade, ficou com duas mulheres que davam desgosto aos pais de Esaú e Jacó. Talvez por isso que Rebeca, mãe de Jacó, instruiu Jacó a se aproveitar da cegueira de seu pai a fim de tomar pra si as bênçãos destinadas a Esaú, passando-se por este.

O anticristo (Nietzsche).

De onde se origina o cristianismo como religião? Pra Nietzsche, responder a esta questão requer a compreensão do judaísmo, uma religião considerada por Nietzsche como superior em termos psicológicos, do qual o crisitianismo é a consequência lógica. O cristianismo não é uma oposição ao judaísmo, mas sua forma completa, ele diz, inclusive citando Cristo: a salvação vem dos judeus. Mas a separação entre cristianismo e judaísmo foi tão aprofundada ao longo da história que existem cristãos antissemitas. Isso é um absurdo: primeiro porque Jesus era judeu e segundo porque o cristianismo é, diz Nietzsche, a consequência final do judaísmo. Têm o mesmo Deus, o Deus da justiça. Com isso em mente, a semelhança entre as duas coisas fica fácil de ver.

Por que o cristianismo é tão popular? Nietzsche afirma que é porque valorizamos o amor e o cristianismo se mostra como a religião do amor. Além disso, ao colocar ênfase na castidade, o cristão internaliza sua religião, pois passa a praticá-la internamente como controle do desejo. Isso põe o cristianismo pra dentro da identidade da pessoa, fazendo com que ela se sinta cristã. O mesmo é feito com outros sentimentos, os quais, porquanto são sentimentos, são subjetivos: fé, esperança e caridade. Colocar o cristianismo pra dentro da pessoa, através do amor e de outros sentimentos, torna o cristianismo popular. Ele se torna parte da identidade da pessoa.

Mas há um problema com o cristianismo e também com o judaísmo. Quando Israel passa a ver em tudo uma recompensa ou punição divina, ele começa a introduzir na lógica causal algo estranho. As causas naturais desaparecem do raciocínio. Eu até mesmo lembro de ter lido em algum livro, não lembro qual, que uma determinada escola de pensadores judeus medievais acreditava que não havia causalidade natural. Se eu acendo uma vela e o fogo ilumina, é porque Deus interfere diretamente na cena assegurando que assim seja. É como se a criação divina não fosse autônoma. Levada a extremos, tal doutrina não chegaria até mesmo a negar a liberdade humana?

Alegoria do livre comércio. Autor: Gerard de Lairesse. Fonte: Wikimedia Commons.

Assim, ver tudo em termos de punição e recompensa é contrário a outras doutrinas. Deus pode intervir, mas ele não intervém o tempo todo. Além disso, ver as coisas dessa forma leva também o fiel a se culpar por tudo de ruim que lhe ocorre (“Deus está me punindo por algo que fiz”), quando existem coisas que claramente não são culpa dele. Isso depõe contra a ideia de ordem moral do mundo: nem tudo o que recebemos de ruim é punição divina por algo que tenhamos feito. Pode ser só um imprevisto, um acaso (Eclesiastes 9:11).

Mas isso não é tudo: ao ver tudo em termos de punição e recompensa divinas, você dá ao sacerdote, que é o intérprete da vontade de Deus, um poder enorme. Não há garantia de que o sacerdote saiba o que está dizendo. Afinal, em algumas igrejas evangélicas populares, basta ser casado pra ser pastor! Ele não está usando o nome de Deus em vão, quando age como um cabo eleitoral? Qual é a garantia de que ele está realmente falando em nome de Deus, e não tentando levar o povo a pensar de um jeito que lhe favoreça?

Se assim é, qual é o uso feito do dinheiro do dízimo (do qual Deus não precisa)? Nietzsche, por isso, chama os sacerdotes de parasitas. Seu trabalho é convencer você a dar o dízimo, porque essa é a “vontade de Deus”, como se Deus tivesse ganância. Isso não é trabalho, mas exploração da fé da população pra ganho pessoal. No entanto, o povo sente que precisa dos sacerdotes pra acessar a vontade de Deus. Isso mantém a aura de indispensabilidade dos pastores e dos padres. A classe sacerdotal talvez nunca será extinta. E, enquanto ela existir, haverá pessoas mal-intencionadas dispostas a fazer do sacerdócio uma carreira lucrativa.

Antologia ilustrada de filosofia (Ubaldo Nicola).

Terminada a seção sobre a escola eleática, Nicola começa sua exposição dos sofistas. Os sofistas faziam do saber uma profissão. São os primeiros professores remunerados da história da filosofia. Eles ensinavam, sobretudo, a retórica. Por quê? Porque a escola sofista também acreditava que não existem verdades absolutas na atividade humana, de forma que tudo é opinião nos negócios humanos. Se tudo é opinião, a mais útil arte que existe é a arte de levar os outros a concordar com você. Por isso a retórica, a arte de discursar bem, era ensinada por eles.

Seu público-alvo eram os jovens que queriam entrar na política. Você não deveria ficar surpreso… As razões pra isso talvez estivessem associadas ao fato de que os sofistas eram também estrangeiros, o que os privava de direitos políticos restritos ao cidadão grego. Se eles não podiam interferir diretamente na política, ao menos formariam aqueles que nela poderiam interferir. Por isso não se deve mandar brasileiros pra estudar no exterior.

Mas então, se não existe verdade objetiva nos negócios humanos, por que nós deveríamos nos dar ao debate ou participar da política? Não seria melhor que cada um simplesmente seguisse seu coração? De maneira alguma. Os sofistas eram professores e acreditavam que a educação tinha seu valor no estabelecimento e propagação de opiniões úteis ao indivíduo e à sociedade. Se tudo é questão de opinião, ainda precisamos da educação pra selecionar as opiniões mais úteis a nós e aos que amamos, não necessariamente a opinião “certa”. Isso está por trás da doutrina do relativismo: se preocupar com útil, o belo, o justo, não necessariamente o verdadeiro, leva cada homem e cada sociedade a adotar leis e costumes diferentes, porque os conceitos de útil, belo e justo variam de pessoa pra pessoa, de nação pra nação.

Alegoria da justiça e da paz. Autor: Corrado Giaquinto. Fonte: Wikimedia Commons.

Assim, quando você debate com alguém que está convicto de ter razão, você tentar prová-lo errado não surtirá efeito. O que você deve fazer é mostrá-lo que a opinião dele lhe acarreterá consequências ruins. Ou melhor: mostrar como a vida dele melhoraria se ele mudasse de opinião! Nietzsche, mais tarde, retoma este ponto: se você acredita ter encontrado a verdade, a menos que tal verdade se mostre também útil, ela não será crida e estará em desvantagem diante de mentiras as quais, por serem mais úteis, são aceitas como “verdade”. Simplesmente argumentar logicamente não basta. Convencer alguém requer que a pessoa com quem se debate veja que o seu ponto de vista beneficia ela também. Segue-se, portanto, que o orador ou retórico, assim como o médico, deve conduzir uma pessoa obstinada à opinião melhor, não necessariamente a mais verdadeira. A verdade não basta pra convencer uma pessoa. Se bastasse, ninguém teria votado no Bolsonaro.

O meio através do qual os sofistas exerciam seu poder era a palavra, logicamente. Desenvolvendo a arte de retórica, eles faziam umas acrobacias lógicas pra atrair novos discípulos e dinheiro. Górgias, por exemplo, conseguia provar, pela lógica, que nada existe. Mas, se você pagasse ele bem, ele iria provar que a tese de que nada existe está errada. Claro que está errada: você vê que as coisas existem, as ouve e as sente. Mas essa é a graça da retórica: levar o raciocínio a concluir exatamente o contrário do que dizem os sentidos. Claro que os aspirantes à vida política iriam querer aprender essas técnicas. Novamente, pros sofistas, isso não significava mentir (já que mentira implica que existe uma verdade, que era algo em que eles não acreditavam).

Mas levar uma pessoa a acreditar em algo não era o único uso que os sofistas faziam da palavra. Górgias, em seu Elogio de Helena, afirma que a palavra pode ser usada também pra exercer influência sobre sentimentos e emoções, o que, por seu turno, tem desdobramentos físicos. Pela palavra é possível excitar a raiva, a tristeza, a alegria, a luxúria, a compaixão, a coragem e várias outras sensações. Também é pela palavra que você pode reduzir a dor e o sofrimento, fazer a pessoa corar de vergonha, chorar, paralizar ou se acalmar. É como se a palavra funcionasse como uma droga. Nesse sentido, a sofística antecipa a psicanálise, que também usa palavras pra um efeito parecido. Excitando as emoções e os sentimentos, é mais fácil fazer com que o coração se sobreponha ao cérebro. A pessoa enfurecida não é capaz de raciocinar logicamente. Também a pessoa deprimida não consegue. Excitar emoções é um bom jeito de levar a pessoa a cometer idiotices… e a aceitar mais facilmente alguma coisa. E pronto! O livro encerra a exposição dos sofistas pra se dedicar a Sócrates.

A arte de escrever (Schopenhauer).

Schopenhauer se põe a pensar sobre a diferença entre o pensamento próprio e a leitura. Quando você lê, se impõe ao seu cérebro pensamentos novos que foram produzidos por outros, com outras disposições, outras intenções. Isso dificulta a identificação com o que está sendo lido e, consequentemente, a produtividade do sujeito. Porque, a bem da verdade, nem sempre lemos o que gostaríamos de ler. Quando isso acontece, ocupamos nossa mente com pensamentos maçantes, o que nos leva a sufocar quaisquer ideias próprias que nos ocorram naquele momento e que talvez não nos ocorram novamente.

Detalhe do teto da Capela Sistina. Autor:
Michelangelo Buonarroti. Fonte: Wikimedia Commons.

Já o pensamento próprio impõe pensamentos novos perfeitamente identificáveis. Sempre que você pensa por si, você pensa com sua própria energia, com sua própria vontade e desejo, com sua própria razão e experiência, as quais devem ser empregadas em justa medida (pois nem a razão é mais importante que a experiência e nem o contrário). Isso aumenta a produtividade, porque você está interessado. Além disso, tanto pensar quanto ler consomem tempo. Se você passa muito tempo lendo, passará pouco tempo pensando. Assim, quem lê muito provavelmente tem poucas ideias próprias e se limitará a citar as respostas de outros quando confrontado com um problema. Em GURPS, chamamos isso de “embotado”. Pra Schopenhauer, você fica “embotado” quando o hábito da leitura, por ser excessivo, degenera a capacidade da pessoa de pensar por si.

Mas seria Schopenhauer, por isso, inimigo da leitura? Se ele fosse, não escreveria livros. Schopenhauer explica que a leitura só é útil quando nós mesmos não conseguimos resolver algo com nosso próprio esforço. Quando uma questão irresolvível se impõe, convém ver como outros a resolveram. Schopenhauer diz que não há gênio no mundo que não passe por isso. Todos os pensadores encontram seus limites eventualmente e, quando isso acontece, você recorre aos livros. Assim, pra Schopenhauer, a leitura deve ser subordinada do pensamento próprio, ao pensamento orgânico, servindo como ajuda quando o pensamento próprio não pode mais avançar sem errar. Se você tem leitura, mas não pensamento próprio, você será um erudito. É o pensamento próprio que proporciona originalidade e é a originalidade que faz o pensador. Eis a diferença entre o filósofo e o historiador da filosofia, entre a testemunha direta e o historiador. Assim, a leitura não substitui o pensamento próprio, mas deve ser a ele subordinada.

Assim falava Zaratustra (Nietzsche).

Sabendo que falar de desprezo prejudica a atenção da multidão, Nietzsche resolve se dirigir ao orgulho deles. Ele diz que o homem deve ter um objetivo. Aqui, se refere provavelmente ao homem em geral, à espécie humana. Lembre-se de que o objeto do Zaratustra é o super-homem, a ideia de que o homem pode se tornar uma espécie nova e melhor, que não precisamos ser meramente humanos se existir possibilidade melhor. O super-homem é o raio que descende da núvem humana. É a concentração de sua força em um fenômeno só e explosivo.

O objetivo do homem presente é conduzir a humanidade a esse estado superior, no qual enfraquecer é o pior erro possível. Isso requer que os homens que guardam o caos dentro de si produzam suas estrelas (em língua de gente, isto é um apelo aos que têm originalidade pra que eles sejam produtivos). Apesar disso, o pessoal continuava rindo de Zaratustra, sem entender o que ele dizia. Zaratustra pondera que os anos que passou em isolamento prejudicaram sua capacidade de se fazer entender. Mas é claro, gênio. Por causa desse isolamento, ele fala de um jeito muito diferente e soa como um louco a seus pares. “Caos dentro de si”? “Produzir estrelas”? Que porcaria é essa? Fala português, homem!

Melancolia I. Autor: Albrecht Dürer. Fonte: Wikimedia Commons.

Zaratustra desiste (por enquanto) e assiste a um espetáculo que tá acontecendo na praça onde ele fez sua pregação. Havia dois palhaços numa corda bamba, um mais ágil e o outro mais lento. O mais ágil vinha rapidamente ao encontro do mais lesado. O mais ágil reclama que o lento está obstruindo o caminho ao que é mais ágil que ele. Então o palhaço ágil pula sobre o mais lento, aterrissando na corda. O movimento fez o mais lento perder o equilíbrio e cair. Dá pra ver que metáfora Nietzsche tentou entregar aqui: aquele que visa o super-homem, o homem do amanhã, não pode esperar a boa vontade dos menos capazes que ele. Para atingir esse estado, o homem precisa tomar a frente, passar por cima dos que não colaboram. Estes, aliás, não são aptos pra travessia. Por isso caem. Inobstante, tentaram atravessar a corda, aceitando o perigo. Isso ainda é admirável. Assim, pior do que tentar e falhar é não ter tentado. Não tentar é se reconhecer como fraco e incapaz.

Após o incidente, Zaratustra é aconselhado a deixar a cidade, porque todo o mundo ali o odeia e talvez não apenas riam dele da próxima vez. Zaratustra ignora e vai pra um bosque ali perto. Lá, ele decide que precisa de uns amigos novos.

Aurora (Nietzsche).

As leis e os costumes visam desencorajar comportamentos ridículos, bizarros, pretensiosos, violentos, arrogantes ou diferentes. Nisso consiste a moral civil. Mas, Nietzsche acrescenta, também os animais agem assim. Talvez se nós observarmos as razões por trás da “moral animal” tenhamos uma pista sobre o porquê de humanos também agirem segundo regras que, muitas vezes, não lhe proporcionam benefício.

Nietzsche deixa isso mais claro: tal como nossa moral visa nos camuflar, nós, homens individuais, em uma “sociedade”, também o cameleão se camufla no ambiente mudando de cor, um animal adota a aparência de outro ou adota a aparência de uma folha, areia ou pedra. Ambas as coisas têm como função permitir um ataque à presa ou fugir de um predador. As virtudes sociais humanas são o que o transformam em um “camaleão social”. Elas não têm nada de elevado ou de belo. São apenas formas de se virar na vida, especialmente se você consegue fingir que as têm. Vendo os pais agirem dessa forma, crianças aprendem esses comportamentos por imitação. Só na idade adulta eles se põem a analisar por que razão elas (e seus pais) se comportam de tal forma.

Exemplo: felicidade marital. Nietzsche afirma que o casamento pressupõe que o amor eterno é regra, em vez de exceção. Para Nietzsche, tentar eternizar qualquer emoção ou sentimento ocasiona hipocrisia. Não existe emoção que dure pra sempre e sentimentos podem se esgotar. Dessa forma, o corpo de uma mulher torna-se tedioso quando se transa com ela vez após vez. O mesmo vale pra mulher, em relação ao seu homem. Regra é o divórcio, que se torna tanto mais frequente quanto mais é facilitado. Se assim é, se o amor que embasa o casamento pode acabar, é importante que a pessoa, caso esteja insatisfeita com seu casamento, pareça estar feliz com o cônjuge. Afinal, estar casado é símbolo de status (mas esses dias estão contados). Você não quer perder esse status, não é? Então sorria, mesmo debaixo dos pratos de porcelana que quebram sobre você, porque seu casamento precisa durar.

Este é um daqueles livros em que Nietzsche se pronuncia através de aforismos, então não se afobe se eu mudo de assunto muito rápido. Ele passa então a discutir a superstição de que a atitude que mais anima você é a correta, porque o sentimento de certeza vem de Deus. Esse sentimento é explorado ainda hoje, quando um pastor diz aos fiéis: “faça o que você sente em seu coração”. Agir conforme o coração é um gancho pra levar a pessoa a não ouvir a própria razão, a não pensar, o que a leva a tomar atitudes inclusive anticristãs (Jeremias 17:9).

Menino matando um basilisco, símbolo da heresia protestante, em Munique. Foto de Onderwijsgek. Fonte: Wikimedia Commons.

Mas esse “argumento” funciona muito bem. Enfatizar o coração em vez do cérebro é uma boa forma de explorar as pessoas com mais sentimento do que razão (a maioria). Apelar pro sentimento, a seguir “o que o coração manda”, é um argumento bonito, prazeroso e que não precisa de justificação, porque já há uma inclinação em todos nós a fazer o que temos impulso de fazer, inclinação que depende justamente da razão e da força de vontade pra ser refreada. É à razão e à experiência que se deve seguir, não ao sentimento (a menos que a razão e a experiência estejam de acordo com o sentimento).

Nietzsche então volta à crítica ao cristianismo de seu tempo. Pra Nietzsche, antes do cristianismo, as pessoas faziam mais ou menos como fazem hoje no Twitter: tentam parecer melhores que as outras exibindo suas virtudes, inclusive aquelas que não têm, mas aparentam ter, tentando envergonhar aqueles que vivem de um modo menos virtuoso. É o tipo de gente que, quando acusada falsamente de uma falta moral, toma a oportunidade pra se sentir superior por estar do lado da verdade, mesmo que isso ocasione sofrimento. A ideia era posar de Mary Sue, de perfetinho, de estar do lado do bem.

Com o cristianismo, e sua ênfase na miséria humana, as pessoas entenderam que a mais importante das virtudes é a humildade… e passaram a desfilar seus defeitos em vez das qualidades! É a mesma coisa. As pessoas ainda querem se sentir melhores que as outras, agora vendo quem sofre mais. Jesus diz, em Mateus 6:17-18, que você não deve deixar transparecer seu sofrimento ao público, que o sofrimento é algo particular. Então, na verdade, o estímulo eclesiástico ao culto do sofrimento é anticristão. É verdade, o cristão não deve esbanjar suas qualidades, mas tampouco seus defeitos, fraquezas e sofrimentos. Ambas as coisas são orgulho.

Por último, uma crítica às causas finais: o fato de o ser humano fazer uso de algum elemento da natureza não justifica a existência desse elemento. Por exemplo: antigamente se pensava que o Sol existe porque a vida precisa de iluminação. Na verdade, não. O Sol existe, é verdade, e a iluminação é consequência de sua existência. Mas não podemos dizer que foi essa necessidade que criou o Sol.

28 de maio de 2020

Leituras da semana #5.

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Vamos continuar a leitura de Além do Bem e do Mal (Nietzsche) e Arte de Lidar com As Mulheres (Schopenhauer).

Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.

Embora Nietzsche fale mal da religião a cada duas ou três páginas deste livro, ele admite que a religião tem poder formativo quando utilizada pelas pessoas certas. A religião tem caráter pedagógico. Um bom filósofo que usa a religião como ferramenta libertadora tá sendo um cara muito esperto. Na verdade, eu penso que seja essa a razão de marxismo ter sido tão pouco aceito no Ocidente. É que o marxismo se colocou contra a religião. Marx não fazia ideia de como um monte de coisa que ele diz em sua obra já fora dito na Bíblia Sagrada? O caso mais emblemático está nos Atos dos Apóstolos, onde a estrutura econômica da igreja de Jerusalém é exposta: todo o mundo vendia o que tinha, dava o dinheiro aos apóstolos, eles compravam os bens de que a comunidade precisava e administravam diretamente os bens segundo a necessidade de cada um, de forma que todos tinham tudo em comum e ninguém passava necessidade (Atos 2:44-45; Atos 4:34-35). Havia uma administração direta dos bens.

Embora tal administração fosse feita pelos apóstolos, eles próprios não se consideravam mais que meros homens. Isso coloca em questão até mesmo o quão nítida realmente era a divisão de classes na igreja primitiva. Se Marx tivesse usado o cristianismo inteligentemente, talvez o neoliberalismo nem existisse hoje. Os filósofos deveriam usar a religião pra enriquecer seu discurso, assim como usam suas condições históricas, econômicas e sociais. Especialmente no Brasil. Aqui, se você se põe contra a religião, você já perdeu. Assim, vemos que Nietzsche, por condenar a religião com argumentos do tipo “a religião não enobrece o homem”, pode tolerar a religião se ela não atrapalhar tal enobrecimento ou favorecê-lo.

Assunção da virgem. Autor: Francesco Botticini. Fonte: Wikimedia Commons.

Não é tanto a religião em si, mas o uso que se faz dela. Nietzsche cai mais encima do crisitianismo porque é a religião que é mais facilmente usada contra o enobrecimento do homem (por seu culto à humildade, por exemplo). Ele não fala muito de outras religiões, justamente porque elas têm tal característica em menor grau. Mas Nietzsche afirma que o que há de mais elevado no cristianismo, essa religião que ele odeia, é sua capacidade de ensinar o homem a tolerar o sofrimento inerente à vida. Isso é positivo. Bom, Nietzsche é justo, afinal. Ao menos ele reconhece que o cristianismo tem algo de positivo, quando usado da forma correta.

O problema que Nietzsche tem com o cristianismo é que este ensina a se acostumar com o sofrimento e vê-lo como uma condição superior de vida. Uma coisa é tolerar o sofrimento, outra coisa é você abrir mão de se superar. O cristianismo faz isso tornando os pobres e oprimidos em modelos de comportamento e demonizando todos os que têm vida melhor. Isso pode causar até mesmo um tipo de orgulho hipócrita, quando o cristão sente orgulho de sua miséria e passa a medir a própria miséria com a de um outro, como se fosse um tipo de competição. Mas orgulho também não é pecado? Se orgulhar da miséria a desqualifica como miséria. Você não pode dizer “olha como desprezo a mim mesmo” se você faz isso pra se mostrar, porque aí não é mais autodesprezo.

Se o cristianismo não fizesse isso, se ele ensinasse que o homem pode e deve se superar, Nietzsche talvez não reclamasse da nossa fé. Pra ele, a igreja pega o homem, o melhor ser da Terra, e o desfigura, em vez de torná-lo melhor. Isso seria razão de orgulho pra Deus, que fez o homem? Mas, novamente, isso depende de como a religião é usada. Lembre que, pra Nietzsche, a verdade precisa ser útil pra que seja aceita. Se realmente a Bíblia Sagrada fosse a verdade, pra quê tornar o cristianismo uma coisa mais penosa do que precisa ser? Uma verdade pesada é um convite à procura de mentiras leves.

A arte de lidar com as mulheres.

Pra Schopenhauer, a mulher é mais propensa a mentir e enganar (aos outros e a si mesma), tanto no amor como durante um julgamento, e também mais radical ao tentar conseguir o que deseja, tendências aumentadas com o aumento de sua influência na vida pública. Por essas e outras razões, Schopenhauer acredita que a dama, a mulher que recebe respeito pela simples razão de ser uma mulher, é um conceito absurdo e danoso. Eu não sei como era no século dezenove, mas eu penso que, hoje, em tempos nos quais a palavra da mulher vale muito, qualquer homem se sentiria tentado a acreditar que isso é uma possibilidade, não porque a mulher é inerentemente falsa, mas porque a lei a protege mais. É mais fácil pra uma mulher que comete crime contra um homem se safar.

Vênus e Amor. Autor: Hans Holbein. Fonte: Wikimedia Commons.

Talvez por isso Schopenhauer diga que a inteligência atrapalha a pegação, porque mulheres preferem homens mais bobinhos, mais dispostos a obedecer e acreditar nelas. Tipo o Hifumi. Esse controle é facilitado pela cultura monogâmica, que está em declínio, pois a exigência de que você só pode amar uma mulher de cada vez o impede de usar o amor de mulheres melhores quando o amor de uma não satisfaz ou é condicionado, o que ajuda a mulher a manter o homem eleito sob controle. Lembrando que Schopenhauer era um filósofo misógino, que prefere que a mulher seja sempre tutelada pelo sexo masculino, então não se alarme ao ler que ele escreveu esse tipo de coisa. Em todo caso, ele diz com acerto que relacionamentos fracassados como esses certamente exerceriam efeito negativo na geração seguinte.

Recentemente, um professor de tiro foi acertado por seis disparos desferidos por sua parceira e há quem diga que não podemos ter certeza ainda sobre o quão culpada é essa mulher. Fosse o contrário, a cobertura do caso seria maior e ninguém duvidaria que a culpa é inteiramente do homem. Não acredito que a mulher é naturalmente propensa ao perjúrio, a mentir em julgamento sob juramento, mas uma pessoa ciente de que a lei está enviesada a beneficiá-la seria mais facilmente tentada a viciar a aplicação dessa lei. Não é tanto um problema da mulher, mas mais do sistema jurídico e da cultura de que todas as mulheres são dignas de respeito incondicional. Não seria melhor respeitar alguém, homem ou mulher, na medida de suas obras, não por pertencer a este ou aquele grupo?

25 de maio de 2020

Leituras da semana #4.

Filed under: Livros — Tags:, , — Yure @ 22:40

Nesta semana, continuo minha leitura de Além do Bem e do Mal (Nietzsche), Antricristo (Nietzsche), Arte de Escrever (Schopenhauer), Arte de Lidar com as Mulheres (Schopenhauer) e Alma (Voltaire). Também começo a leitura de Assim Falou Zaratustra (Nietzsche).

Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.

Já observou como o catolicismo é mais forte no hemisfério sul e o protestantismo é mais forte no hemisfério norte? Pra Nietzsche, isso acontece porque os povos do norte descendem de povos bárbaros, os quais não tinham uma religião de rituais (ou tinham uma de rituais mínimos). No sul, as religiões primitivas eram religiões de obras. Por causa disso, povos do sul já tinham a ideia de que Deus requer um determinado comportamento e não simplesmente uma fé.

Nietzsche inclusive diz que uma pessoa do sul, ao se revoltar contra o catolicismo, causa um impacto social maior do que uma pessoa do norte ao se revoltar contra o protestantismo, porque o homem do norte que faz isso simplesmente está agindo conforme o espírito nacional original. Pra Nietzsche, na Alemanha, tal espírito é justamente não ter espírito religioso. E, realmente, ao renegar o catolicismo, você renega os sacramentos, as práticas, as orações, os rituais, mas renegando Lutero você só renega a fé, que a única coisa que você tem.

Eu consigo ver um católico se converter ao protestantismo antes de se dar por ateu, mas é muito mais difícil imaginar um evangélico virando católico. Nietzsche também observou algo parecido, pois ele diz que, na Alemanha de seu tempo, é o ensinamento teístico que está em crise, mas não a fé. As pessoas continuam crendo em Deus, só estão deixando de acreditar na igreja. E não me admira. Até mesmo intelectuais, quando têm um lado espiritual, se afastam da igreja, pois sabem quantas coisas horrorosas foram feitas na história em nome da fé. Alguns se dirão contrários ao cristianismo, sem saber que muitas ideias modernas se configuram como uma forma de cristianismo sem Cristo.

Mas a herança étnica não é a única coisa que faz o protestantismo ser tão dominante no norte. É também a falta de tempo. Se dedicar aos rituais, às preces, ao rosário, às penitências, tudo isso requer tempo.

Hércules na encruzilhada. Autor: Jan_van_de_Hoecke. Fonte: Wikimedia Commons.

Olha como os Estados Unidos são ricos. Num país onde se trabalha tanto pra garantir o próprio sustento, especialmente com a sombra de uma recessão monstruosa pairando sobre nação tão poderosa, quanto tempo sobra pra se praticar uma religião de obras? Você acha que o catolicismo iria ser dominante na China? Quando uma nação trabalha muito, os povos são mais atraídos às religiões que afirmam que é possível se salvar com menos esforço. Se a pessoa for especialmente pragmática, ela deixará totalmente a religião porque dela não é possível fazer negócio (se bem que há controvérsias). Uma religião que, no máximo, apenas requer coisas que não interfiram com seus negócios seria mais fácil de pegar em nações com menos tempo livre. Pequenos empresários de classe média provavelmente são evangélicos.

Isso nos leva ao assunto dos santos. Não há santos no protestantismo, porque a santidade implica um estilo de vida e, como tal, atitudes. Mas há vários santos no catolicismo, que adquiriram esse título por terem se entregado a Deus de tal forma que renegaram a própria vontade. Esse fenômeno sempre causou admiração. Para dominar a própria vontade, o santo deve ser alguém muito forte e a força é algo que todos desejamos. Um monte de gente pratica o ascetismo hoje visando alcançar a santidade. Mesmo entre os que não querem ou não podem seguir tal caminho, o santo provoca admiração.

Mas por que alguém iria querer ser santo? Qual é o benefício de agir de tal forma? Será que o santo sabe de algo que eu não sei? Por isso o santo acaba reunindo discípulos ao redor de si. As pessoas querem saber suas razões e seus meios, a fim de viver melhor. A religião de hoje não pede mais sacrifícios humanos. Os sacrifícios requeridos hoje são ações, atitudes. O altar não espera frutas ou animais, mas suas vontades “erradas”. Mas será que vale a pena se sacrificar tanto?

Antes de passar pro próximo assunto, Nietzsche nos notifica que a religião grega, quando era aristocrática, era uma religião de gratidão. Você era grato aos seus deuses por tudo de bom que você tinha. Foi quando a religião grega se tornou coisa do povão (novamente, Nietzsche demoniza o povo), ela se tornou uma religião de temor. Em vez de grato pelo que os deuses te davam de bom, você passava a ter medo do que ele poderia te fazer de ruim! É mais difícil ser grato a quem pode te matar.

Alma.

Ao contrário de hoje, a crença na imortalidade da alma não era muito popular na antiguidade ocidental e seitas que acreditavam que a alma perecia com o corpo eram numerosas e tinham muitos adeptos. Inclusive os primeiros cristãos tinham suas dúvidas sobre a alma ser ou não imortal. Quando a crença na alma imortal tornou-se hegemônica, começaram as perseguições aos dissidentes. Antes disso, as seitas que tinham opiniões diferentes sobra a alma viviam em paz e harmonia.

Parece que o preconceito e o ódio aparecem mais em pessoas que têm certezas. Se nós assumíssemos que não sabemos, a não ser pela fé, se a alma é ou não imortal, talvez algumas perseguições históricas teriam sido evitadas, graças a humildade que vem do reconhecimento da própria ignorância. Se você admite que apenas tem fé em algo, é mais fácil ver sua crença como algo pessoal e até protegido de argumentos contrários (porque fé e razão são opostos, mesmo quando apontam na mesma direção). Já se você raciocina as coisas que vêm da fé, você irá argumentar contra quem não partilha de suas crenças, dando oportunidade aos cismas. Ao separar fé e razão, será possível ter os dois. A necessidade de deixar um dos dois pra trás só existe se você tenta misturá-los. Quando separadas, a fé não pode ferir a razão e nem o contrário. Mas, juntas, uma das duas será sacrificada.

A morte de Adônis. Autor:
Giovanni Battista Gaulli. Fonte: Wikimedia Commons.

É uma crença professada até hoje a de que animais inumanos não têm alma imortal. O fundamento pra tal crença é a falta de razão entre animais. Voltaire levanta então a objeção: a criança que, por defeito congênito, tem raciocínio incapacitado… essa criança tem alma imortal? Ou ela recebe um desconto porque veio de pais humanos? Analogamente, que certeza temos de que animais vivos, sensíveis e que aprendem truques, inclusive uma forma rudimentar de comunicação com o dono, não raciocinam? Quanta razão um ser precisa ter pra que sua alma seja elegível à imortalidade, onde será recompensada ou punida?

A criança de três anos tem alma imortal? Voltaire pergunta porque observa que o gato de seis semanas, o canário de um ano e um cachorro bem treinado têm habilidades o suficiente pra sobreviverem sozinhos, enquanto que a criança de três anos não sabe nada ainda. Na verdade, estudos mostram que a inteligência de um porco e a de uma criança de três anos são comparáveis. Se a medida da imortalidade da alma é a razão, então o porco que virou salsicha e a criança que morre de diarreia aos três anos, tanto um como o outro são imortais, a menos que você esteja disposto a admitir que nenhum dos dois é.

Esse tipo de problema só se resolve pela fé. No campo da razão, por uma questão de bom senso, você não deve procurar uma causa indeterminada pra um fenômeno de causa conhecida. No caso, se tivermos que usar a razão e não a fé, é o cérebro que nos permite pensar e não uma alma. Ora, mas o cérebro é material! Isso quer dizer que a matéria pode pensar. Tal coisa é possível pra Deus, que pode tudo. Ninguém pode dizer que Deus não pode conceder à matéria a faculdade de pensar. Além disso, tal ideia é compatível com a possibilidade de que a alma seja uma energia, como a luz, que existe na matéria.

O anticristo.

Já se perguntou por que Nietzsche odeia a religião cristã? Bom, ele tem suas razões. A primeira é que o cristianismo coloca num pedestal as coisas que Nietzsche identifica como negadoras da vida. A castidade, o jejum, a pobreza, essas coisas não favorecem o aprimoramento do homem, pensa Nietzsche. A segunda razão e a mais importante é que a fé que o homem exerce em sua religião o impede de ver a vida de outra forma. Sua religião já determinou o que é verdadeiro e falso, certo e errado, justo e injusto. Ele nunca verá como bom pra ele aquilo que é bom pra humanidade, porque ele identifica o bem pra humanidade com aquilo que é ordenado por Deus. Essa também é minha visão e Nietzsche me detestaria por isso. Uma pena.

Então, resumindo, Nietzsche odeia o cristianismo porque ele ordena coisas que tornam o homem medíocre ao mesmo tempo que impede, através da fé, que seus seguidores vejam o próprio erro. É assim que ele pensa. Pra ele, uma religião dessas acaba com o potencial humano ao se tornar hegemônica. Ela é especialmente perigosa quando ascende ao poder. Nisto eu devo concordar, porque, embora eu creia que Deus saiba o que é melhor, admito que suas ordens estão em um texto o qual deve ser interpretado. Se uma determinada interpretação se torna hegemônica e tal interpretação estiver errada, teremos um problema. Assim, tanto eu como Nietzsche concordamos que o cristianismo não deveria aspirar ao poder político, mas afirmamos isso por razões diferentes.

Nietzsche nos revela que a filosofia alemã é fortemente influenciada pelo protestantismo. Como a denominação cristã que prioriza a fé sobre tudo o mais (enquanto que o catolicismo vê a fé e a razão como conciliáveis), ela é o lado mais sentimental do cristianismo. Mas, como vimos na Alma de Voltaire, fé e razão são mesmo de natureza diferente. Se você prioriza a fé, rebaixa a razão.

Virgem do apocalipse. Autor: José de Ibarra. Fonte: Wikimedia Commons.

Nietzsche chama o protestantismo, inclusive, de paralisia da razão. E é essa paralisia que está subjacente em toda a filosofia alemã, ele diz. A primazia do sentimento sobre a razão nos leva a ver nossos sentimentos, o “eu creio”, como argumentos. Quanto mais forte for o sentimento, mais a pessoa se julga acima da razão. Essa intuição é mais perniciosa quando propaga verdades, não métodos. Se você descobre um método, você pode testá-lo pra saber se funciona. Se você descobre uma verdade, sem método (porque sentimento não é método), como você vai saber se aquilo é mesmo verdade?

Se assim é, claro que uma moral falida como a de Kant seria alardeada como revolucionária. Falida, porque impraticável: pra Kant, se você faz algo porque é prazeroso, mesmo que esteja agindo bem, não está fazendo por dever. Logo, sua ação não é moral. Pra Kant, a pessoa só age moralmente se age sem prazer. Lascou-se pra quem gosta de defender causas sociais. Isso acaba com o potencial dos que fazem o bem por prazer, justamente aqueles que têm mais habilidade de fazer o bem. Também perigosa: uma nação que se guia pelo imperativo categórico, pelo que “é certo”, não pelo que lhe é vantajoso (porque vantagem é prazer), se torna presa das nações que não observam esse princípio. O mesmo se diz do homem individual: quem é muito bonzinho sempre se ferra.

A virtude deve ser julgada como tal segundo o quão benéfica ela é à nossa vida. Tudo o que atenta contra nossa vida não é virtude. Nietzsche põe Kant, Leibniz e Lutero na categoria de “empecilhos à integridade alemã”.

A arte de escrever.

Schopenhauer faz uma distinção entre informação e instrução. Informação é a descrição das coisas: sua definição, sua constituição, seu processo de feitura, sua serventia (ou efeitos). Mas isso é inferior à instrução. A instrução é a capacidade de usar essa informação. Quando você sabe apenas pra mostrar que sabe, você é informado, mas não instruído. Quando você usa a informação que tem pra melhorar sua vida ou pra construir seu próprio pensamento, você é instruído, mesmo que, às vezes, mal informado.

Esse problema é apontado por Roberto Machado, pra quem as aulas de matemática no curso de pedagogia e no curso escolar parece que só servem dentro da escola. Os alunos não sabem pra quê usar as fórmulas que aprendem sofregamente no ensino médio, por exemplo. A informação sem instrução é inferior. É preciso que cada aluno tenha pensamento próprio e seja capaz de aplicar em sua vida o que aprendeu. Ter erudição sem pensamento próprio é como ter uma peruca (cabelo de outros) por não ser capaz de produzir o próprio cabelo.

Mas a instrução sem informação também é péssima! Se você constrói o pensamento próprio com informações desencontradas, falsas, tendenciosas ou incompletas, você vai virar um astrólogo e morar em Virgínia. É um erro comum entre os neófitos da faculdade de filosofia pensar que é possível ser filósofo sendo somente original, elevando sua opinião ao grau de verdade. Tanto o excesso de aprendizado quanto o excesso de ensino, tanto o excesso de escrita quanto o excesso de leitura, essas coisas prejudicam o pensamento próprio. Informação e instrução precisam estar equilibradas. Num ensino básico que vai do infantil (creche) até o médio (adolescência), é indisculpável que a escola não guarde, pelo menos, um quinto desse tempo pra instruir os alunos, em vez de só informá-los.

Mas surge uma dúvida: se a instrução depende da informação, como saber se uma informação é boa? A maioria das pessoas, quando precisa se instruir, procura recomendações. Tipo, quando alguém se pergunta o que ler agora, ele pega o jornal e vê quais livros estão em alta. Schopenhauer diz que todo o mundo tem o direito de falar besteira, mas que comentar a besteira dita pelos outros deveria ser ilegal. Justamente porque tem gente que procura recomendações pra saber o que ler. Se você faz uma resenha de um livro ruim, as pessoas que esperam esse conteúdo serão atraídas ao livro através da sua resenha. Por causa disso, você só deveria comentar os livros bons que você leu (ou filmes que tenha assistido, jogos que tenha jogado, músicas que tenha ouvido).

Inspiração do poeta. Autor: Nicolas Poussin. Fonte: Wikimedia Commons.

Mas você ainda precisa julgar o que foi produzido. Não comentar não é o mesmo que não experimentar. Se alguma doutrina, pensamento ou posição se torna popular na sociedade (como quando é professado por alguém que tem estima entre o povo ou entre acadêmicos), os intelectuais deveriam se ocupar dele e ter seu parecer sobre ele, mesmo que não o comentem. Além disso, o fato de Schopenhauer dizer que algumas posições não deveriam ser comentadas não quer dizer que eu concorde com ele. Algumas posições precisam ser contestadas, mesmo que isso implique em sua divulgação.

Schopenhauer se volta, então, à diferença entre os que estudam por prazer e os que estudam porque são pagos pra isso. Sim, você pode ser pago pelo estado pra estudar. Isso se chama “pesquisa e desenvolvimento” e é necessária a qualquer nação. É graças aos pesquisadores muito bem pagos que a vacina contra o coronavírus está em desenvolvimento. Schopenhauer observa que as grandes descobertas são feitas por aqueles que colocam o dinheiro em segundo plano, mesmo que estejam sendo pagos.

Se você faz ciência visando dinheiro, você fará uma ciência completa o bastante pra ganhar o dinheiro que você quer. Aliás, esse é o tipo de pessoa que falsificaria a verdade científica se a mentira pagasse mais que a verdade! Por isso que uma sociedade se arruína quando todos só pensam no benefício próprio, especialmente se intelectuais são levados a agir de tal forma.

Se você faz ciência porque gosta, você fará uma ciência muito mais abrangente, porque não a verá como trabalho. Se ciência é divertido pra você, nunca você vai parar de praticá-la e irá mais fundo no seu objeto de estudo, mesmo que você descubra algo tão massa que nenhum estado do mundo poderia te pagar adequadamente. Claro que isso requer certo grau de independência: se você depende de alguém, você terá que conformar sua ciência àqueles que te sustentam.

Assim falava Zaratustra.

Zaratustra, aos trinta anos, deixou seu país pra morar dez anos na montanha. Um belo dia, ele olhou o sol e teve uma epifania: a glória do sol não é nada se não tiver quem necessite da luz solar. Se não houvesse gente no mundo, não houvesse plantas ou bichos, o sol não teria significado. Seria uma bola de fogo ali. Zaratustra quer ser como o sol. Ele, julgando-se sábio, entende que sua sabedoria vale pouco ou nada se ele não se encontrar com aqueles que necessitam dessa sabedoria. E assim começa a história dele, com a ideia de que aqueles que creem ser sábios devem ir atrás de quem deles necessite.

Triunfo de Galateia. Autor: Rafael. Fonte: Wikimedia Commons.

Eu não me considero sábio, só um cara que estuda. Mas como eu acho que tem gente que precisa ler o que os filósofos pensaram, embora não tenham tempo nem forças pra compreender seus livros, eu dei tal propósito a este blog. Se você tem algo a dizer e acha que outros se beneficiariam do que você diz, por que você não fala? O sábio silencioso é inútil.

A arte de lidar com as mulheres.

Após passar um capítulo inteiro falando bem da poligamia, inclusive dizendo que a poligamia acabaria com a necessidade de prostituição, por ele vista como um ofício duro e inevitável, Schopenhauer admite que a poligamia tem uma desvantagem. É a única desvantagem por ele apontada à poligamia: o número de sogras. O estereótipo de sogra exigente vem de muito tempo e é perfeitamente compreensível. Afinal, você está se casando com o filho de alguém. Esse filho tem mãe e a mãe não vai querer que seu filho case com qualquer um. Eu li em algum lugar, não lembro onde, que o Islã permite você ter várias esposas, desde que elas não sejam irmãs entre si. O escritor do texto rapidamente adiciona: seria fácil entrar no Paraíso se você tivesse dez mulheres e uma só sogra. Eu não sei se Schopenhauer tá falando sério agora, depois de falar tão bem da poligamia. Talvez esta desvantagem seja uma piada. Ou uma verdade contada em tom comédico. Quem sabe?

Passando pra outro assunto, Schopenhauer fala dos direitos iguais. Lembre que Schopenhauer, à época da escrita de Parerga e Paralipomena, era misógino. Então, é claro que ele escreveria que a mulher não deveria ter direitos iguais aos dos homens se também não lhe fosse concedido o intelecto masculino. Pra nós, hoje, isso soa muito errado, mas talvez fizesse sentido na época de Schopenhauer, pelo simples fato de que o acesso à educação era mais difícil à mulher.

Amor e Psiquê. Autor: William-Adolphe Bouguereau. Fonte: Wikimedia Commons.

Isso também estaria por trás da ideia que Schopenhauer fazia das mulheres artistas. Pra ele, a mulher tem zero sensibilidade artística. A isso, gostaria de contrapor a autora de Fullmetal Alchemist. Mas Schopenhauer rapidamente diria, se estivesse vivo e ainda fosse machista, que uma exceção não altera a regra. Na verdade, ele diria que a mulher que se “força” às belas artes é como uma mulher que coloca silicone. Como? Porque, pra Schopenhauer, isso não seria natural. Uau, isso foi tão pesado que até eu, que não sou mulher, fiquei ofendido.

A reclamação de Schopenhauer quanto a essa “falta de intelecto” é de que a mulher, ele diz, ao receber os bens do marido quando morre, não os gerencia bem, os dissipa, desperdiça e estraga. Schopenhauer diz que esse problema seria resolvido se a mulher tivesse seu direito de herança limitado. A viúva, na medida em que também não trabalha, deveria receber auxílio do governo até a morte. E é isso. Ela não teria direito ao capital ou bens imobiliários do marido finado. Me pergunto pra onde iriam esses bens e capital então. Pros filhos, mas sobretudo aos meninos: a herança só seria da esposa se o homem não tivesse deixado filhos do sexo masculino. Ele também era contra a ideia de que a mulher deveria ficar com a guarda dos filhos, porque a pessoa que precisa de tutela não pode tutelar.

Isso constituiria razão suficiente pra não casar. Mas Schopenhauer, como sempre, dá mil e uma razões pra não casar. Deveria haver um livro só sobre isso: Conselhos Filosóficos Contra o Casamento. Então, Schopenhauer diz, com muito acerto, que o casado “carrega todo o fardo da vida”, mas o solteiro carrega “só a metade”. Porque o solteiro tem tempo livre pra atividades intelectuais. Schopenhauer, por isso, aconselha que o homem com inclinação científica, filosófica ou artística deveria permanecer solteiro. Já o homem que se casa, vai virando burro de carga, ele diz, e é notável como as mulheres tratam subalternos. Bom, já estou na página noventa deste livro. Daqui a pouco o termino. Portanto, paciência.

10 de fevereiro de 2020

A moral e a natureza humana.

Filed under: Livros, Saúde e bem-estar — Tags:, , , — Yure @ 21:58

O texto abaixo é uma honesta aula filosófica baseada em Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro, escrito por Nietzsche, com sugestões de como as ideias contidas em tal escrito podem ser usadas para desenvolver o país e ajudar as pessoas a se compreenderem.

Coisas que a filosofia não é.

Para pessoas que nunca tiveram contato com a filosofia ou que se formaram em alguma outra coisa ou que, de uma forma ou de outra, não são “entusiastas” por ela, filosofia é história da filosofia. Isso não é verdade. Uma coisa é a filosofia, outra coisa é sua história. A filosofia, pelo menos antes da distinção entre ciência e filosofia, é o estudo racional do homem e da natureza, da qual o homem faz parte. A história da filosofia se ocupa apenas da documentação da evolução desse processo.

Por causa do gênio de alguns filósofos, a filosofia também não é fácil. Todo escritor tem um público-alvo. Se você quer fazer filosofia para leigos, você escreverá de maneira simples. O problema é que, historicamente, os filósofos mais influentes não escreveram pra leigos, mas para outros filósofos, para políticos, para cientistas, e isso torna as obras capitais da filosofia inacessíveis ao coitado do cidadão comum. Há aqueles inclusive que escrevem para pessoas como eles próprios. Esses são os mais difíceis de compreender. Um filósofo que chega ao ponto de escrever dessa forma, pra gente igual a ele mesmo, provavelmente tem algum objetivo implícito que vai além da mera divulgação do pensamento. Pode ser, por exemplo, que ele queira que suas ideias sirvam de instrução pra os que consomem sua obra, de forma que haja uma ação coordenada de certos segmentos da sociedade, ou talvez ele espere que esses leitores que o compreendam entrem em contato com ele. Isso, ou ele apenas quer evitar que suas ideias sejam usadas por “pobres de espírito” e use uma linguagem difícil ou enigmática pra garantir que só os “iluminados” entendam ele. Elitista, não?

Os erros dos filósofos.

Para este texto, estou igualando filosofia e ciência como formas racionais de conceber o mundo. Tanto o filósofo quanto o cientista buscam a verdade. Mas já pensou se a verdade for uma mulher? Estereotipicamente, intelectuais são péssimos com as mulheres… Isso talvez explique porque a filosofia já deu tanta mancada no cortejo de sua amada. Tal como o tímido usa os meios errados pra queixar a comadre dos seus sonhos, a filosofia muitas vezes usa os meios errados pra se aproximar da verdade. Por exemplo: generalização com poucos casos. É o caso da mulher que é traída por três caras e conclui que todo homem trai. Isso é uma generalização com amostra limitadas: por causa de três caras, ela diz que todos traem. Tá errado, certo? Bom, a filosofia e também a ciência já fizeram muito isso.

Há que se lembrar que a busca pela verdade já causou vários estragos à humanidade. O exemplo mais memorável é a bomba atômica. Aliás, a energia atômica em geral. A busca pela verdade leva nós, homens, aos mais brilhantes louros de glória, mas também aos mais desesperados fracassos. Talvez porque a buscamos a verdade de forma errada… ou talvez porque a buscamos em primeiro lugar. Afinal, a busca pela verdade é arriscada. Ser filósofo ou cientista é se expor ao risco. Aliás, é expor a humanidade ao risco. Correr risco pode recompensar, inclusive com a felicidade, então… quem sabe? Talvez valha a pena!

Outro erro dos filósofos é achar que uma mentira é automaticamente ruim. Quando o ser humano é frágil, talvez não valha a pena abandonar a ignorância. Mas não só isso: às vezes, uma verdade pode levar o ser humano à indolência. Uma “verdade” que faça o ser humano deixar de se aperfeiçoar vale a pena?

Por exemplo: a paz é possível? Se pararmos pra pensar se ela é possível, pode ser que estoure outra guerra mundial enquanto estamos pensando. E se concluirmos que ela é impossível? Valeu a pena concluir isso? Se a paz for mesmo impossível, isso significa que devemos parar de estimular a paz? Donde decorre que uma verdade nem sempre é útil ou desejável. Isso significa que uma mentira pode ter valor, se ela impele o ser humano a se aperfeiçoar. E daí que a paz é impossível? Ainda a queremos. Então vamos buscá-la, mesmo que ela não exista. E isso é bom, especialmente porque é útil a todos os humanos. A utilidade pública é uma manifestação de amor a todos. Procurando a paz, esse ideal impossível, ao menos reduzimos a violência no globo.

Disso se segue que uma verdade, pra poder pegar, precisa ser também útil. Dispor de uma verdade que não serve é como morrer de sede no meio do mar, água que não se pode usar pra matar a sede. Se você fala uma verdade inútil, seu valor não será percebido pelos leigos, pela política, por aqueles que não são filósofos ou cientistas. Ser percebido pela política é especialmente difícil, porque, na política, somente se considera aquilo que é visto como um problema pra uma determinada classe. Se uma classe política vê que a verdade encontrada por você diz respeito a ela, a verdade terá impacto político. Mas, na política, a menos que a pessoa esteja doente, ninguém se preocupa com problemas que não dizem respeito à sua classe. É preciso que a verdade seja útil a alguém ou resolva algum problema de algum segmento da sociedade, ou a verdade será esquecida (ou tida como mera “curiosidade”) e o mundo continuará do mesmo jeito. Na verdade, se a mentira for útil, as pessoas preferirão acreditar nela. A aparência pode ser mais atraente que a verdade. Muitas vezes, a verdade dói. Uma pessoa pode até esconder a verdade por saber que ela é cruel demais pra ser divulgada. Ela pode se mostrar como uma besta que se quer amansar ou ainda da qual se quer fugir.

Alguém pode argumentar que isso é um absurdo, porque todo o mundo quer educação, sabedoria e, portanto, a verdade. Não, cara, nem todo o mundo quer educação e sabedoria, nem todo o mundo quer a verdade. As pessoas querem viver bem, querem fruição da vida, gostoso conforto (o qual, a bem da verdade, convida o conformismo), mas os problemas da humanidade ficam no caminho.

Cada problema é, portanto, uma possibilidade de aperfeiçoamento e a ciência deveria fazer da verdade uma arma contra esses problemas, contra o sofrimento, tomando a oportunidade e sendo útil aos que enfrentam tal problema. O sofrimento nos move ao saber e cada sofrimento superado deixa a humanidade em um estado melhor que o anterior. Claro que pessoas acostumadas ao sofrimento veem a felicidade como algo efêmero, mas não seria isto também uma oportunidade? E se a filosofia e a ciência não apenas proporcionassem simples felicidade, mas também felicidade duradoura? Se a verdade for difícil de obter, for difícil de compreender, não resolver nenhum problema e não trouxer a felicidade, as pessoas procurarão a felicidade por outros meios.

Por isso tantos acreditam em belas mentiras. A ignorância proporciona a despreocupação! Se não valer a pena deixar a ignorância, ninguém a deixará. Isso é grave, porque felicidade e infelicidade não são argumentos. Não há lógica no mundo que faça uma pessoa agir de uma forma que ela reconhece como danosa à sua pessoa, inclusive ao seu estado de espírito, a menos que ela veja como ela pode derivar disso um benefício que compense a dor sentida.

A menos que a verdade seja também útil, ela não será aceita. Por isso o reacionarismo intelectual é tão forte hoje. Porque as verdades produzidas em nosso tempo não agradam. A verdade pode não ser tão prazerosa. Exemplo: o estado deve ser laico, moral é relativa, a liberdade de expressão deve ser total, o critério de avaliação de uma relação sexual é sua qualidade, entre outras coisas que deixam muita gente desconfortável, tanto na esquerda quanto na direita. Na verdade, pra alguns, elas soam até criminosas. Isso é agravado pelo fato de que mudanças estimulam hostilidade. Por isso se censuram livros feitos por gente da melhor espécie. É preciso que as pessoas vejam como tais ideias podem melhorar a vida delas, ou elas não aceitarão e se voltarão aos astrólogos.

É preciso fazer o bem, mas não somente à humanidade. É preciso fazer o bem também aos seres individuais: amigos, família, a si mesmo. Por mais que nossas ideias sejam verdade, se não forem úteis, não apenas à república, mas também aos indivíduos que dela participam, voltar à mentira é mais confortável, fácil e desejável. Todos querem a felicidade, mas a verdade não é prioridade de muita gente. Se a verdade, além de inútil, parecer também danosa, você diminui ainda mais as chances de aceitação, porque ninguém aceita algo que vê como prejudicial a si mesmo, não importando se é bom pra república. Isso é algo que se deve considerar na busca pela verdade.

Se a verdade tem também que ser útil, não podemos fazer filosofia ou ciência “desinteressamente”, como se agir de outra forma fosse imoral. Aliás, nada é feito sem interesse. Nem amor é feito desinteressadamente. Então essa ideia de que se deve procurar conhecimento “desinteressadamente” não apenas é um ideal pernicioso, mas também impossível de alcançar plenamente. Quem faz pesquisa sem, pelo menos, sentir prazer ao fazê-la? Esse prazer não é um interesse que te motiva a pesquisar? Pois então! Se não é possível agir sem interesse (toda ação voluntária pressupõe um objetivo), por que não permitir agir com interesses mais abrangentes, como o bem-estar coletivo?

É preciso fazer com interesse e o interesse é descobrir meios de melhorar nossa vida. É o interesse que nos diz em qual direção ir. Se você não sabe pra onde ir, você fica no mesmo lugar. É verdade, algo não é verdade porque me deixa feliz, algo não é belo porque me agrada, eu não sou grande porque me elogiam. Mas o ideal é que a filosofia e a ciência produzam conhecimento que seja verdadeiro e também útil. Observe que isso não é o mesmo que maquiavelismo: quando falo de utilidade, falo não somente dos resultados, mas também dos melhores meios de atingi-los, ou as consequências dos nossos meios voltarão pra ferrar a gente.

É pra isso que a filosofia e a ciência deveriam servir. Para isso, a filosofia deve se orientar por problemas. Em vez de simplesmente procurar conhecimento “desinteressadamente”, devemos pensar nas coisas que nos incomodam e procurar uma solução pra elas. É por isso que o ser humano mostra seu verdadeiro potencial na adversidade: se não houvesse problemas que nos incomodassem, ninguém procuraria mudar de condição, ninguém procuraria melhorar de vida. A existência de problemas e a busca por soluções pra eles é o que mantém o ser humano em movimento ascendente. Devemos usar nosso conhecimento pra fazer o bem, particularmente aos nossos próximos imediatos. É esse tipo de pensamento que faz o ser humano progredir, porque ele nos motiva a eliminar problemas que identificamos, o que torna a nossa vida melhor. Aí, sim, a verdade passará a recompensar no céu e na terra! Aliás, se a ciência e a filosofia forem usadas pra sistematicamente resolver nossos problemas, a terra gradualmente será um paraíso.

Há que se lembrar que as mentiras são facilmente aceitas por também serem, ao menos em sua superfície, simples. Amamos a simplicidade e isso nos deixa abertos ao consumo de conhecimento falsificado, o qual transforamará a mente como o alimento estragado transforma o corpo: estragando. Uma informação, verdadeira ou falsa, que seja também útil e simples será aceita por um maior número de pessoas do que se ela fosse apenas útil ou apenas simples. É preciso que a verdade se adeque a esses dois critérios, porque a mentira já se adequa. Alternativamente, você pode fazer a mentira soar complicada, reduzindo a adesão a ela. Se algo é simples, complicar aquilo reduzirá sua adesão. Isso também contribui pra que pouca gente se dedique à filosofia ou à ciência, porque temos o preconceito de que o conhecimento é difícil de conseguir, algo para velhos que já fazem isso a vida inteira, não algo que os jovens possam fazer. É verdade, existem problemas dignos dos mais sábios, mas nem todos são assim.

Você também pode mostrar a mentira prejudica o bem-estar da pessoa e como seu bem-estar poderia ser mais estável mudando pro lado certo. Essa tática é empregada por mentirosos. Mas os filósofos e cientistas acham que, só porque falam algo real, serão aceitos sem esses esforços. Pelo contrário: todo intelectual deve se esforçar pra ser compreendido e validado pelo maior número possível de pessoas.

Se o leigo não tem saco pra um artigo científico, desenhe uma história em quadrinhos, escreva um romance, componha uma música, qualquer coisa. O que importa é que sua ideia chegue a seu destinatário e seja compreendida. A maior dificuldade pra alcançar esse objetivo é que os sábios, de tão especialistas no que são, se distanciam da realidade do leigo e perdem de vista aquilo que interessa a eles, como eles pensam, do que eles falam. Isso afeta até mesmo sua pesquisa: um intelectual pode ter dificuldade em perceber algo que o leigo percebe, não porque o intelectual é idiota (porque ele não é), mas porque seu objeto de estudo lhe toma tanta atenção que ele esquece da vida. Na verdade, um sábio altamente especialista em seu campo pode até mesmo ser incapaz de compreender a si mesmo, embora conheça bem seu objeto de estudo. Isso dificulta a compreensão do sábio pelo leigo.

Sabe o que seria interessante? Se intelectuais escrevessem como comediantes ou, pelo menos, empregassem comediantes como editores. Porque comediantes, mesmo com o ocasional erro de português, escrevem melhor e mais desinibidamente que intelectuais puros. Os livros mais lembrados e mais influentes não necessariamente são os mais verdadeiros, mas os mais tocantes, mais belos, os que dão vontade de ler em voz alta. Nisso, a literatura de ficção ganha da literatura científica. É preciso que os filósofos e cientistas aprendam a escrever com um estilo mais interessante.

Mas tem algo mais… a busca da verdade não é somente uma questão de método, mas também de índole. Uma pessoa, ao falar da verdade, pode não ser suficientemente verdadeira. Existem filósofos que não são realmente amigos da “verdade”, mas amigos da “sua verdade”. Esse é um problema comum entre os filósofos que são, na verdade, moralistas disfarçados, que querem que seu modo de vida se torne (ou permaneça) o modo de vida dominante. Ora, a moral é uma interpretação particular do mundo, um modo de vida que escolhemos, por isso ela muda com o tempo, porque nossas necessidades mudam com o tempo. Um filósofo (ou melhor, ideólogo) que seja também moralista provavelmente está interessado em fazer com que todos adotem o comportamento pregado por ele, o que revela muito sobre quem ele é. Eles passam a usar sua lógica, sua dialética, pra disseminar o ódio a qualquer pessoa que possa posar uma ameaça ao que eles acreditam, chegando à estupidez de fechar os ouvidos aos argumentos contrários, postura parcial, oposta ao ceticismo e, por isso, suspeita.

Ora, o ódio nos predispõe a atitudes inconsequentes, como a mentira, por mais que a mentira seja bem-intencionada. Isso não é filosofia (a qual deveria se comprometer com a verdade), mas doutrinação. Lembre que uma conclusão plausível, convincente, nem sempre está certa. É por isso que até mesmo pessoas que acreditam na moral devem manter seu senso crítico alerta, para distinguir aqueles que raciocinam bem daqueles que falam bem. Preste mais atenção no que a pessoa faz, não tanto no que ela fala, quando o assunto é moral. Além disso, é preciso que aqueles que combatem tais ideólogos não se tornem também ideólogos.

Um moralista pode se apropriar da lógica, da dialética ou do método científico com o único intuito de justificar seus desejos reprováveis e fazê-los parecer aceitáveis ao mundo inteiro, pra se sentirem superiores, pra humilhar os outros, pra mentir pra si mesmo, pra subjugar ou até pra se humilhar (talvez pra gozar da aparência de modéstia). “Descobrem” coisas e dizem que elas são propriedades da natureza, querendo submeter a natureza, que é amoral, à tirania da sua moral, mas uma coisa é inventar e outra é descobrir. Há uma diferença entre o ser e o dever-ser, a natureza não é do jeito que gostaríamos que ela fosse. O problema dessas pessoas é que elas tentam resolver esse problema mentindo, dizendo que a natureza, o mundo, as pessoas são como ela diz serem, o que não muda nem a natureza, nem o mundo e nem as pessoas.

Falsificar a realidade é uma tentativa de vingança, perpetrada por pessoas que não aceitam o mundo como ele é e nem têm forças pra mudá-lo. De tanto se esforçar em ver a natureza como ela não é, a pessoa perde a capacidade de olhá-la de outro modo. A parte chata é que, quando um desses filósofos, que são, na verdade, ideólogos, obtém reconhecimento, outros como ele surgem, surfando a onda iniciada. Mas por que tais filósofos existem? O que leva um filósofo a agir de forma tão egoísta? Afinal, cada ação voluntária pressupõe objetivo.

É que o pensamento é um instinto. Se a filosofia tem como seu princípio o pensamento, ela se origina, em última instância do instinto. Pode ser o de autopreservação, reprodução, aperfeiçoamento próprio ou aperfeiçoamento da espécie. As pessoas filosofam porque percebem problemas e temos um instinto que nos leva a tentar solucioná-los (porque não queremos apenas viver, mas viver bem), mas a percepção do problema é algo bem pessoal. No final, nós somos parte da natureza… E tudo o que é parte da natureza comporta uma porcentagem de instinto. Isso é grave, porque deixa implícito que não existe filosofia imparcial. Qualquer adepto de uma escola filosófica, de um mestre, está sendo doutrinado. Um uso imparcial da filosofia iria requerer o estudo, ironicamente, de sua história, passando em revista o pensamentos de tantos filósofos quanto possível, a fim de permitir que o próprio leitor julgue quem tem razão e quem está só contando uma mentira plausível, tanto na filosofia quanto fora dela. A filosofia só tem valor se ensina também senso crítico, inclusive quando aplicado ao pensamento que está sendo aprendido.

O nosso raciocínio diz muito sobre nós. Por exemplo, uma pessoa que valoriza a liberdade colocará esse conceito como central em sua filosofia e isso diz algo sobre sua personalidade. Se essa pessoa, além de valorizar a liberdade, sistematicamente ignora qualquer argumento favorável ao determinismo, pode ser que ela esteja apenas tentando proteger o que ela considera importante, em vez de verificar se o outro lado tem ou não razão. Esse tipo coisa pode nos dizer quando uma pessoa é uma filósofa e quando se trata de charlatanismo. Como regra geral, o estudo da filosofia que não estimula o senso crítico, inclusive das doutrinas que são consumidas, é doutrinação. Por causa disso, sempre que um filósofo ou cientista disser algo como “é assim, e pronto”, isso é digno de suspeita.

E isso nos leva ao próximo erro filosófico: a adoção e o exagero de preconceitos populares em um raciocínio. De fato, se nós tivermos que provar tudo o que estamos dizendo, a conversa de verdade nunca vai começar. Então, todos os debates, filosóficos ou não, precisam começar por algo que ambos os lados considerem como certo. O problema é que um filósofo pode acabar adotando como ponto de partida um preconceito popular. Até aí, tudo bem. O verdadeiro problema é quando ele eleva esse preconceito, a afirmação inicial, ao posto de elemento mais elevado do raciocínio dele.

A afirmação inicial, o ponto com o qual ambos os lados de um debate concordam, é uma afirmação gratuita por definição, porque ela não é provada, só assumida. Ela não pode ter importância central. Se esse ponto de partida mútuo é depois tornado elemento central, alguém pode virar pra você e pedir que você o demonstre. Aí você vai ter que provar o ponto de partida. Isso pode ser bem embaraçoso. Outra variação desse problema é usar preconceitos populares não como ponto de partida, mas o longo do raciocínio. Um preconceito é uma afirmação que não é provada. Ora, mas depois que o raciocínio começa, você precisa provar tudo o que você diz.

Outro erro filosófico é a tendência humana a conceber o mundo em antinomias. É bom ou mal, sem meio-termo. É certo ou errado, é justo ou injusto, sem meio-termo. Fazemos isso porque valorizamos mais uma certeza (mesmo que seja uma certeza falsa) do que várias possibilidades. Aceitar a existência de um meio-termo abre caminho pra entrada de outras possibilidades entre dois extremos. A maioria das pessoas não gosta de raciocinar dessa forma, porque é difícil e desconfortável. Por exemplo: a separação entre verdade e aparência é uma escada, não um muro. Mas é desconfortável admitir que existem “meias-verdades”, mesmo de coisas são 80% verdade e 20% mentira.

O problema é que o meio-termo existe tanto na ação humana realista quanto na natureza. Por exemplo: uma boa ação, pra ser boa, precisa ter motivos honestos? Porque existem boas ações motivadas por sentimentos “feios”, como a luxúria ou a ganância. Se uma pessoa faz o bem porque isso dá dinheiro, podemos dizer que ela está agindo mal, só porque sua boa ação é motivada por interesse? Se algo bom é feito por interesse, ainda é bom.

Além disso, é preciso lembrar que diferentes pessoas têm diferentes conceitos de vício e virtude (porque moral não é absoluta). Por exemplo: uma pessoa que valoriza a ignorância ensinará que a curiosidade é um vício. Se é vício, a curiosidade é o mais útil deles. A curiosidade move a ciência, move a filosofia, move o intelecto. Se a curiosidade é um defeito, nem por isso seus resultados são ruins. Outro exemplo: a agressividade é ruim, mas, por causa disso, você vai apanhar de graça quando uma pessoa atenta contra sua vida? A agressividade (um impulso ruim) pode levar à sobrevivência (um resultado bom).

Ainda outro exemplo: existem crimes que são belos e esses são mais defensáveis, como aqueles cometidos por amor, um instinto que frequentemente cega a razão e que temos como um “vício louvável”. Ora, mas todo crime não deveria ser feio? Por que, então, até o assassinato de alguém pode ser celebrado? Donde decorre que existe um meio-termo entre a ação totalmente pura e a ação totalmente má. Se uma boa ação é motivada por um impulso “sujo”, ela não é uma ação pura, mas não podemos dizer que é uma má ação. É assim com quase tudo, não só a moral, mas também na saúde (a loucura é rara, mas até na loucura ninguém é completamente louco), na política, na natureza, educação, nas relações humanas.

Se você conceber as coisas de forma antinômica, é isto ou aquilo, sem verificiar se existe um meio-termo, você está afastando do seu raciocínio um monte de coisas que poderiam enriquecê-lo e levá-lo a uma conclusão mais realista. É como errar de propósito. Lembre-se: alguns filósofos estão mais interessados em se justificarem do que realmente alcançar a verdade objetiva sobre algo, então “errar de propósito” é um truque comum. Desonestidade total, e mau caratismo.

Isso fica mais grave porque algumas coisas que percebemos como antinômicas podem muito bem ser duas manifestações da mesma coisa. Por exemplo, pense na teoria da ferradura: na política, a extrema esquerda e a extrema direita apontam na mesma direção, de forma que a verdadeira polarização não é entre esquerda e direita, mas entre extremos e centro. A extrema esquerda e a extrema direita, sendo opostas, são muito parecidas em seus planos de governo. Por quê? Porque são duas manifestações do autoritarismo.

Infelizmente, não apenas filósofos, mas também pessoas comuns caem no erro de ver o mundo de maneira antinômica. É preciso uma pessoa especial pra ser capaz de perceber e estudar o meio-termo entre dois opostos. Uma pessoa que não é capaz disso é facilmente manipulada por qualquer um que a convença de que certa posição é “má”. É preciso ver o meio-termo antes de fazer uma escolha, mesmo que, no final, você escolha a polarização.

Outro erro filosófico é chegar à conclusões que são bonitas na teoria, mas impraticáveis. Por exemplo: estoicismo. Alguns filósofos afirmaram que se deve viver como a natureza quer que nós vivamos. Na filosofia estóica, viver segundo a natureza é agir segundo sua espécie. Ora, o ser humano é um ser racional, é de sua natureza. Logo, não agir de maneira racional é agir como outra espécie, é agir como bicho. Muito bem. Mas quem quer agir como a natureza quer que ajamos? É que valorizamos nossa individualidade. Se todos agissem racionalmente, o tempo todo, seríamos todos iguais e pouca gente iria querer isso. Os homens valorizam demais as diferenças pra querer agir tal como o outro age. Ora, o que torna os homens diferentes entre si não é a razão, porque a razão homogeiniza. Por isso valorizamos as outras dimensões do homem, como a emoção… o que não é sempre algo bom.

Outro erro filosófico é dar respostas que não significam nada e, basicamente, repetem a pergunta. Tipo: responder “porque ele tem esse poder” quando você pergunta “por que o fogo queima?”. Em muitos raciocínios ao longo da história da filosofia, esse truque é utilizado. Pode até ser que o filósofo genuinamente acredite no que está dizendo e sua teoria faça sentido pra ele próprio e seus adeptos, mas o fato é que ele não consegue explicá-la satisfatoriamente. Contra esse erro, a única coisa que você pode fazer é admitir que existem aspectos de seu raciocínio que ainda são obscuros, coisas pras quais você ainda não tem resposta. Sabe? Ser humilde, em vez de dizer uma coisa enigmática que não tem sentido e não subsiste à crítica.

Por último, outro erro, particularmente da filosofia ocidental, é não olhar pra filosofia oriental. O pensamento é organizado gramaticalmente e numericamente, o que significa que nações com gramáticas parecidas terão filosofias parecidas. O chinês em nada lembra o latim, por isso a filosofia chinesa em nada lembra a europeia. Isso é tão real que uma tradução literal de um texto filosófico chinês perde muito significado. Dar uma chance ao pensamento produzido em outras nações nos permite ver as coisas de um ponto de vista diferente, o que nos enriquece. Mesmo que os orientais discordem dos ocidentais em muitas coisas, existem pontos em comum com os quais ambos podem concordar. Essa aproximação é muito interessante. O oriente é melhor em muitos aspectos, em relação ao ocidente. Quem sabe? Pode ser que nós, ocidentais, estejamos errados em muita coisa que os orientais já resolveram. Se esse é o caso, nós devemos aprender com os orientais e não tentar torná-los ocidentais. “Ocidentalizar” o oriente seria manifestação de mentalidade de caranguejo: como o oriente resolve problemas que não conseguimos resolver com nossas “ideias modernas”, queremos que o oriente fracasse também. Sabe quem faz isso? Os antissemitas: vendo o sucesso dos judeus em quase todas as áreas da vida, os antissemitas querem urgentemente que os judeus fracassem, só pra se sentirem melhor. Pode prestar atenção: maioria dos antissemitas é feia, burra e pobre.

O filósofo que evita esses erros é verdadeiramente útil à sociedade. É o tipo de cara que faz falta. Só dele calar a boca a sociedade já começa a piorar de condição. Esse é o cara que devia estar legislando. Já os filósofos, ou ideólogos, que caem nas armadilhas acima trazem má fama à toda a filosofia, justificando os preconceitos que os leigos têm. Se filosofia se mostra inútil ou prejudicial, os jovens promissores não quererão participar dela e passarão a pensar que filósofo bom é aquele que vive num retiro bem longe da sociedade, meditando até a morte.

Percebendo e reparando erros.

Felizmente, enquanto que o jogo do amor tem bons e maus jogadores, o jogo da busca pela verdade também tem seus bons jogadores. Os grandes homens da ciência que a fazem avançar e depuram a ciência de seus erros, desmascarando os métodos fracassados usados por seus antecessores. Foi assim que a astrologia caiu em descrédito. Mas não basta apontar o erro, é preciso também estudá-lo pra não cometê-lo novamente. E, no estudo dos erros, uma coisa se deixa transparecer…

É que todas as conclusões tiradas de métodos falidos são “dogmáticas”, isto é, tentam se passar por incontestáveis. Por causa disso, sempre que alguém te disser algo como “é assim e pronto, acabou”, não baixe sua guarda. Claro que existem verdades que são incontestáveis: dois mais dois é quatro, todo solteiro é um não casado, entre outros. Mas mentiras são as que mais tentam te convencer de que são reais, enquanto que a verdade de fato não tenta fazer isso. Afinal, se ela é verdade mesmo, ela não precisa ser dita a você: um dia, você vai se tocar que é assim. A verdade não precisa de defensores: ela se impõe. Isso não quer dizer que não devemos falar a verdade, mencioná-la ou buscá-la, mas que, quando você fala a verdade pra alguém e a pessoa não acredita, não tente convencê-la. Deixe que ela sinta as consequências de seus atos e ela vai perceber que você tinha razão.

A ciência e sua validade.

O mundo objetivo não é obra dos nossos sentidos. Os nossos sentidos nos mostram imagens, sons e sensações que o mundo provê, dentro de suas limitações. Conhecemos o mundo primeiro por suas aparências. Nossos sentidos são em número limitado e em qualidade limitada. Então, a ciência que se apoia nos sentidos produz uma interpretação inteligível do mundo que é segura, mas não absoluta. Ela é uma interpretação entre outras (filosofia, ciência são apenas dois tipos de interpretação do mundo). Embora existam interpretações racionais que possam ser melhores ou piores em um caso concreto, nenhuma pode se afirmar absoluta: um ser humano imperfeito não pode criar uma interpretação perfeita do mundo. O mundo é como um texto: pode ser lido por todos e interpretado de diferentes formas.

Isso quer dizer que, embora você possa, aliás, deva acreditar na ciência pra que você possa viver bem, entenda que a ciência, por se apoiar nos sentidos, que são limitados, não é uma verdade absoluta. Tanto que ela se atualiza. Pense na ciência como o uso da razão na derivação de sentido dos dados sensoriais, que são limitados, a fim de superar, pela razão, as limitações desses sentidos. Se os sentidos fossem perfeitos e infinitos, não precisaríamos fazer ciência, bastaria só olhar, ouvir, sentir o mundo pra dele derivar a verdade.

Isso não quer dizer, de forma alguma, que você deva desacreditar da ciência porque ela se baseia em sentidos falhos. Esse é outro meio-termo que somos treinados a não ver: a ciência produz conhecimento provável e o provável é seguro. Ela não precisa produzir verdades absolutas pra ser uma forma de conhecimento válida. O fato de ela ser provável, em vez de absoluta, não indica que devamos jogá-la fora. Pelo contrário: a ciência pode não ser perfeita, mas ela é o melhor que temos. Num local onde nossos sentidos não funcionam, a mente não tem nada pra fazer. Se não pudermos usar nossos sentidos, o que usaremos? A especulação. E a especulação é uma forma de conhecimento menos útil que o conhecimento sensorialmente verificável e logicamente plausível. Um conhecimento que não se pode provar pelos sentidos é, na verdade, menos seguro.

Por causa disso, todo o conhecimento produzido pelo ser humano deve ser, idealmente, tanto logicamente plausível quanto sensorialmente verificável (mesmo que através de um instrumento). Mais que isso: o conhecimento deve, pra cativar também o leigo, ser apresentado de forma que os sentidos dele possam constatar a validade do que está sendo dito. Nossa posse mais íntima é o corpo, ninguém tira nosso corpo de nós, mas nem todo o mundo tem telescópio. Uma verdade abstrata não desperta interesse se os sentidos do aluno não são seduzidos por ela primeiro. Os sentidos são seguros e o que não passa por seus critérios é suspeito. Então, quando quiser convencer um leigo, pense nos meios que ele tem à disposição. E ele geralmente só tem à disposição a razão e seus cinco sentidos.

Se a ciência é sensorial, segue-se que ela só deve se ocupar de coisas sensorialmente verificáveis. Temas como a alma ou Deus não devem ser estudados pela ciência. Esses são temas especulativos e, como tais, só podem ser estudados especulativamente, de outra forma.

Desejo e ação.

Lembra que temos a péssima tendência de ver o mundo como uma série de antinomias? Uma delas é a clássica: “o ser humano é livre ou determinado”. Mas não é assim. O ser humano não é totalmente livre pra fazer o que quiser, mas nem por isso ele não tem nenhuma liberdade. A liberdade humana consiste em escolher dentre as opções disponíveis de ação. Isso acontece porque nosso poder é limitado: não temos asas, então só podemos escolher dentre as várias formas de locomoção terrena (ou aquática, se tiver um rio por perto, por exemplo). Isso é uma quantidade digna de liberdade pra seres limitados como nós. Mas dizer que, porque não podemos fazer qualquer coisa que queremos, não temos liberdade nenhuma… É um exagero, não acha?

A liberdade humana, então, se manifesta por ações. Se você pensa que querer é o mesmo que agir, vai ficar só na vontade. Nunca a mera vontade triunfa sobre nada. Se você manda alguém fazer algo e essa pessoa faz, o que realizou a ação foi o subordinado, não você, não sua “vontade”. Então o subordinado é mais digno de crédito, porque ele é quem possibilita que sua vontade seja efetivada. Quando alguém com vários subordinados consegue algo grande, arroga pra si todo o crédito pelas ações desses subordinados. Esse tipo de sentimento faz com que a classe dirigente da sociedade obtenha pra si o produto das classes subalternas, porque o chefe, só porque é chefe, pensa que tem o direito a tudo o que seu “subordinado” produz. Depois ele diz que não se mistura com pessoas vulgares ou pobres, sendo que essas pessoas é quem são responsáveis pelo sucesso dele. E isso é muito injusto. Por exemplo, numa empresa, o chefe manda e os empregados obedecem. Mas, se não fosse pelo empregado, o empresário não seria nada. Por isso tanto mais digno de crédito é quem faz do que quem manda.

Dominantes e dominados: chefes, pastores e o governo.

Isso abre uma possibilidade interessante: de que os trabalhadores passem a trabalhar somente pra si mesmos, conquistando a independência de seus patrões, tomando pra si a responsabilidade por suas vidas, sem partilhá-la com outros. Imagine só! “Trabalhadores seguindo seu próprio caminho!” Muitas pessoas fazem isso porque precisam. É o caso dos desempregados que a mídia de massa oportunamente chama de “empreendedores“. Mas existem outros que fazem isso sem necessidade, porque assim desejam: um homem forte, inteligente e útil à sociedade só se submeteria a um chefe se fosse necessário à sua sobrevivência. Um cara desses que se submete a um chefe que é pior que ele como pessoa, sem necessidade, está se prejudicando.

Se todo o mundo trabalhasse apenas pra si, se todo o mundo conseguisse tal audácia, os chefes veriam o quanto precisam dos trabalhadores. Um movimento desses seria rapidamente alvo de todo o ódio do sistema capitalista. Afinal, “de cada um segundo sua capacidade” é a primeira partícula do lema comunista. Isso não quer dizer que todo o mundo deveria deixar seus empregos, já que alguns morreriam se o fizessem, enquanto outros simplesmente preferem trabalhar pra alguém por temperamento ou comodidade. A dependência atrai, porque traz benefícios também. Eu mesmo não quero ser um empreendedor independente, porque realmente prefiro trabalhar pro estado. Cada pessoa decide se sua vida será melhor com ou sem um chefe. Quem tem meios de viver sem chefe deveria considerar isso.

Mas isso não quer dizer que o trabalhador que vive pra si está livre de qualquer tipo de servidão. Ainda haverá outros, que não precisam ser chefes pra dominar uma pessoa: os pastores corruptos. A religião tem valor formativo, mas também potencial destrutivo. Se o trabalhador, em seu tempo livre, vai à igreja, ele precisa estar atento… Porque existem líderes religiosos que usam a religião da mesma forma que o trabalhador usa sua força: como meio de enriquecimento pessoal. Tem gente que acredita em Deus de má vontade. A diferença é que o trabalhador não precisa explorar ninguém pra conseguir melhorar sua vida.

O líder religioso, que descobre na religião uma forma de exercer dominação, usará a fé das pessoas pra obter influência, dinheiro e um curral eleitoral, ao mesmo tempo que usa seletivamente a doutrina do amor e da tolerância ao sofrimento pra manter as ovelhas mansas. A doutrina da tolerância ao sofrimento não é inerentemente ruim: o cristão que sabe sofrer tolera melhor as dificuldades da vida. Não é de todo mal que o sofrimento tenha seu lugar na religião: é preciso ser capaz de rir até em situações sérias, pra que não se caia no desespero. O problema é dizer que o sofrimento e a miséria são razão de orgulho, desestimulando o crescimento pessoal dos fiéis, levando-os a se desesperar de seu próprio potencial, a não cultivá-lo, a se verem como seres sem qualidades que, por fim, passam a odiar a vida. Ensina-se a pessoa a sentir orgulho de seu próprio desprezo por si mesmo. Não querer evoluir por sentir prazer na sua infelicidade é algo de muito mal gosto.

Isso arruína a pessoa, que passa a ser dependente da igreja. E isso é ótimo pra igreja, porque sustenta a ideia que eles querem passar, a saber, de que você precisa da igreja pra viver bem. É assim que as pessoas manipulam os necessitados. O fiel que sente que a igreja está ajudando ele, se sentirá também em dívida. De dependente, passa a escravo. Por acaso isso glorifica a divindade? Não será melhor se o piedoso for também um homem da melhor espécie? Como uma religião que mantém seus fiéis miseráveis pode ser reconhecida como “boa”? Geralmente, as pessoas evitam grupos assim! De que serve o culto ao sofrimento? Segue-se, portanto que uma religião que mantém seus fiéis em más condições descredita a fé.

Não é assim que funciona. Se o homem não tivesse qualidades, se ele fosse tão ruim como o pastor corrupto diz que ele é, a escritura não diria que é possível a um jovem vencer o mal. A boa religião é aquela que fortalece o fiel e o estimula a fortalecer outros que sejam fracos ou oprimidos. Qualquer um vê as qualidades que os homens têm, mas parece que a religião porca treina as pessoas a olharem só pros defeitos, ignorando até mesmo as próprias qualidades. Isso estanca o aprimoramento. Ora, se a religião não está servindo para o aprimoramento do ser humano, tem algo errado com ela…

É preciso tomar cuidado com esses sujeitos, com esses pastores corruptos. Se um crente parece escandaloso ou indiscreto, evite-o. Deus não precisa nem de dinheiro nem de votos dados a um certo político. Por causa disso, um intelectual que tem fé provavelmente não vai à igreja; leu nos livros tudo o que as igrejas fizeram e ainda fazem de ruim. Ele vê que tem gente que mata inocentes por sua fé. Isso não quer dizer que ele odeie a religião, só quer dizer que ele sabe como uma igreja pode ser cruel e, por isso, não participa de nenhuma. Mesmo aqueles que são realmente anticristãos podem reconhecer o valor da religiosidade em geral e concluir que existem algumas religiões melhores que outras.

Por último, se você é cristão, você sabe que o cristianismo é uma religião de igualdade, uma religião que não deveria admitir gradações entre os fiéis. Se o único mestre é Jesus e o ensino dele está nos quatro evangelhos, pra quê ir pra igreja? Se submeta a Deus, não à igreja. Na verdade, é porque as igrejas são o que são que existem cristãos que têm vergonha da moral cristã. São cristãos, mas não dizem isso abertamente, porque sentem que podem ser julgados, não por seus defeitos, mas pelos defeitos da igreja e pelos defeitos dos que se dizem cristãos pelos motivos errados.

No entanto, não é só com o pastor corrupto que você deve se preocupar, se o que você quer é manter sua autonomia. Existe mais gente disposta a dominar você. A igreja ficará com ciúme se não for ela, mas isso não quer dizer muita coisa se outro dominador se sentir satisfeito em ter você como servo. Os outros dominadores são o governo, seus pais, seu cônjuge e qualquer pessoa que ache que você está em dívida com ela.

Vamos focar no governo. Para manter a aparência de legitimidade, um governo corrupto precisa ter a aura de virtude e passar a ideia de que ele não pode tudo. A melhor forma de fazer isso é usando a virtude da obediência. Como a obediência é um valor, mesmo que não reconheçamos, dominadores fingem se submeter a alguém ou outra coisa, como ao “povo” ou à constituição. Gregário, o povo se sente bem ao ver que seu governo também se submete mutuamente a ele, criando aquilo que chamamos de “estado” (associação entre governo e povo).

Como essa obediência é, supostamente, mútua, o governo, que, na verdade, pode mais que o povo, estimula mais obediência de seus súditos, enquanto secretemente se exime de obedecer ao povo de volta, como deveria ser. Tornam-se valores, estimulados pela máquina da propaganda, qualquer coisa que estimule a obediência ou torne o ser humano mais dócil, como a sociabilidade e a indulgência. Não precisar da república torna-se “mau”, precisar dela torna-se “bom”. Ironicamente, consideramos pessoas com essas qualidades como possíveis líderes aos quais nos submeteremos no futuro. É importante, então, que o governante tenha a aparência desses valores também.

O governo também estimula o patriotismo, que é uma espécie de adulação e coisa péssima pra quem é cristão, porque o patriotismo conflita com o amor ao próximo. O patriotismo é uma forma de manter a república como está, manter o estado de coisas, estimulando o amor pelo país. Mas esse amor é de um tipo específico: é o amor pelo que o país é, não por aquilo que poderia ser. Então, um sujeito subversivo, mas genial (porque muitos gênios também odeiam seu país), será odiado pelo patriota. Se o patriota for também cristão, ele estará em conflito consigo próprio: se ele ama a república, deve odiar o subversivo, que é inimigo público; se ele ama a Cristo, deve amar o subversivo, que é seu próximo. Entende porque o cristianismo é ilegal na Coréia do Norte?

Felizmente, o patriotismo é muito facilmente destruído pelos deslizes feitos pelos líderes da nação. Os nossos dirigentes podem agir tão mal, nos representar tão escandalosamente, que qualquer patriotismo se torna inviável. Quem representa nossa nação diante das outras é nosso governo. Um governo que nos inspira vergonha torna impossível qualquer patriotismo. Não tem como sentir orgulho da nação quando todo o mundo ri dela, ou a odeia.

O patriotismo é um estado de espírito e, como tal, irracional e embaraçoso pra quem dele se recupera. É também um ótimo meio de ferrar sua capacidade de adaptação a outros ambientes, porque o patriota sempre julga seu país como melhor que os outros. Ele também prejudica a relação com seus compatriotas, como vimos no parágrafos anterior. Odiar os “subversivos” é uma postura altamente conservadora, porque abandona ideias novas, que poderiam até enriquecer a república, à calúnia. É preciso que todo o mundo odeie essas ideias. O governo, usando a mesma máquina de propaganda que estimula a obediência, poderá promover censura e manipulação da opinião pública, quando essas ideias o ameçam. O governo que age dessa forma não está interessado em servir ao povo, mas garantir que o povo continue o servindo. Qualquer governo que empregue censura ou manipulação é suspeito.

Mas essa postura tem um grave problema: marginalizados, os subversivos podem chegar a um ponto em que não têm nada mais a perder. Abandonados pelos antigos amigos, pela sua “pátria mãe”, encontram novos amigos uns nos outros. É quando eles estão mais propensos a apoiarem uns aos outros, se organizarem e fazer seu ativismo. Quem tira tudo de uma pessoa, tira dela também o medo de lutar.

Mas como se emancipar? O primeiro passo é moderar sua gratidão. Ao retribuir um favor, a retribuição não pode te deixar numa situação pior do que aquela em que você estava antes de o favor ser prestado. Se assim é, você foi vítima de um golpe; trocou um mal por um mal maior. Portanto, se você tem que retribuir à igreja, aos pais, ao governo, a qualquer um que tenha te feito um favor, não permita que sua retribuição ferre você. Recuse o favor, por exemplo, se isso custar sua liberdade, seja artística, de pesquisa, de expressão ou de pensamento. Depois disso, evite pensar nos seus antigos dominadores. Se, após se emancipar, eles ainda habitam sua mente, sua emancipação não está completa. Não imortalize, mesmo que em sua memória, aquilo que é podre. Esqueça-os, viva sem rancor.

A pobreza intelectual da elite.

Há outro risco nessa divisão entre dominantes e dominados. Os dominantes aspiram o conhecimento do mundo, mas sem se misturar ao povão, que representa a maioria. Para conhecer o mundo, é preciso experimentá-lo. Então, se você só olha pra pessoas “iluminadas” como você, só com elas conversa, em vez de participar da miséria humana que aflige a maioria da população, você está experimentando o mundo em sua exceção, não em sua regra, porque o comportamento majoritário é a regra. Ora, o conhecimento da exceção é inferior ao conhecimento da regra, porque abrange menos casos. Esse conhecimento “elitista” é imprestável. Se devemos nos ocupar primeiramente da regra, é preciso se ocupar dos fracos, dos iletrados, dos pobres, que são a maioria, portanto a regra. Se fechar à regra é atitude de quem não tem vocação pro conhecimento. Logo, um cientista que não participa da sociedade, do povão, é menos produtivo, menos nobre e menos relevante. Quem se abstrai da miséria humana pra viver numa torre de marfim acaba tendo menos experiências de vida e seu conhecimento, até mesmo seu gosto, se torna muito restrito: a classe média tem medo de aparentar ter mau gosto, mesmo quando tem mau gosto e vontade de fazer coisas que seus pares considerem “brega”, “escandaloso” ou “de pobre”, o que fecha esses certinhos a um monte de coisas que o mundo tem de bom.

Aliás, pra quê fazer isso? O fato de uma pessoa ter “bom gosto” (uma característica que uma pessoa pode falsificar ou se forçar a ter) não garante que a pessoa é moral ou boa. São coisas diferentes. Na verdade, tem muita gente de bom gosto que é altamente arrogante e cheia de imundície. Muito da arte moderna, essa chamada “alta cultura”, é sublimação da crueldade: gostamos de ver os personagens se dando mal.

Essas novelinhas apreciadas pela classe média por exemplo. Mas já viu o tipo de música que os pobres ouvem? Não fazem referência constante ao sexo? Ora, o sexo é uma expressão do amor. Além disso, os incultos têm belíssimos rituais, particularmente os religiosos, e tradições lindas. A alta sociedade não tem nada disso, porque nada é sagrado pra alta sociedade. Uma pessoa de mau gosto pode ser boa e o bom gosto não é exclusividade da classe média. Donde decorre que gosto não quer dizer nada.

Outro problema dos intelectuais de elite é que eles são os mais interessados em fazer filosofia “desinteressadamente”. Se você só busca conhecimento “desinteressadamente”, você só encontrará uma direção real e produtiva quando alguém disser pra você o que você deve pesquisar. Pesquisadores “desinteressados” são, portanto, mais semelhantes a ferramentas que a seres humanos. Aliada à objetividade, a busca desinteressada pelo saber propociona uma imparcialidade tão grande que o sujeito parece deixar de ser humano: não toma partido de nada (vira um “isentão”), não afirma e nem nega para além dos dados que tem (incapaz de discurso diretivo), não emite juízos de valor, nem mesmo é capaz de sentir raiva, tristeza ou alegria (pela insistência em só observar a realidade de longe). Por causa disso, uma pessoa imparcial, objetiva e desinteressada não tem iniciativa; precisa ser provocado à ação por uma fonte externa. Não estou dizendo que a objetividade ou a imparcialidade são prejudiciais, mas que se tornam prejuciais quando a pessoa tem essa ideia de que o conhecimento deve ser buscado “desinteressadamente”, essa ideia de saber só pra saber, ou “saber pelo saber”.

Da justa valoração.

Como já foi dito, Nós temos a péssima tendência de ver o mundo como uma série de dicotomias. Uma outra dicotomia, esta bastante juvenil, é a de que tudo o que achamos que é “bom” tem que ser venerado, enquanto tudo o que achamos “ruim” tem que ser odiado. Lembre que há um meio-termo, talvez mais de um. Cada coisa merece um grau justo de admiração ou de reprovação. Se não fosse assim, todos os crimes teriam penas iguais. Mas como definir o valor que eu devo atribuir a alguma coisa ou ação? Quando se fala de ações, certamente não é pela intenção. Por exemplo: o direito muito raramente leva em conta a intenção de um crime ao julgar, porque nem sempre o mero homem é capaz de dizer o que se passa no coração do outro. Olhar pra intenção de um ato é julgar o ato sem conhecê-lo, sendo, portanto, uma forma de preconceito. Então, como valorar algo? Pelas suas consequências, que são inerentes ao ato, enquanto que a intenção lhe é externa.

Lembre que muitos ditadores começaram suas ditaduras com boas intenções. Por exemplo: a nossa ditadura militar começou como combate à ameaça de um regime impopular, que era o comunismo. Acabou que não havia essa ameaça. O “movimento democrático” então degenerou nos anos de chumbo. Outro exemplo: vender uma estatal importante, estratégica, pra acabar com a corrupção que nela ocorre, enfraquecendo, por seu turno, a independência nacional, porque o país terá que comprar aquilo que poderia estar produzindo (o que, por seu turno, aumenta o preço dos bens consumidos). Ao fazer uma privatização dessas, aquilo de que mais nos orgulhamos, nosso patrimônio, se torna concessão, dada a nós por outros. Por acaso uma empresa estrangeira em solo nacional é motivo de “orgulho patriótico”?

Por outro lado, esse mesmo pensamento pode levar uma pessoa a se recusar a fazer o bem, a ser um medíocre, por vergonha de suas motivações. É o caso da autocensura: ao perceber que algumas de suas ideias não podem ser discutidas em qualquer lugar, a qualquer hora, com qualquer pessoa, um filósofo ou cientista pode esconder o que pensa, se conformar e abrir mão de seu potencial. E por que ele pensaria que não pode falar o que pensa com qualquer um? Porque seu interesse transparece por toda sua pesquisa, mesmo quando ela conclui algo correto. Talvez o pesquisador até prefira não ter o conhecimento que tem. Infelizmente, isso não é coisa que se esconde por muito tempo. Isso é verdade não apenas na filosofia e na ciência, mas também na arte, porque o artista também tem motivações que ele não pode admitir. Talvez ele use sua arte pra se vingar de algo ou alguém, por exemplo, ou da sociedade que lhe proibiu a felicidade.

Como as pessoas julgam mal quem age, ou apenas parece agir, com interesses “errados”, ele prefere se colocar como obediente à opinião pública, por medo de ser considerado imoral. Condenar moralmente uma pessoa, porém, não é argumento. Só quem faz isso são almas pequenas que não podem te acusar de mais nada e nem podem refutar seu raciocínio. Mas e daí? Se você é imoral, mas bonito, inteligente, obediente à lei e rico, de que importa a reprovação de uma pessoa de moral, de um “homem de bem”, que provavelmente, no todo, não é nem metade do que você é? O lado bom disso é que esses pregadores da virtude eventualmente se tornam altamente irritantes e logo ninguém terá mais saco pra eles. É esse tipo de pessoa que transforma a moral num assunto nojento.

Lembre que houve uma época em que a homossexualidade era razão de vergonha. Os primeiros pensadores a defender a homossexualidade num mundo que odiava a homossexualidade provavelmente tinham medo de (por vezes com razão) serem acusados de serem, eles próprios, homossexuais. “Se você defende gay, você deve ser um; se você é um, você não quer o bem de todos, só o seu próprio!” Esse suposto egoísmo é uma intenção errada. Isso causa vergonha e um sábio envergonhado inspira suspeita. Mas isso também é injusto. Afinal, agindo com a mesma motivação, duas pessoas podem buscar objetivos diferentes. Então o que impede que pessoas com motivações diferentes busquem o mesmo objetivo? Uma pessoa que defende gays não necessariamente é gay. Mas e se ela for? E daí?

Não deixe que suas virtudes sejam transformadas em vícios. É isso que uma pessoa tenta fazer quando não aceita uma virtude que você tem. Ela tenta te fazer pensar que suas qualidades são, “na verdade”, defeitos. É preciso ter a coragem de olhar sinceramente pros seus “defeitos” e ver se são realmente defeitos como todo o mundo diz. Quem sabe? Talvez o que os outros apontem como um defeito seu seja, na verdade, sua melhor qualidade. Nossas vontades, necessidades, desejos mais secretos podem ser uma fonte da qual derivar uma nova virtude. Qualquer pessoa pode ser admirada, até aqueles que pensam que nunca seriam admirados. Portanto, não se deixe coibir pela vergonha. Isso, sim, é um defeito e defeitos não são úteis a ninguém, exceto àqueles que os exploram. Defeitos precisam ser eliminados.

Um filósofo não deve se entregar ao medo da reprovação. Siga sua pesquisa se você acha ela útil ao mundo, não importa qual é a motivação inicial. E, se seu raciocínio estiver correto, não desconfie dele. Toda nação produz uns poucos homens de respeito, os quais são evitados num primeiro momento até terem seu potencial reconhecido. Na verdade, uma ideia pode só ser entendida depois que você morrer… Então tente não se sentir muito mal se parece que todo o mundo odiaria você, sua pesquisa ou suas motivações. Se oriente pelos resultados. Se tiver medo, encontre alguém que partilhe de suas ideias, pra que vocês as desenvolvam juntos. Afinal, quem tem boas ideias procura alguém que as desenvolva e quem entra em contato com boas ideias tidas por outros acaba querendo desenvolvê-las. É bom que hajam esses dois tipos de intelectual: o que produz e o que desenvolve. Isso é bem produtivo. Mas, se você não encontrar, tudo bem. A solidão também é virtude, afinal de contas, já que nos purifica da sujeira que contraímos no convívio com outros.

Mesmo assim, só o medo de uma motivação “errada” ser atribuída ao seu trabalho pode causar desconforto em defender certa causa. Isso mostra tanto como uma intenção percebida pode ser fatal pra credibilidade de alguém quanto mostra como a intenção na verdade não importa pros resultados. Invocar a intenção, hoje, é visto como falácia (argumento inválido), geralmente feito por gente que quer deixar o outro com vergonha de sua posição. Ignore essa gente. Deixe que briguem entre si. Infelizmente, nem todos conseguem ignorar e se deixam consumir. Esses abandonam seu modo de pensar anterior e pedem desculpas por terem pensado com a própria cabeça.

Isso é ainda mais grave quando a pessoa tem a sensação de ser a única que pensa daquele jeito, que nenhum outro bom cientista apoiaria sua causa. Se você fosse o único a apresentar certos resultados, seria mais fácil que alguém dissesse que você defende certas coisas motivado por um interesse particular que não condiz com o interesse público, mesmo que, no fundo, condiga.

A vergonha nos leva a vandalizar nossas próprias crenças, quando são, ao mesmo tempo, corretas por consequência e dignas de vergonha por suas motivações “sujas”. Deturpamos elas pra que as odiemos como todo o mundo também odeia. O lado da maioria nem sempre é o certo, mas sempre é o mais seguro. Mesmo que o mundo precise saber de algo que lhe é pertinente, se a intenção for posta em questão, o pensador será convertido em pária. Se essa reprovação atingir também sua família, amigos ou outros entes queridos, ele pode até preferir nunca ter pensado certas coisas.

A tirania da inteção também leva pessoas a esconderem o próprio sucesso, não porque conseguiram o sucesso ilicitamente, mas porque suas motivações foram baixas (conquistar a atenção das mulheres, por exemplo). Numa situação dessas, as pessoas sagazes, que sabem como se dar bem na vida, adotam uma vida dupla quando se dão bem por razões reprováveis. Ele não pode permitir que suas virtudes o ferrem. Então, ele aprende a ser hipócrita.

É o caso do filósofo ou do cientista que, só pra ficar rico, estuda pra descobrir algo que revolucione o mundo. Quando ele descobre, ele diz que seu esforço é motivado só por “apreço à comunidade” ou pela “busca desinteressada da verdade”. O que ele está fazendo aqui é ganhando o dobro de admiração fingindo modéstia, fingindo que ele mesmo não é lá essas coisas, só um pesquisador que, como que por acaso, fez uma descoberta. Pra trazer uma pessoa pro seu lado, comece fingindo que você não é superior a ela, mesmo que seja. Não é uma falsidade? Sim, é. Mas ele precisa manter uma imagem boa.

As pessoas se sacrificam pela própria reputação, como se a reputação fosse mais importante que sua própria integridade. A imagem é até mais importante do que aquilo que a pessoa tem a dizer. Temos o instinto de autopreservação que preconiza que sobrevivamos, mas também que nos mantenhamos na melhor condição possível. A falsidade, quando gerada naturalmente, é uma manifestação do instinto de sobrevivência, portanto. Por isso a falsidade e a hipocrisia são tão comuns: porque são úteis ao bem-estar de quem as emprega.

Mas nada disso aconteceria se a intenção não importasse, e sim o resultado. Algo não pode ser julgado por suas intenções, por suas motivações. A vergonha das nossas intenções, dos nossos impulsos, dos nossos desejos, erra vergonha precisa ser desaprendida. Foque nos resultados, sempre. A intenção oculta, a consequência revela. Falar da intenção de um ato pode ser uma tentativa de distrair o ouvinte das consequências.

Algo só pode ser julgado bom, ruim, melhor ou pior segundo suas consequências. É por isso que diferentes crimes têm penas diferentes: quanto pior as consequências, maior deve ser a pena. É isso que todos deveríamos fazer. Algo é mau quando faz mal e algo é pior quando faz mais mal. Por outro lado, algo é bom quando faz bem.

A religião e o comportamento humano.

É normal ser religioso. Não houve, que eu saiba, uma nação composta totalmente de ateus. É verdade, ninguém nasce tendo fé. A criança aprende a ter fé. Mas, mesmo quando a criança não tem fé, conforme ela cresce e se faz as grandes perguntas sobre a origem do universo, ela começa a se perguntar se não haveria algo de eterno que ocasionou a vinda do universo ao ser. É, na verdade, anormal não passar por isso em nenhum momento da vida, mesmo que depois tal estado seja abandonado. No ocidente, a religião hegemônica é o cristianismo. Mas o cristianismo vem em três sabores: católico romano, católico ortodoxo e protestante. Vamos considerar os dois primeiros como um só.

Vocês já perceberam como o protestantismo parece pegar mais nas nações do norte e o catolicismo parece pegar mais nas nações do sul? Talvez isso tenha a ver com nossa herança cultural… As religiões primitivas do sul eram religiões de obras. Você tinha que fazer algo pra ser salvo. As religiões primitivas do norte tinham deuses menos exigentes. O catolicismo então seria mais apreciado por povos que já tinham religiões baseadas nas obras, em rituais, como as religiões nativas da América do Sul e as religiões de matriz africana. Esses povos já imaginavam que Deus não exigiria deles somente a . Se ele diz, “ame seus inimigos“, ele quer que tenhamos uma atitude eminentemente prática de amor aos nossos inimigos; não simplemente um amor professado, mas um amor que se reflete em obras.

Entre os povos do norte, os celtas também eram assim. Mas os outros povos não tinham regras muito rígidas em sua relação com a divindade. Com o advento da reforma protestante, as nações do norte voltaram a entrar em contato com essa tendência original. Mas porque a aceitaram tão prontamente?

É que as nações do norte estavam também passando por um período de ascenção burguesa, no qual o trabalho duro tinha muita importância. Só se dedica à religião quem tem tempo livre e ninguém tinha tempo pra Deus, nem trabalhadores e nem chefes. Como ainda eram sujeitos de fé, mas que não tinham saco pros rituais católicos, resolveram abandonar o ensino religioso tradicional e cultivar a fé. Hoje em dia, quando o trabalhador tem uma jornada de oito horas de trabalho e tem dois terços do dia livre, ele pode ser mais religioso que o chefe, que pensa em seu negócio diuturnamente. A ligação entre Deus e a ocupada classe média está prejudicada por causa disso. Isso também implica dizer que os desempregados se apegarão mais fortemente à religião, tornando-se presas fáceis dos pastores corruptos dispostos a tirar deles o pouco que têm.

A admiração pelos santos.

Em um mundo como esse, uma pessoa casta, pobre e que se entrega à igreja de todo coração é algo raro e, por isso, interessante. Por que alguém iria fazer isso? Por que alguém iria querer viver longe dos prazeres da vida? Ele deve ter um bom motivo. O santo desperta curiosidade nas pessoas comuns. Elas querem saber suas razões. Mas não só curiosidade; o santo também desperta admiração. Afinal, sua existência nos mostra que a força de vontade pode vencer a tentação de se entregar ao prazer, à corrida do ouro e à libertinagem. Isso é singular. Mas será que não há um prazer escondido nessas práticas?

A crueldade pode ser desferida contra si próprio, particularmente na religião, na forma de penitência, jejum e autoflagelação, que são pra alguns um prazer e não um desconforto. Então, o comportamento santo pode ser uma canalização construtiva do impulso agressivo para si próprio. Isso não é sacrifício. É só a forma que a pessoa tem de sentir um prazer que lhe é peculiar. Em todo caso, pode ser que ser santo cause mais suspeita que propriamente admiração. Isso ocorre mais quando o santo se destaca pela virtude do amor. O amor ao próximo, quando exercitado perfeitamente, causa suspeita porque ninguém quer perturbar um santo e nem ser vítima de um amigo falso. Quando uma pessoa muito amorosa se aproxima de você e te faz muito bem, talvez mais do que você pagar, você não acharia que tem alguma coisa errada, que a pessoa está armando contra você?

As relações entre os sexos.

Homens e mulheres são diferentes e ninguém poderá negar isso. Por causa disso, o contato entre os sexos enriquece. Até aí, tudo bem. Talvez a crença de que homens e mulheres não são profundamente diferentes esteja por trás da insatisfação conjugal. Tanto homens quanto mulheres nutrem expectativas altas demais um do outro. O amor não pode tudo. Pelo contrário: o amor é fragilíssimo. É muito fácil se decepcionar com o amor.

Passar a vida inteira com a mesma pessoa revela quem ela é. Você se apaixona mais pela ideia que você faz do seu parceiro do que pelo seu parceiro em si. Na verdade, uma pessoa que ama outra se esforça em construir uma imagem amável, que não condiz com o que ela é, por exemplo, falando muito de si mesmo, pra que o amado não preste atenção nos defeitos do amante. Outras vezes, o amante nem se esforça em fazer isso: é porque ele está amando que tudo aquilo que há de excepcional nele vem à tona. Aí, quando o amor começa a esfriar, ele vai voltando ao normal e a pessoa por quem você se apaixonou começa a desaparecer. Quer dizer: você se apaixonou pela pessoa quando esta não estava em seu normal. Isso é um campo fértil pra decepções de todo tipo, quando vemos que o outro não é como pensávamos.

Resolver esse problema não é fácil, porque requer honestidade absoluta. Uma pessoa só pode realmente outra quando a conhece completamente. Se a pessoa ama até seus defeitos, ela realmente ama você. Mas, para isso, é preciso que ambas as partes se mostrem como realmente são, suas qualidades e também defeitos. Por causa disso, se uma pessoa exige que você mude por amor, essa pessoa não ama você do jeito que você é. Pelo contrário: ela quer te transformar em outra coisa. Dessas pessoas você se afasta.

Outra fonte de desentendimento são como os sexos lidam com emoções e desejos. As emoções no homem e na mulher progridem em ritmos diferentes. Deve haver uma explicação pra isso, talvez hormonal. Por exemplo: a raiva do homem é intensa e de curta duração. Na mulher, a raiva pode ser intensa e de longa duração. Os homens também têm, por razões culturais, dificuldade em demonstrar ternura de um jeito aceitável. Dá vergonha, sabe? Mas isso não quer dizer que o homem não gosta da ternura, do abraço (gesto de amor à humanidade inteira), do calor humano. Você não pode, portanto, ao entrar em um relacionamento, esperar que seu parceiro do sexo oposto lide com as próprias emoções do jeito que você lida.

Veja o exemplo dos incels, isto é, celibatários involuntários (pessoas que desejam se relacionar, mas, por qualquer razão, não conseguem). O homem incel pode, dado estímulo certo, rapidamente se tornar misógino, porque é mais difícil ao homem odiar a si mesmo devido a testosterona (que proporciona autoconfiança e, a bem da verdade, uma menor capacidade de ver as próprias falhas). Ele pode culpar as mulheres por seu fracasso. Já a mulher, quando incel, odeia primeiro a si mesma (particularmente seu corpo), só depois pode vir a odiar os homens.

Observe também o que ocorre quando a relação torna-se sexual. Sexo é algo muito antecipado, mas também muito problemático, particularmente em relações monogâmicas. Se um dos dois lados começa a sentir ciúme, a coisa fica grave. O homem cego de ciúme pode pegar uma arma e tentar matar a mulher, mas a mulher cega de ciúmes, quando quer vingança, será mais elaborada e cruel, mesmo que não mate seu alvo. Ela pode, por exemplo, retribuir o mal que lhe foi feito não diretamente ao homem, mas outra coisa próxima dele. Sendo mais sensíveis à emoção, o potencial feminino se mostra verdadeiramente quando motivado por emoção, especialmente amor e ódio. Mas uma pessoa que realmente ama o outro chegaria a esses extremos quado sente ciúme? Não, mas o problema é que a sensualidade (a qual estimula o sentimento de posse) cresce mais rápido que o amor.

Por último, temos as aspirações. A mulher tem um desejo de independência e é estimulada a isso, o que é normal, já que ela passou maior parte da história sob o domínio do homem. O problema é que… isso não é atraente pro homem. Porque o processo de emancipação é feito por meio de exigências. Às vezes, as exigências são feitas de tal forma, que temos a sensação de que o feminismo não é sobre igualdade, mas sobre supremacia. Ninguém quer ficar com uma pessoa exigente, isso inclui o homem. Talvez isso explique porque se diz que “homens não gostam de mulheres independentes”: associam a mulher independente com a mulher mandona, a mulher facilmente ofendível, que desconfia de elogios e gestos de amizade ou ternura.

Entre as objeções postas ao feminismo estão a de que o homem, historicamente, se sensibilizou com as necessidades femininas, mas o feminismo não se sensibiliza com as necessidades dos homens (e não estou falando da “necesidade de domínio”). Outra objeção é a de que as mulheres e o feminismo frequentemente se desentendem. Ainda outra é a de que o feminismo parece que deixa as mulheres mais sensíveis, de forma que nunca foi tão fácil ofender ou machucar uma mulher como é hoje. Por outro lado, um homem sensível, seja por educação ou por medo de machucar a mulher, é indesejável como parceiro romântico. Será que a emancipação não traz também consequências negativas para a mulher (ou para a sociedade), além das positivas, como direito de votar e de trabalhar? Por que os homens que supostamente amam as mulheres não as alertaram também dos riscos implícitos na emancipação? Será que foi a coisa correta a ser feita? E se foi, poderia ter sido feita de uma forma melhor?

Essas coisas podem tornar o convívio entre os sexos bastante desconfortável e improdutivo, especialmente para intelectuais, que terão que dividir o tempo entre sua pesquisa e seu parceiro. Se você considera sua pesquisa muito importante, é melhor deixar o amor de lado. Você deve prestar atenção à sua pesquisa como a criança presta atenção ao seu jogo.

O ódio.

Não é possível sentir ódio de qualquer um. Para sentir ódio de alguém, é preciso reconhecê-lo como igual ou superior a nós. Quando alguém inferior faz algo desagradável, você não fica com raiva, mas ri dele. Então, sempre que você sentir ódio, saiba de que este um sinal de que a pessoa que você odeia tem também uma boa chance de revidar e arruinar você. Se você não tivesse essa sensação, você nem se importaria.

Sentir ódio é uma coisa humana. Mas uma habilidade sobre-humana é ser capaz de manter o bom humor sendo odiado por todo o mundo. Uma pessoa dessas, quando nos faz bem, sempre nos põe numa saia justa, porque não temos ideia de como retribuir a boa ação que nos foi feito por um pária. Pensamos logo se não há malícia na bondade que nos foi feita. Isso quebra a nossa capacidade de gostar da pessoa.

Ciência da moral?

Uma ciência da moral é uma grande presunção. A moral é mutável, segundo tempo e lugar. Existem morais locais, morais de tempo, morais políticas, morais religiosas… mas, para a pessoa que acredita em sua própria moral, tudo que contradiz essa moral é imoral e “degenerado”. É por isso que moralistas, gente com a qual se deve tomar cuidado, são etnocêntricos e odeiam povos que eles considerem “primitivos”, como índios e sociedades pré-industriais: sentem que sua moral é a única que pode trazer “verdadeira” felicidade. É como se quem não seguisse aquela moral tivesse que ser infeliz.

Confrontar outras culturas, pro moralista, pode ser altamente desconfortável, porque mostra que aquilo que ele considera correto é apenas uma das formas de se obter felicidade. Talvez até outras morais façam melhor esse trabalho, mesmo sendo escandalosas… o que desqualifica a moral do sujeito como sendo “a melhor” (portanto, “a correta”). Se formos olhar assim, a melhor moral é aquela que faz bem a todo o mundo, não só a um grupo. Tal moral será estimulada por muita gente. Por exemplo: todo o mundo quer viver bem. Então por que não adotamos os costumes das nações mais longevas e saudáveis, em vez de simplesmente assumir os costumes do norte?

Para contornar o problema da moral mutável, a ciência da moral tenta procurar os fundamentos inerentes a toda a moral. Isso cria outro problema: ninguém está de acordo quando a esses fundamentos e todo o mundo parece ter encontrado fundamentos diferentes em diferentes números, o que nos leva a pensar quanto dessa ciência é arbítrio. Formular leis absolutas da moral, como se faz com a física, é algo muito perigoso, porque você não pode facilmente provar que algo é realmente um “fundamento moral”. Ora, na ciência, tudo deve ser provado. Se uma ciência dessas quiser existir, precisa ter a modéstia de, como fazem as outras ciências, não se pronunciar definitivamente sobre aquilo que não se pode provar.

Além disso, se a ciência deve se orientar por problemas, uma ciência da moral precisa identificar quais são os “problemas morais” que se quer resolver. Mas não é isso que se observa. As tentativas de estudo da moral, quando feitas por moralistas, rapidamente degeneram em meios de justificar e aplicar a moral na qual eles depositam fé. Não há problema na moral, nem problema da moral. O problema é externo: como aplicá-la. Isso não é ciência da moral, mas propaganda.

A moral e a natureza humana.

Para ser justo, a moral tem uma utilidade. Primeiramente, porque o ser humano fica paralisado quando está numa situação de liberdade total. Não ter obrigações, não ter objetivos, não ter métodos, não ter horizontes, isso não é tédio? Uma pessoa nessas condições começa a desejar ter algo pra fazer, ou vai enlouquecer. Assim, uma liberdade total predispõe o ser humano à incapacidade de escolha e, consequentemente, à inação. Por outro lado, colocando regras ao seu próprio comportamento e dirigindo-os a um fim fixo, o ser humano se organiza e se otimiza pra aquele fim, aumentando suas capacidades e se tornando uma pessoa melhor. Por causa disso, formular e se submeter a um conjunto de regras não necessariamente é uma violação à natureza, mas pode muito bem ser uma manifestação dela.

Uma sociedade próspera e que permite o desenvolvimento humano é uma sociedade que emprega uma moral que favorece o desenvolvimento humano, reduzindo suas paixões a um nível em que possam ser satisfeitas. Não é qualquer moral que faz isso, contudo. Existem morais que proporcionam exatamente o contrário: a redução do ser humano à miséria, fenômeno também chamado “decadência”. Então, é preciso escolher qual moral melhor proporciona seu desenvolvimento. Se não existir, ainda há a possibilidade de inventar uma. Depois, você deve se submeter a essa moral, o que requer disciplina.

Mas não acaba aí. Muitas morais pessoais são elevadas ao grau de morais comunitárias. Como o ser humano é um bicho gregário, ele tem um instinto de obediência. Ao reconhecer um líder, o ser humano se submete à moral do líder, mesmo que discorde em certos pontos, porque, ao menos me tese, só os mais aptos devem governar. Até aí, tudo bem. É quando a moral vai mudando e se tornando mais sufocante, colocando a pessoa em conflito com seus outros instintos, exaurindo o homem na luta contra si próprio, que a coisa fica feia. Isso gera infelicidade, insatisfação e, em homens singulares, o desejo de atacar a moral, por reconhecer nela um obstáculo ao seu desenvolvimento! A moral deve resultar no aperfeiçoamento da humanidade, particularmente intelectual. De que me serve uma moral que me mantém medíocre ou que me deixa ainda mais miserável?

Um exemplo de moral que prejudica o desenvolvimento é a obsessão moderna pela igualdade. Tornar todo o mundo o mais igual possível implica reduzir o potencial de pessoas promissoras. É como manter o superdotado na terceira série, só porque é adequado à sua idade. Além disso, a obsessão pela igualdade nos leva a nutrir preconceitos pelos diferentes, porque a diferença convida o tratamento desigual. Fora que a igualdade absoluta é uma desvantagem em termos de sobrevivência: se todos fossem iguais, o primeiro período de fome, o primeiro inverno rigoroso, que matasse um homem teria potencial pra matar todos. Isso não quer dizer que as leis devam ser diferentes entre as pessoas, isso não quer dizer que um grupo é melhor que o outro. Mas, sim, que fora do âmbito das leis (da isonomia), a diferença é algo a ser celebrado. Por isso, é preciso que a raça humana seja a mais plural possível, é preciso que hava variedade entre os humanos, diversidade.

Então, por que nos submetemos a líderes, se isso depois pode se voltar contra nós? Ser liderado exime a pessoa do peso de se responsabilizar por suas ações, o que torna a democracia representativa, por exemplo, muito atraente. Eis a razão. É ótimo culpar os políticos e não a nós mesmos por tudo de ruim que ocorre em nossa vida. A gente se sente menos fracassado. Isso também nos poupa de planejar nosso futuro, porque elegemos quem o planeje pra nós. Então, adotar um líder (e suas leis, sua moral, que se torna a moral dominante) não é algo feito de graça. Ninguém obedece, ninguém se sacrifica, se não houver benefício. A democracia é o sistema que permite mais benefício em troca do mínimo de dor, mesmo que produza um tirano de vez em quando, o que torna muito popular.

Relação entre filosofia e ciência.

A filosofia e a ciência são duas formas racionais de compreender o mundo, que se diferenciam por seus métodos. A ciência usa o método científico, baseado na quantificação e experimentação. É preciso que algo seja demonstrável pra ser crido e que seja repetido um número suficiente de vezes pra que se possa extrair uma regra geral que represente a regularidade de um fenômeno. Se algo não pode ser experimentado sensorialmente (metafísica, lógica, epistemologia, teoria do conhecimento) ou resiste à quantificação (ética, estética, arte, política), esse algo deve ser estudado pela filosofia.

Como a filosofia tem vários métodos, ela pode transitar no terreno da ciência e em terrenos onde a ciência não transita. Se ela é tão abrangente, seria um desperdício que a filosofia se submetesse à ciência, pela mesma razão que é um desperdício que um filósofo passe a vida toda estudando uma coisa só: ambas as atitudes causariam reduções desnecessárias no seu campo de estudo. O filósofo deve criar valores, mas, para fazer isso, ele deve lançar do máximo possível de conhecimento disponível. Logo, o campo de estudo da filosofia (virtualmente qualquer coisa) não deve ser reduzido. Além disso, a filosofia deve se apropriar também daquilo que é produzido pela ciência como elementos de sua reflexão.

Isso não quer dizer que a ciência é inferior: seu método enxuto permite ir mais fundo em um objeto de estudo, o que tem produzido resultados inegáveis. Só quer dizer que é ridículo tentar posicionar uma como superior à outra. Elas são complementares. Se a filosofia desaparece, apenas a ciência resta, mas a ciência não tem nem pode buscar respostas pra tudo. Numa situação dessas, se a ciência não tiver resposta, um problema é dado como insolúvel! E agora? Disso decorre que a filosofia não deve almejar ser uma ciência, nem a ciência deve almejar ser filosofia.

O ceticismo.

O ceticismo é a ideia de que as certezas disponíveis no nosso tempo (ou até em qualquer tempo) não são seguras e que devemos duvidar delas. Isso não é uma atitude sempre ruim. Há diferença entre o ceticismo e o criticismo: o cético duvida, o crítico julga, apontando os erros pra que estes sejam depurados. O ceticismo é bom quando não mata a vontade da pessoa, quando não coíbe seu potencial: duvidar das certezas disponíveis não quer dizer que nada exista de seguro em algum lugar.

Já o ceticismo levado ao extremo de duvidar de tudo é uma tentativa de acalmar o espírito, porque permite duvidar também das coisas ruins e inquietantes. “Ah, a chance de um colapso climático não é tão grande”, “não faz muita diferença se a Terra é redonda, plana ou em forma de cuia de beyblade“, entre outras formas de se tornar acomodado pra não enfrentar um debate. Além disso, o cético, quando conformista, usa seu ceticismo oportunamente pra extender um debate a fim de que ele não conclua. Afinal, se concluir, haverá um curso de ação e direção de mudança. Se você quer permanecer na mesma condição, questionará ambos os lados de um debate, se ambos os lados desejam proporcionar mudança nas condições de vida. Está no interesse de um cético conservador que esse debate não conclua. Por isso, parece às vezes que os céticos não querem a conclusão de nenhuma discussão.

Observe, no entanto, que somos mais inclinados à certezas. Então o cético não é cético porque quis se tornar cético, mas porque precisou se tornar um. Isso ocorre, por exemplo, quando duas gerações ou dois povos se encontram de maneira tal que as certezas de um de outro são abaladas. Pra evitar o conflito, a pessoa começa a se comportar ambiguamente, “você não é melhor que eu e nem vice-versa”, o que permite que a pessoa mantenha seu modo viver sem interferir no modo de vida do outro. Isso implica dizer que uma pessoa que se torna cética, que duvida de tudo, pode estar se comportando assim porque sente que aquilo que ela tem por precioso está sendo questionado. Então, se tudo for questionável, aquilo que ela acredita, não como correto, mas como aceitável, passa a ter tanto valor quanto a posição do outro. Seu estilo de vida é, então, mantido. Se você não pode ganhar, você empata.

Insurreição dos ressentidos.

A vida é violenta. As primeiras sociedades foram construídas à base da violência. Isso imediatamente cria dois grupos: os dominados e os dominadores. Essa cisão entre grupos naturalmente convida a criação de tipos diferentes de moral: a moral dos dominadores e a moral dos dominados. Antes de entrar em detalhes, é preciso dizer que tais morais não são mutuamente exclusivas e que uma mesma pessoa pode, em sua moral pessoal, carregar elementos dos dois tipos de moral (dominadores e dominados).

Na moral dos dominadores, é a pessoa quem justifica o ato. Quem domina não se importa muito com o que é certo ou o que é errado, mas sim com o que é forte e o que é fraco. Nessa moral, não existem os conceitos de “bom” ou “mal”: é moral aquilo que agrada ao forte, não aquilo que é “bom”. Assim, o nobre atribuía valor às coisas, não as coisas que tinham valor em si mesmas. Claro que pessoas assim quererão levar aqueles sob seus cuidados a uma condição de força e de avanço. Só que o desenvolvimento, não apenas da nação, mas do próprio homem requer uma sociedade hierárquica. Como esses dominadores identificam moral com agradável (e, no caso, agradável a eles), é claro que uma hierarquia na qual eles estão no topo será uma hierarquia opressiva. Isso cria uma massa de excluídos e explorados, extremamente insatisfeitos com sua condição.

Se os fracos passam a criar sua moral, a criarão em oposição à moral dos fortes, considerando coisas como a violência, a astúcia e a riqueza como “más”. Não é mais a pessoa quem justifica o ato, mas o ato que justifica a pessoa. Existem, então, boas e más ações. Para os oprimidos, “bom” é aquilo que permite a sobrevivência do grupo e permite a mútua compreensão de seus integrantes (sociabilidade, compaixão, amor ao próximo, cultura, língua, solo, pátria) e “mau” é aquilo que ameaça sua sobrevivência (violência, intolerância, arrogância). Tal moral permite que o grupo sobreviva ao perigo, porque um grupo é mais forte quanto menos se desentende. Até aí, tudo bem.

O problema é que, numa moral em que você é justificado por suas virtudes e boas ações, você precisará fingir ser virtuoso caso você não seja. Assim, pra aumentar o próprio valor numa sociedade dessas, muitos indivíduos aprendem a ser hipócritas, falsos. Além disso, a virtude, por trazer valor à pessoa, ironicamente passa a fomentar a vaidade. Você sente orgulho (que é um vício, segundo tal moral) de ser humilde, pobre, modesto, manso (todas coisas que são virtudes). Também porque seu valor é atribuído por virtudes, sobretudo virtudes percebidas, essa moral também escraviza todos os que a adotam à opinião pública.

Uma pessoa dominada e ressentida quererá dominar, quererá fazer a sua moral. Mas ela não pode dizer que quer domínio, porque isso a tornaria tão ruim quanto seus dominadores. Então ela racionaliza seu desejo por vingança ou domínio como desejo por liberdade. Agora o caminho está aberto pra guerra começar. E, quando ela termina, quando os dominados estão no poder, sua moral, a moral para a qual há coisas boas em si e más em si, se torna a moral dominante. Esses valores são passados às gerações seguintes através tanto da educação pública como da educação familiar, pois o objetivo de ambas as formas de educação é fazer a geração seguinte adotar os valores morais da geração passada. As grandes revoluções morais foram tidas como subversivas, foram coisas contra as quais os jovens foram alertados, mas os jovens daquela geração agora são adultos e passam seus valores às gerações seguintes, as quais podem ou não tornar-se “subversivas” também, aceitando ou rejeitando os valores que os mais velhos gostariam que os mais novos adotassem. O filho não é o pai. Não há garantia de que o filho será como o pai.

Recomendações.

O grande problema do pensamento leigo é ver as coisas dicotomicamente: algo sempre é “bom” ou “mau”, sem nada entre os dois. Existem outras dicotomias, como “belo” e “feio”, “justo” e “injusto”, “útil” e “inútil”. Esse modo de ver as coisas é simplista e não reflete a natureza nem física e nem espiritual dos seres humanos. É preciso admitir que existem coisas entre os dois extremos. É inaceitável, hoje, uma filosofia que veja as coisas dessa forma no âmbito moral. Claro que isso não quer dizer que extremos não existem, mas quer dizer que a existência de extremos não invalida a existência do meio-termo. Além do mais, a existência de um meio-termo é fatual em situações naturais e na atividade humana, mas ela não é fatual em algumas outras áreas do conhecimento, como a lógica e a matemática, que lidam com o real em sua forma mais simples. Não existe meio-termo nessas áreas. Na lógica e na matemática, não existe algo como “meia-verdade”. Já em coisas como moral e cultura, tal conceito pode existir, uma verdade que não foi contada por completo ou um discurso que comporte uma mescla de falsidade, o que torna a visão dicotômica prejudicial na avaliação de doutrinas morais e culturas humanas.

E de onde vêm nossos conceitos de “bem” e “mal”? Se a análise de Nietzsche estiver correta, esses conceitos nem sempre existiram e foram criados quando o ser humano passou a ver as ações como dignas de valor, não as pessoas. As ações, portanto, dignificam a pessoa (a chamada “moral dos escravos”), não o contrário. O fato de uma pessoa ser forte, inteligente ou bonita não torna tudo o que lhe agrada “moral”, pensam os oprimidos, que sofrem nas mãos dessa pessoa. Como oprimidos só podem sobreviver em grupo, “boas” são as ações que propociam a conciliação e, portanto, a sobrevivência do grupo. É “mau” aquilo que me aliena desse grupo ou que trabalha pra sua dispersão. Em outras palavras, “bom” é o que é útil ao grupo, à sua coesão e à sua sobrevivência. Esses conceitos de bem e mal, embora sejam bons pra manutenção do grupo, podem encher o saco dos sujeitos excepcionais que nascem nesse grupo e veem nessas regras um obstáculo ao seu crescimento. Esse é um caso clássico em que o interesse coletivo conflita com meu interesse particular. Mas é bom que casos assim ocorram, porque põe a moral dominante sob escrutínio, o que pode levar ao abandono de conceitos ultrapassados. Se isso não resultar num mundo com sujeitos mais livres, pelo menos resultará num mundo com sociedades mais justas.

Tais sujeitos aparecem de vez em quando, inclusive hoje. Se eles forem também intelectuais, eles têm potencial pra depurar a filosofia de seus preconceitos, criando uma filosofia nova, que proporcione o desenvolvimento humano, que deveria ser seu único objetivo. A filosofia, pra se justificar, precisa tornar o seu adepto uma pessoa melhor. É preciso que todos os filósofos tenham esse objetivo em mente, em vez de praticar filosofia “desinteressadamente”. Se bem que, a bem da verdade, eu não acho que ainda existam filósofos fazendo isso hoje. Acho que a maioria percebeu que o melhor uso da razão é o aperfeiçoamento humano.

6 de dezembro de 2019

Amor, medo e respeito.

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O texto abaixo é uma honesta aula filosófica baseada nos 100 aforismos sobre o amor e a morte, escrito por Friedrich Nietzsche, com sugestões de como as ideias contidas em tal escrito podem ser usadas para desenvolver o país e ajudar as pessoas a se compreenderem.

Amor, cobiça e ciúme.

A bem da verdade, o amor pode ocasionar sofrimento. Os espíritos mais orgulhosos não admitem que o amor lhes faz sofrer. Por orgulho, então, uma pessoa que sofre por amor não revela esse sofrimento. É vergonhoso admitir que se sofre por amor. Tome por exemplo o amor não correspondido e a inveja por outra pessoa estar com aquele que você deseja pra si próprio. Algumas pessoas lidam com esse sofrimento desqualificando o amor entre aquelas pessoas: “ah, não é amor, é só cobiça, desejo carnal, eles não se amam de verdade.” Isso torna o sofrimento mais tolerável e talvez até te dê a sensação de que o relacionamento entre os dois terminará em breve. É só chamar aquele amor de “cobiça”.

Amor e cobiça são sentimentos muito próximos. Parece que a grande diferença entre um e outro é que um é “bom” e o outro é “mau”. O problema é que muitos podem julgar “bom” e “mau” com base nas suas próprias ambições: é amor quando eu tenho a pessoa que eu quero, mas cobiça quando outro tem a pessoa que eu queria ter. Assim, quando você quer se relacionar, vê todo o mundo se relacionando por aí, exceto você, você diz que ninguém ama de verdade, que tudo é cobiça. Mas você nem se importaria com essa “proliferação de cobiça” se você tivesse um parceiro. Aí, quando você tem, é amor e tudo tá perfeito.

Diferentes pessoas lidam com tal frustração amorosa de diferentes jeitos, porém. Tome o exemplo da mulher que não consegue se relacionar: para lidar com o sofrimento causado pela inveja, ela pode inventar pra si a ilusão de que é melhor que aquelas que têm um homem pra si. É uma recalcada. Essa palavra, “ter”, é adequada, porque muitas pessoas, na medida em que seu amor comporta também ciúme, querem o amado só pra si mesmas. Não querem partilhá-lo com mais ninguém. É como se o amado fosse sua posse mais valiosa. Isso mostra que, embora queiramos que o amor, em seu estado mais puro, seja altruísta, um monte de sentimentos que nós chamamos apressadamente de “amor” são manifestações de egoísmo: você quer o outro, às vezes até sem se importar com o que o outro pensa disso. Isso não é amor.

O ciúme leva uma pessoa a querer toda a atenção do amado pra si. Se o amado divide sua atenção entre o amante e outra atividade, o amante ciumento odiará essa atividade, a menos que tal atividade seja sua profissão, caso no qual o conforto do casal depende da atividade. Por exemplo: suponhamos que o amado gosta de jogar futebol. Se for um joguinho de futebol no final de semana com os amigos, a mulher ciumenta odiará que ele jogue futebol (e poucas coisas são mais tormentosas que o ódio feminino). Já se ele fosse um jogador profissional, ela não reclamaria.

Ao amar, é importante que a pessoa não se dê a outra, como uma posse. Você, ao amar uma pessoa incondicionalmente, isto é, sem estabelecer os termos da relação, o que pode e o que não pode, você se torna um escravo do outro. É preciso estabelecer limites com os quais você possa concordar. Se sua mulher, por exemplo, não discute esses termos com você ou te propõe termos que você vê que são injustos, não aceite (apesar de que a mulher é geralmente enérgica em sua vingança). Tem outras mulheres por aí. Uma coisa é amor, outra é exploração. Não permita que seu amor por alguém seja usado como coleira pela pessoa que você ama. Isso é especialmente grave numa situação em que a pessoa sabe que você a ama, mas não te ama de volta. É esse tipo de pessoa que explora você.

Mas existe um amor sem mescla de ciúme? Um amor “de verdade”? Sim, mas, infelizmente, raramente reconhecemos esse sentimento como amor. É a amizade. A amizade não comporta ciúme. Por causa disso, é o único amor verdadeiro entre os homens.

O casamento, sua durabilidade e seus problemas.

Amor eterno é sobrehumano, porque toda paixão acaba. Isso não quer dizer que você não possa voltar a amar alguém que deixou de amar e apenas se aplica ao amor por uma pessoa específica (pois é possível um amor duradouro pela humanidade inteira). Então, um casamento pautado somente na paixão rui quando a paixão esfria. O casamento que almeja a instituição de um amor eterno entre as partes pode degenerar em hipocrisia. Logo, não tenha em mente que o amor durará pra sempre e que o casamento, por causa disso, também durará pra sempre. Ele pode se extendido, porém.

Os casamentos que duram mais tempo são aqueles nos quais uma pessoa tira proveito próprio da outra. Se um for útil ao outro, o casamento se conserva. Mas se só um precisa do outro, o casamento rui. Os maiores amores não nascem apenas do desejo sexual, mas do reconhecimento de que você não pode ser feliz sozinho. Tem algo faltando na sua vida e você precisa dessa coisa pra se completar. Se você sente que uma pessoa que você ama pode te prover algo que te falta, você a amará mais do que se você não visse nela também um meio de completar o que te falta.

O casamento geralmente é feito entre pessoas que gostam ou afirmam gostar uma da outra. Ora, quando você passa a dividir sua casa com alguém de quem você gosta, você acaba gostando menos dessa pessoa. O casamento tem o grave problema de trazer pra mesma casa duas pessoas. E depois talvez uma terceira, o filho. Se manter muito próximo de uma pessoa desgasta a relação. Não apenas a pessoa se sente sufocada, como também você enjoa dela. O casamento, então, torna-se mais difícil de manter com o passar do tempo. Já se o casamento for pautado na utilidade mútua, ele sobrevive ao fim da paixão, porque as duas partes precisam um do outro pra outras coisas além do amor.

Decepção amorosa.

Quando amamos, é mais difícil ver as coisas como elas são. A ideia romantizada que fazemos dos relacionamentos é uma grande fonte de decepção. Nunca se deve entrar num relacionamento pensando que basta você pra fazer o outro feliz. A felicidade é um estado muito pessoal e assumir que você pode tornar alguém feliz é presunção. Você pode ajudá-lo a ser feliz, mas não pode torná-lo feliz. Se você entra num relacionamento achando que bastará sua companhia pra que o outro seja uma pessoa radiantemente alegre, você se decepcionará. “O amor tudo pode!” Eis uma frase problemática…

Outra fonte de decepção amorosa é a imagem que um dos lados deseja manter. Pra poupar o parceiro da dor de encarar aquilo que a pessoa tem de ruim, o amante esconde, ou tenta esconder, todas as suas falhas. Por exemplo: suponhamos que você esteja namorando alguém bem-sucedido, tanto quanto você, ambos têm um negócio e um quer ver o outro feliz, mas você também tem um desejo sexual muito intenso. Você quer ser o melhor pra pessoa que você ama, então você tenta se reprimir quando vocês não têm tempo pra se relacionar. Quando o homem ou a mulher se dedicam a outras atividades, especialmente construtivas, às vezes até pelo bem dos próprios filhos (é o caso do casal em que ambos os sujeitos trabalham pro sustento da família), há menos tempo pro sexo. O desejo insatisfeito pode levar qualquer das partes a adulterar. Então, se uma das partes de um casal, ou as duas partes do casal, se dedicam a coisas construtivas, uma parte deve entender se a outra adultera ou, sei lá, vê pornografia às escondidas.

Mas o fato é que você montou uma imagem de parceiro perfeito. Quando sua falha é descoberta em um momento de fraqueza, é muito provável que a pessoa fique decepcionada com você. Tristemente, muitas pessoas tentam se transformar na ideia que o amado faz delas. Mas se você tem que mudar por amor, você já não está dizendo que a pessoa não te amaria do jeito que você é, ou que você não acredita quando seu amado diz que não quer que você mude por ele?

Muitas vezes, porém, tal criação de expectativa no parceiro é involuntária. O amor verdadeiro traz pra fora comportamentos que nos são excepcionais e não normais. Então, quando o amor começa a esfriar, também essas caracaterísticas começam a desaparecer. Você está menos disposto a ajudar e a se sacrificar, por exemplo, a passar tempo com aquela pessoa. De repente, seu amado passa a se perguntar o que te fez mudar. O amor te fez mudar. É porque o amor desapareceu que você voltou ao seu normal, como era antes de amar.

Amor, medo e respeito.

Existe uma diferença ligeira entre ser amado e ser respeitado. Quando você quer ser respeitado, é importante que o outro não te destrate. A forma mais fácil de fazer isso é causando medo. Ora, onde há amor não há temor. Se esse é o caso, uma pessoa que quer ser respeitada a todo custo precisa se tornar intratável, pra não ser amado. Porque, se ele não for amado, poderá ser temido, o que aumenta o respeito que outros têm por ele. Isso não quer dizer que os amantes não se respeitam, mas que geralmente se respeitam menos do que o empregado respeita seu chefe.

Em adição, o temor nos explica mais sobre o gênero humano do que o amor. Isso porque o amor nos distrai daquilo que o gênero humano (e também a natureza) tem de ruim, enquanto que o temor reconhece o que há de bom e de ruim no outro. Afinal, é importante conhecer aqueles que podem nos fazer mal, tanto pra nos defendermos deles quanto para tirar vantagem deles. O amor, nas humanidades, produz a arte, mas é o medo que produz a ciência.

Amor e a religião cristã.

A religião cristã tem uma relação interessante com o amor. O judaísmo nos deu uma religião pautada na força, na conquista. Mas a religião cristã, ao enfatizar o amor, se torna esteticamente atraente. Quem sente falta de amor ou quem considera o amor algo importante sempre acaba vendo valor nos evangelhos. Se Deus é amor e eu me sinto feliz na prática do amor, eu quererei amar até mesmo meus inimigos. Ou, pelo menos, tentar… Se todos amassem uns aos outros indiscriminadamente, a vida na Terra já não seria um paraíso?

No entanto, é interessante que a religião também diga que somos dignos de ódio, nós, humanos. Se assim é, se não merecemos ser amados, como é que eu vou amar o próximo como a mim mesmo? Porque eu me odeio na medida em que eu digo que sou digno de ódio. Quem diz isso com convicção, já se odeia. Como então? Se o amor ao próximo é limitado pelo amor próprio (eu tenho que amar o outro como a mim mesmo, nem mais, nem menos) e eu me considero uma criatura odiável, eu vou acabar me sentindo justificado por odiar todo o mundo.

Assim, quem odeia a si mesmo acaba se tornando perigoso. Convencer a pessoa a se amar é, portanto, uma responsabilidade humanitária. Ninguém pode amar outra pessoa se estiver ocupado sentindo ódio constante de si. É pelo amor de si que a pessoa descobre quem ela realmente é (o famoso “torna-te quem tu és”) e pelo amor ao próximo que ela se aperfeiçoa.

A hora da morte.

A morte é igual pra todos. Se assim é, não faz sentido que agreguemos ao valor de uma pessoa o julgamento de suas ações logo antes de morrer. Não tem importância se a pessoa aceita sorridente a morte ou se chora ao saber que sua vida está chegando ao fim. O que importa são suas ações em vida, particularmente aquelas que foram feitas quando seu corpo estava em melhor estado. Afinal, a pessoa poucas vezes se esforça em recordar como um ente querido morreu, mas lembra até sem querer das coisas que ele fez e ensinou. São suas ações em vida que farão as pessoas sentirem saudade de você… ou alívio por você ter morrido. A verdadeira diferença que faz uma pessoa só é sentida quando a pessoa não está mais por perto. Isso só acontece por causa das ações da pessoa e do impacto delas. Ora, as ações de um moribundo têm menos impacto. Os chamados “últimos momentos” são geralmente os que menos importam. Especialmente se a pessoa tiver deixado pra trás uma produção intelectual que será imortalizada.

Apesar disso, o momento da morte é um momento de muita comoção. Todo o mundo quer dizer algo ao moribundo, quando teve a vida inteira dele pra dizer essas coisas. Todo o mundo pensa que o cara que se vai aos oitenta anos viveu pouco. Você precisa aproveitar a companhia das pessoas que estão vivas enquanto você pode. Se você fica procrastinando, pode ser que depois seja tarde demais. A morte (ou o desaparecimento, a viagem sem volta ou qualquer coisa que signifique que você não verá mais aquela pessoa) é um fato. Se você tenta esquecer a morte a todo custo, se distrair dela, você esquece que as pessoas chegam ao fim. Se você esquece isso, você passa a pensar que sempre há tempo pra conversar, sair, jogar com aquela pessoa. Pensando assim, é mais fácil procrastinar. Aí, quando seu amigo morre, você pensa: “não fizemos metade das coisas que queríamos fazer.”

Eutanásia.

O suicida quase sempre age racionalmente. Ele avalia se morrer vale a pena, e só valeria a pena se a vida lhe trouxesse mais sofrimento do que prazer. O suicida racional acredita que morrer lhe deixará no lucro, se a vida não lhe dá mais-valia. Se você deriva da vida muito mais sofrimento do que prazer, a vida vale a pena? Se esse sofrimento estiver lhe matando lentamente, você morrerá de qualquer jeito. Então, se a pessoa dispor de meios de morrer sem dor pra evitar o prolongamento do sofrimento, será que ele não tem direito a isso? Tal raciocínio levou países estrangeiros a sancionar leis que permitem a eutanásia, que é um suicídio assistido. Um médico ou equipe de médicos mata o paciente que escolhe morrer, utilizando sempre meios indolores e suaves. Isso não acontece no Brasil, porém. Aqui, isso é ilegal.

Numa situação em que você sabe que a morte é inevitável, como o caso de uma doença mortal e incurável, não seria interessante agendar a hora e o dia em que você vai morrer e, antes da ocasião, se preparar adequadamente, chamando seus familiares, dando instruções, se despedindo, jogando uma última partida de RPG de mesa só pra terminar a campanha, escrevendo mensagens em um blog ou enviando mensagens aos amigos que você só conhece online? Porque, atualmente, uma pessoa que sabe que vai morrer é mantida viva a todo custo e não tem controle sobre quando morrerá. Aí toda a família é surpreendida e os amigos, especialmente os mais distantes, só sabem que você desapareceu. Se tem uma coisa pior que saber que um ente querido morreu é não saber o que aconteceu. Então tal planejamento não pode ser uma coisa ruim.

A razão da interdição à eutanásia é moral. Nossa moral tem muito de religião também. Na verdade, a moral ocidental é uma tentativa de forçar todos a agirem de forma mais ou menos cristã. Parece injusto com o ateu que deseja se suicidar. Se bem que o ateísmo é incompreensível pra muitos em primeiro lugar.

Recomendações.

O ciúme é um dos sentimentos mais baixos que o ser humano pode sentir. Parece até que nós não fomos feitos pra tolerá-lo. O ciúme arruína qualquer relação. Uma relação humana que estimula o ciúme, portanto, deveria ser evitada. Há várias pessoas no mundo, há muitas pessoas que você poderia amar. Por questões sanitárias (ou religiosas, caso você seja adepto de uma religião que não permite ter vários parceiros sexuais), porém, é melhor se relacionar sexualmente com apenas uma pessoa. Mas isso é diferente de amor. Há uma diferença entre amor e sexualidade, seja esse sexo por prazer ou por reprodução. Se o que você quer é amor, derive esse amor de todas as pessoas que estejam dispostas a dá-lo, especialmente na forma de amizade. Somente o sexo deve ser feito responsavelmente. Pondo as coisas dessa forma, uma relação sexual monogâmica deve ser sexual e nada mais. Sua violação não deveria ser vista como uma violação moral ou um ultraje, mas apenas como uma violação, no máximo, higiênica e sinal de que o parceiro é inseguro. Nesse caso, procure outro. Se tal relação tiver uma carga moral ou sentimental acima do que é merecido, haverá ciúme, medo e outros sentimentos que tornarão o relacionamento insuportável. Separar amor e sexo, o expurgo da sensação de posse do corpo do outro, a aceitação da procura e cessão de amor de todos e para todos, o aperfeiçoamento mútuo como objetivo comum entre os amantes, esses são os primeiros passos pra erradicação completa do ciúme na raça humana. A monogamia sexual deve ser vista exclusivamente como uma questão de saúde (uma preocupação reduzida pelos métodos preventidos já disponíveis) e nada mais, enquanto que a pluraridade afetiva, o amor de todos para todos, deveria ser encorajada.

Segue-se portanto que o casamento não tem razão de existir hoje. Em tempos de liberdade sexual, o casamento como compromisso eterno perde sua relevância. Tal relevância é ferida de morte com a facilidade com que divórcios são feitos. Pra que se casar? Ninguém pode te obrigar a se casar. Alguém pode se perguntar se uma monogamia exclusivamente sexual, como questão sanitária ou religiosa, justificaria a existência do casamento. Não justifica. O casamento tem várias cláusulas legais que não são necessárias a esse tipo de relação, cláusulas que não seriam cabíveis nem mesmo pra sexo casual com múltiplos parceiros, a menos que se esteja tentando decidir questões de custódia do filho. A certidão de casamento não tem razão de existir, mas a certidão de nascimento nunca perderá sua relevância. Alguém tem que cuidar do filho. E isso não justifica a existência do casamento mesmo como entidade legal? Também não, tanto porque o mundo é cheio de métodos contraceptivos como porque é possível ser pai sem estar casado com alguém. Não há necessidade de oficializar as coisas perante a corte, exceto naquilo que for necessário à regulação da custódia.

O problema da decepção amorosa pode ser facilmente resolvido adotando a visão de que podemos amar qualquer um e receber amor de qualquer um quanto também reduzindo nossas expectativas em relação à pessoa amada. É preciso parar de pensar que um casamento, ou mesmo um namoro, é uma experiência linda, maravilhosa, romântica, porque muitas vezes não é. É preciso olhar as coisas pragmaticamente. Se você entra em um relacionamento com grandes expectativas, você tem mais chances de ser frustrado. Se você entra com baixas expectativas, você tem mais chances de ter uma boa surpresa. Se seu parceiro te decepciona, procure outro. Há várias pessoas no mundo pra você amar.

Por último, aproveite ao máximo sua vida sem se preocupar tanto com a hora da morte. Se preocupar em excesso com isso te impedirá de aproveitar a vida e fazer algo construtivo com ela. Certifique-se de viver de um jeito que sua marca fique nas pessoas que você conheceu e que seu legado fique, porque as pessoas lembrarão de você por suas ações em vida.

5 de fevereiro de 2018

Notes on “Twilight of the Idols”.

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“Twilight of the Idols” was written by Friedrich Nietzsche. Below are some paraphrased (not quoted) thoughts written in that book. They may or may not reflect my opinion on any given subject.

  1. If you are going to defend a controversial cause, try to remain calm.
  2. Triumph requires petulance.
  3. Excess of power proves that you have enough power.
  4. Lies are more common than truths.
  5. Some people argue that boredom is source of vice.
  6. We often are scared to oppose to things we see as wrong.
  7. If you say that truth is simple, you are lying twice in the same sentence.
  8. If it doesn’t kill you, it will make you stronger.
  9. Help yourself, so that others will want to help you.
  10. Don’t look for followers; let they come if they think you are worthy.
  11. The truth is an offense against public morals.
  12. Virtue and social benefit don’t follow the same path.
  13. Sometimes we misbehave in secret, but in hopes of being caught.
  14. Don’t look into the past if you intend to repeat a mistake.
  15. Satisfaction improves health.
  16. A woman with male virtues can not be resisted, but a woman with no male virtues doesn’t resist to anything.
  17. Music improves the mood.
  18. Think while walking.
  19. There are people who try to solve the problem, people who just look at the problem and people who prefer to ignore the problem.
  20. You need to know what you want and if it’s worth to pursue that as a goal.
  21. Unfortunately, you need to compete and defeat others in order to progress.
  22. If you hear that life is not worth being lived, disregard the voice, or you will become sick.
  23. Consensus doesn’t equal truth: a lot of people can agree with a lie.
  24. Life is life, no point in judging it.
  25. We are part of the life too.
  26. To judge life, you need to be impartial, but can’t be impartial enough to judge life.
  27. If you want to judge life, you need to be above the life.
  28. If you want to enrage an opponent in a debate, put him in a situation in which he has to prove that he is not an idiot.
  29. If a wise person is ugly, that may very well be a reflect of poor health (specially if the person has excess of self-control), which puts his wisdom in doubt.
  30. Instincts can enslave us, but reason can enslave us too.
  31. Some people need to force themselves to be rational.
  32. Excess of reason is an illness.
  33. Instinct is not always a weakness.
  34. If you destroy a paradigm, people expect you to impose a new one, giving you power to dictate what people should do then.
  35. Asceticism is frequently sought as a path to happiness, but can a life like that really bring you happiness?
  36. In a healthy life, happiness and instinct go the same way.
  37. A concept is a construct; it changes over time, rather than remaining the same.
  38. Traditional philosophy sees change as a problem.
  39. When you believe in something without empirical foundation, you pretend that it’s existence can only be studied by higher minds and claim that the opposition is doing cognitive distortions.
  40. Our senses (hearing, sight, tact, smell and taste) are never wrong.
  41. The problem is that the senses give us an impartial information, which doesn’t mean that the mind won’t make a mistake in interpreting data coming from the senses.
  42. Traditional philosophy often uses the universal concept as starting point, to explain particular aspects of life.
  43. Something can make sense and still be wrong.
  44. We can’t demonstrate, empirically, that the world doesn’t correspond to how our senses perceive it.
  45. An idea can only be fully discarded when it’s no longer useful (which doesn’t mean “when it’s proven wrong”).
  46. Morals often go against nature.
  47. Emotions can also fight for reason.
  48. If you are against science, it’s unlikely that you will ever be able to fight anyone in an intelligent manner.
  49. Traditional morals prefer to repress sexual desire rather than thinking how can that desire be used in a constructive manner.
  50. If emotion is a manifestation of life, attacking emotion is attacking life.
  51. If you battle your own desires, that’s because you can’t use them in favor of yourself.
  52. You kill a desire because you are powerless against it’s seduction.
  53. The establishment needs opponents.
  54. If your code of conduct doesn’t have life as goal, you are sick.
  55. Any morals that do not have life as goal are traps.
  56. When someone tells you “you should be or act like that”, they actually mean “you should be or act like me!”.
  57. The biggest mishap that a sane mind can do is mistaking cause for effect and vice-versa.
  58. Moralists and religious people incur in that mistake pretty often.
  59. You can’t generalize having just a handful of samples (specially if you have just one sample).
  60. Don’t eat too much, just eat enough.
  61. If I’m virtuous, I’ll do good deeds, but doing good deeds won’t make me automatically virtuous.
  62. Vice and luxury aren’t causes of decadence, but signs that decadence is already happening.
  63. We must not assume causality where it’s absent.
  64. We must not assume causes that do not exist.
  65. We must not imagine causes that do not exist.
  66. We must not assume that we know something that has been poorly studied.
  67. If we allow pain to overwhelm us, that’s because we feel that we deserve that pain.
  68. A good digestion can be mistook for peace of spirit.
  69. Do we have a reason to exist?
  70. The human species has no goal in itself.
  71. Saying that something is “wrong” doesn’t prove it wrong.
  72. Morals do not reflect reality.
  73. Morals are an interpretation of reality, but all interpretations of reality are subjective.
  74. Morals are relative.
  75. It’s possible to say something that you don’t truly understand (“parroting”).
  76. If you don’t admit that morals are relative, you can’t use it in a way that is favorable to yourself and others.
  77. Morals are an attempt at improving the human species.
  78. Housebreaking an animal is making it ill.
  79. If you want to weaken someone, make them ill.
  80. Some eugenics programs were sanctioned by religious authorities.
  81. The Gospel is against everything that arianism was about.
  82. Educating someone may very well kill their geniality.
  83. Politics and science are different things.
  84. When we are in a political crisis, philosophy and science tend to flourish.
  85. No school can teach you think.
  86. You don’t learn logic at school either.
  87. Unfortunately, science is inserted in democracy.
  88. A moralistic atheist makes no sense.
  89. You can’t produce art without being drunk, even if you aren’t drunk with alcohol.
  90. You may be drunk with lust.
  91. You may be drunk with your dreams.
  92. The sensation of power and fullness is what makes you feel inspired when “drunk”.
  93. There are two kinds of drunkness: the one that inspires to paint and to sculpt and the one that inspires you to compose and to dance.
  94. There are atheists who hate being atheists.
  95. You can’t have spirit if you don’t need it.
  96. Sometimes, it’s arrogant to be impartial.
  97. Kant’s philosophy is not honest at all.
  98. If you always abide to the rules of society, you will end up harmed by them.
  99. If Sócrates was stimulated to leave his home to make philosophy with friends because those friends usually were handsome teenagers, then homoerotic hebephilia is the mother of philosophy.
  100. Making art having fun as a goal is an act of defiance.
  101. Excess of institutionalized education, such as college, may end up harming your self-esteem, as you will likely start to hate yourself.
  102. Once in a while, try to produce art without sticking to any rigorous method.
  103. Geniality consumes energy, an intellectual who doesn’t take a pause to do something else will likely ruin their health.
  104. A real man is better than an ideal man.
  105. Illness is a sign of decay, not cause of decay.
  106. Anarchists blame society, while the christian often blames himself.
  107. It’s impossible to act without self-interest.
  108. If you act in a 100% altruistic manner, you will die.
  109. It’s better to think that you are worthless than thinking that life is worthless.
  110. A person who is terminally ill should have the legal right to suicide.
  111. If a person lost their hope to live decently, at least allow them to die decently.
  112. Every historical period assumes that their moral codes are the best.
  113. A restrictive moral code comes from a weak nation, a nation that finds too many things “squicky”.
  114. Morals should be rated by their usefulness.
  115. Our society hates to take risks.
  116. If you advocate freedom, you can’t sell yourself.
  117. You can only be strong if you need to be.
  118. What’s the point of marriage nowadays?
  119. Kant’s morals were just a validation of his society’s beliefs.
  120. Heroic sacrifice is an act that disregards one’s own safety in favor of a goal that is higher than one’s own life.
  121. A criminal is a person who was born at the wrong time.
  122. Before gaining notoriety, a genious is usually hated by society.
  123. Educating feelings and thoughts doesn’t make you beautiful; you are supposed to educate your body.
  124. Reality escapes morals and even human thought.
  125. No change is operated without sacrifice.

27 de dezembro de 2017

Anotações sobre “Assim Falou Zaratustra”.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, , , — Yure @ 21:58

“Assim Falou Zaratustra” foi escrito por Friedrich Nietzsche. Abaixo, algumas afirmações feitas nesse texto. Elas podem ou não coincidir com o que eu penso sobre este assunto. Perguntas sobre minha opinião podem ser feitas nos comentários.

  1. O amor pela humanidade pode isolar você dela, por amá-la demais.
  2. Você pode acabar ajudando outros a dificultar sua vida.
  3. O solitário é visto com suspeita.
  4. Uma pessoa pode se isolar por fanatismo religioso.
  5. É possível que uma pessoa só tenha uma religião por estar desapontada com o gênero humano.
  6. O homem moderno não é o último passo na evolução.
  7. Outras pessoas não estão interessadas em melhorarem a si mesmos.
  8. Se você evoluir, talvez você olhe pra trás e veja que estava agindo tolamente.
  9. Em muitos sentidos, somos piores que macacos.
  10. Não esqueça deste mundo.
  11. A crença de que a alma é empoderada pela submissão do corpo está errada.
  12. Desdenhar do corpo em vez de usá-lo para o próprio bem e o dos outros é sinal de alma fraca.
  13. Pode ser que você se canse da sua felicidade, da sua razão e da sua moral.
  14. Pode a felicidade realmente justificar nossa existência?
  15. A razão não pode conhecer tudo.
  16. O homem é uma corda estendida sobre um abismo, entre o animal e seu próximo estágio evolutivo.
  17. O ser humano precisa ser superado; ele não é ponto de chegada.
  18. Se você não conseguir fazer essa mudança acontecer de uma vez, não deixe de ajuda assim mesmo.
  19. Aja sem esperar agradecimento.
  20. Se você fala de um futuro distante, você não será compreendido por pessoas do aqui e do agora.
  21. A estrela brilhante vem do caos interior.
  22. Trabalho também é distração.
  23. Pensar diferente da massa é se arriscar a ser chamado de lunático.
  24. A alma morre antes do corpo.
  25. Você talvez sinta que não vale a pena viver se não puder viver eternamente, mas concentre-se em viver a vida passageira plenamente.
  26. A vida humana é vazia de sentido, exceto a evolução ao estágio seguinte.
  27. Quando você defender uma ideia controversa e zombarem de você, fique feliz por não te lincharem.
  28. Mas se rirem, continue, se você vê valor nisso.
  29. É melhor falar com seus amigos em vez de falar com a multidão.
  30. Faça seus amigos pensarem diferente e os amigos dos seus amigos acabarão pensando diferente também.
  31. Que o solitário encontre outros solitários.
  32. Animais podem ser menos perigosos que pessoas.
  33. Um objetivo da vida virtuosa: o bom sono.
  34. Pessoas que se preocupam em excesso com suas horas de sono estão esquecendo de permanecer acordadas.
  35. Se você sofre, sente prazer ao esquecer o sofrimento.
  36. Acreditar em outros mundos é loucura; só existe um mundo e é este.
  37. O corpo e a terra merecem respeito.
  38. Viva no mundo real.
  39. “Curem-se, dominem-se, criem um corpo superior!”
  40. O ateu deve ter misericórdia do religioso.
  41. Não inflinja males a si mesmo; cure seu corpo.
  42. Desprezar o corpo é sinal de tendência suicida.
  43. Pode ser também sinal de inveja contra aqueles que têm melhor condição física.
  44. A evolução do ser humano perpassa a evolução do corpo humano.
  45. Virtudes nascem da paixão.
  46. A salvação do sofredor crônico é uma morte rápida.
  47. Todo o mundo tem desejos ilegais ou nojentos.
  48. Os melhores textos foram escritos com o sangue de seus autores.
  49. Só um lutador pode amar a sabedoria.
  50. Há um pouco de loucura no amor e um pouco de razão na loucura.
  51. Somos afetados por forças que não vemos.
  52. Quando você chega ao topo, provavelmente se vê sozinho lá.
  53. Fora que você pode ser atingido por um raio lá encima.
  54. Esse raio frequentemente é alguém melhor que você.
  55. A pessoa que prega que devemos nos desfazer de nossos corpos e que a verdadeira vida começa na morte, provavelmente vê a vida como puro sofrimento.
  56. É estranho que uma pessoa como essa não conclua que seria legal se suicidar ou matar os outros como ato de “misericórdia” ou “amor”.
  57. Esses indivíduos não apenas pregam contra a própria vida, mas também contra a vida dos que virão.
  58. O trabalho nos faz esquecer de nós mesmos.
  59. Não tem sentido em ter paz depois de uma derrota; a paz deve vir pela vitória.
  60. As mulheres jovens querem homens bonitos e meigos, mas nem sempre convém ao homem ser bonito ou meigo.
  61. Seja o melhor possível, mesmo que isso lhe custe a aprovação das mulheres.
  62. Todos os bons guerreiros estão prontos pra morrer.
  63. O estado pode mentir.
  64. O estado não é o povo.
  65. O estado pode ferir leis e costumes.
  66. Um ateu pode obedecer religiosamente ao estado.
  67. O estado pode se por como um ídolo e exigir adoração.
  68. O estado é mantido por pessoas que não fazem diferença na história.
  69. O estado pode matar seu povo de caso pensado.
  70. O estado pode roubar seus bens.
  71. Quanto menos se possui, menos se é possuído.
  72. Humanos precisam evoluir de forma a não precisar de governo.
  73. A pessoa que não sabe debater usará a violência e não aceitará imparcialidade.
  74. Os grandes produtos do espírito humano não são devidamente percebidos pelas pessoas comuns.
  75. Covardes são astutos.
  76. Se algo estimula demais o pensamento, é visto com suspeita.
  77. Uma pessoa pode perdoar seus erros e não perdoar suas qualidades.
  78. Te tratam como vítima pra que você veja suas qualidades como defeitos e seus defeitos como qualidades.
  79. Quando você é bom, acaba cercado de invejosos.
  80. Vá aonde os fracos não vão.
  81. Castidade pode se tornar vício.
  82. Ser casto é uma questão de aptidão, não pode ser imposto aos outros.
  83. O amigo impede o monólogo interminável do solitário.
  84. Formamos amizade com semelhantes, com que temos relação de igualdade.
  85. As variações entre nossos conceitos de bem e mal são um recurso de sobrevivência.
  86. O que é aceitável em outros lugares pode ser tido como repugante aqui.
  87. Uma comunidade já é decadente quando um de seus membros se torna egoísta.
  88. O amor e o ódio estão por trás de todas as virtudes.
  89. Pode ser que você se sinta bem depois de chamar uma pessoa só pra falar bem de você.
  90. Sua autoestima aumenta quando você faz com que outros pensem bem de você.
  91. A solidão é insuportável àqueles que pensam mal de si mesmos.
  92. Um grupo grande pode se sentir tentado a matar pessoas de outros grupos.
  93. Deixe o futuro ser a causa do presente.
  94. Não importe de que se é livre, mas pra quê.
  95. Quanto mais você se dá bem, mais eles te odeiam.
  96. Se o homem é uma criança, então muitas crianças fazem a mulher de brinquedo.
  97. Melhor que humilhar seu inimigo é fazê-lo ver que o ódio dele te fortalece.
  98. Condenar é melhor do que fazer o outro reconhecer o erro quando ele não quer reconhecê-lo.
  99. Antes de ter filhos, se pergunte se pode criá-los.
  100. Se você não pode ser bom pai, você não tem direito de ter filhos.
  101. Um pai fez um bom trabalho quando seu filho o supera.
  102. Casamento deveria ser um acordo feito entre os pais pra criar um filho que superasse os pais, mas o casamento raramente é visto dessa forma.
  103. Alguns casamentos são tão hediondos que alguém pode se perguntar se Deus realmente abençoa o casamento.
  104. Um mau casamento prejudica o filho.
  105. Você nunca sabe com quem está se casando.
  106. Um monte de sentimentos são confudidos com amor.
  107. Depois de casadas, algumas pessoas descobrem que não se amavam.
  108. Às vezes o coração envelhece mais rápido que o cérebro, mas outras vezes é o contrário.
  109. O ouro é tão valioso quanto inútil, como algumas virtudes.
  110. O bem da espécie vem antes do bem do indivíduo.
  111. É difícil a quem ama fechar a mão ao amado quando é preciso fazê-lo.
  112. Quando você recebe uma boa ação de alguém e depois descobre que a boa ação era socialmente inaceitável, você pode passar a sentir vergonha do presente que recebeu, mesmo que dele tenha usufruído.
  113. Nada é imutável.
  114. Não é justo se divertir pouco.
  115. Uma pessoa pode ficar magoada por receber ajuda.
  116. Não poder calar a boca torna difícil a convivência.
  117. Se você não domar seu coração, perderá a cabeça.
  118. Alguém que causa sofrimento pode estar procurando compensação para o próprio sofrimento.
  119. Não queira ser virtuoso esperando pagamento por isso.
  120. Uma pessoa “virtuosa” pode estar agindo por interesse.
  121. A mãe não busca pagamento por amar o filho.
  122. A virtude deve estar em você, não na sua imagem.
  123. Agir virtuosamente pode também ser uma forma dissimulada de obter aprovação pisando nos outros (Lucas 18:9-14).
  124. Agir virtuosamente permite esconder intenções reprováveis que prejudicam sua aceitação por um grupo.
  125. Para alguns, virtude é julgar os outros.
  126. Não há consenso sobre o que “virtude” é.
  127. Não existe boa ação sem algum interesse, se bem que pode ser um bom interesse.
  128. É possível torcer o significado de uma palavra através de constante uso indevido.
  129. Não somos iguais, mas devemos ser tratados com justiça.
  130. Existem intelectuais que só estão lá pra dizer “amém” à ordem social, mesmo quando sabem que a ordem está errada.
  131. Os intelectuais mais honrados em seu tempo são aqueles que validam os preconceitos de um contexto histórico-geográfico, como Kant.
  132. Uma pessoa que pensa diferente irrita a multidão.
  133. A multidão amaldiçoa os homens que acabam sendo os únicos responsáveis por seu avanço, como Galileu foi amaldiçoado por mostrar que todos estavam errados, fora ele.
  134. O povo pensa que sua voz é a de Deus (basta lembrar que o povo queria que Jesus morresse).
  135. A política pode comprar a ciência a fim de validar a moral do governo.
  136. Se a ciência quer progredir, precisa ser amoral, não pode ter medo de rejeição.
  137. Se você tiver que se submeter a alguém, se submeta àquele a quem você seria mais útil.
  138. Filosofia não é poesia, muito menos poesia de má qualidade.
  139. Há crimes mais graves que o assassinato.
  140. Todos os dias são sagrados, não espere “o momento certo” pra fazer qualquer coisa.
  141. Você não poder “querer existir”.
  142. É possível amar algo mais do que a própria vida.
  143. Nossos conceitos de bem e mal não são absolutos.
  144. A vida é guerra de preferências.
  145. Beleza é poder em forma visível.
  146. Você é capaz de todo o tipo de maldade, mas você é exigido a praticar o bem.
  147. É possível rir de medo.
  148. Não repita com seus filhos os erros que seus pais cometeram com você.
  149. Uma pessoa pode estar convicta de que deve ignorar prazeres terrenos, mas suas vísceras nunca serão convencidas disso.
  150. O asceta com pouca força de vontade ficará envergonhado mais vezes.
  151. Desejar algo, mas dizer que a coisa virtuosa a ser feita é não saciar o desejo, pode ser entendido como hipocrisia: você diz que é “virtuoso” só porque sabe que não pode fazer o que deseja, então glorifica sua incapacidade como sendo “a coisa certa” (uvas azedas, implicando que eles não transformariam sua incapacidade em virtude se pudessem ter o que desejam).
  152. Você tem que dizer a verdade aos hipócritas.
  153. Se adultos não te acham sábio, tente a sorte com crianças.
  154. Uma pessoa que fala compliado não necessariamente é um pensador profundo.
  155. Os grandes acontecimentos começam em silêncio.
  156. Igreja é um tipo de estado.
  157. O estado é hipócrita.
  158. O estado se julga a coisa mais importante do mundo.
  159. Quando você diz algo e a pessoa reage violentamente, pode ser porque ela sabe que você tem razão.
  160. Uma pessoa pode estar tão cansada e desmotivada que não tem forças sequer pra sair da cama, pegar uma faca e se matar.
  161. Um vício pode não se desenvolver numa pessoa a menos que ela antes aprenda a correr.
  162. Punição é vingança, frequentemente chamada “justiça”.
  163. Uma pessoa pode falar consigo de um jeito e de outro jeito com os outros.
  164. Não é a altura que assusta, é a possibilidade de queda.
  165. Permanecer puro na multidão é como sair limpo da água suja.
  166. Você não pode dar um veredito absoluto sobre alguém quando você não é capaz de dar um veredito absoluto sobre si próprio.
  167. Ordenar outros a um objetivo pode ser mais difícil do que alcançá-lo sozinho.
  168. Os melhores líderes tem o pudor de uma criança.
  169. Uma pessoa pode ter ideias maduras, mas isso não significa que ela tem maturidade para empregar essas ideias.
  170. Adivinhar (instinto) não é concluir (lógica).
  171. Por vezes você escuta a doutrina do Diabo na boca de um pastor.
  172. O benefício da solidão só pode ser sentido quando você para de chorar a perda dos amigos.
  173. Não corra atrás das mulheres e a felicidade correrá atrás de você.
  174. Nossos conceitos de bem e mal são núvens passageiras.
  175. As pessoas não perdoam quem não sente inveja dos que vivem o modo de vida padrão.
  176. Alguém pode falar de você sem pensar em você.
  177. Se uma pessoa não tem tempo pra você, não perca seu tempo com ela.
  178. Todo o elogio é uma cobrança por mais.
  179. Os que andam devagar podem se tornar um problema aos que querem ir rápido.
  180. Humildade motivada por medo de ser atacado é covardia.
  181. Homens se domesticam entre si, como humanos domesticam cães.
  182. A mediocridade é, por vezes, erroneamente chamada de “moderação”.
  183. Para amar o outro, é preciso ser capaz de amar a si mesmo.
  184. Melhor sofrer do que idolatrar.
  185. Alguns mentem por amor.
  186. O desprezo de alguém pode ser desprezível.
  187. Mude para um lugar onde seu amor seja aceitável.
  188. Há quem reze para se eximir da responsabilidade de agir.
  189. Existem comunidades secretas em todos os lugares, mesmo que não sejam sociedades humanas.
  190. Não dá pra fingir que algo inútil é “profundo”.
  191. Tem diferença entre solidão e abandono.
  192. A voluptuosidade e o desejo de domínio não necessariamente são ruins.
  193. A voluptiosidade só é um mal para ascetas, celibatários e outras pessoas que fogem do prazer.
  194. Para todos os outros, a voluptuosidade é como o vinho: gostasa, saudável, pode ser tomada com parcimônia.
  195. O desejo de dominar está ligado à insatisfação com o aqui e o agora, à rejeição de respostas apressadas.
  196. Não se curve, como um escravo, às opiniões dos outros.
  197. Não tenha vergonha de si mesmo.
  198. A sociedade não quer que as crianças se amem pelo que são.
  199. A vida é difícil porque o ser humano evoluiu nessa direção; estamos pagando o preço de escolhas que nossos ancestrais fizeram (o que não nos escusa da responsabilidade de deixá-lo melhor).
  200. Não aceite tudo, não rejeite tudo.
  201. Os que amam sem dar amor de volta são parasitas em forma humana.
  202. Não é sábio aceitar como presente algo que você pode conseguir sozinho.
  203. Quem não é capaz de mandar a si mesmo deve obedecer.
  204. E há aqueles que sabem mandar, mas não obedecer.
  205. Se você não diz a verdade, não é bom.
  206. A verdade dói.
  207. Bem e mal não são conceitos sólidos para humanos.
  208. A humanidade não trabalha bem com meio-termos; historicamente, ela pende de um extremo a outro.
  209. Se algo deve ser comprado, tem pouco valor.
  210. Não importa de onde você veio, mas pra onde você olha.
  211. Os melhores não são insuperáveis.
  212. Se você está insatisfeito com o mundo, não está escusado de mudá-lo.
  213. Você vive neste mundo.
  214. Novos valores podem estar tão errados quanto os anteriores.
  215. Como pode alguém dizer “estou cansado deste mundo” e ter medo da morte?
  216. Estar “cansado deste mundo” é um estilo de vida na moda.
  217. Não tenha inimigos que não são dignos de ódio.
  218. Hoje em dia, xeretar a vida dos outros faz parte do trabalho do vizinho.
  219. Casamento não deve ser uma decisão tomada às pressas.
  220. Se você não gosta mais da sua mulher, se divorcie, em vez de traí-la em segredo.
  221. Casamento pode ser um inferno.
  222. Admita quando o casamento não dá certo.
  223. Casamento é uma decisão que precisa ser planejada e pensada antes de ser tomada.
  224. Se não puder ter filhos que te superem, é melhor não tê-los.
  225. O ser humano é o animal mais cruel que existe.
  226. Uma pessoa pode ser cruel com outros humanos, mas também consigo própria, como se sentisse prazer em sofrimento autoimposto, vendo uma fonte de orgulho no próprio sofrimento.
  227. A alma não é imortal.
  228. Se eu tiver que viver sozinho com outra pessoa, tenho que aprender a amá-la.
  229. Se uma pessoa te ama por tua sabedoria, ela deixará de te amar se tu ficares burro.
  230. Fazer uma loucura pode ser melhor do que fazer nada.
  231. Coisas aleatórias acontecem.
  232. Se você não vive em sociedade, obviamente não aprenderá normas sociais, das quais muitos querem se livrar.
  233. Nobreza é uma variante dourada dos mesmos arquétipos já existentes na plebe.
  234. A saúde do trabalhador pode ser melhor que a do nobre sedentário.
  235. A classe trabalhadora, se é realmente a melhor, deveria ser soberana.
  236. Classe trabalhadora (camponês) não é o mesmo que classe média.
  237. Um rei pode ainda ser bem visto por causa de sua família.
  238. É uma calamidade quando os homens mais sábios não são os governantes.
  239. Existem pessoas que precisam mentir para continuar vivendo.
  240. Privar um religioso de sua divindade não o liberta.
  241. Os fracos não deveriam ser os únicos a ditar o certo e o errado.
  242. A riqueza não é indicativo de maldade; um rico e um pobre podem ser igualmente perversos.
  243. É possível estar mais seguro na cadeia.
  244. Uma pessoa pode ser tida por sábia sem ser inteligente.
  245. É perigoso ao solitário ir à praça pública sem se preparar antes.
  246. Não adianta falar pra todos se ninguém quer escutar.
  247. O homem normal não acredita que o ser humano possa evoluir.
  248. “Somos todos iguais” se tornou desculpa para o conformismo.
  249. Não se deve pensar meramente na sobrevivência do homem, mas também em como nos tornarmos algo melhor do que somos.
  250. Para alguns, o necessário não é o bastante.
  251. Ser humano não é o ápice; devemos ser mais que humanos.
  252. Existem causas mais valiosas do que a sobrevivência.
  253. É melhor viver do seu jeito do que do jeito que os outros querem que você viva.
  254. Se você tem coração, domine seu medo.
  255. Se você sofre por si mesmo, é um fraco, mas esse não é o caso quando você sofre pela humanidade.
  256. Subjugue o raio que poderia te matar.
  257. Discernimento não é uma virtude popular.
  258. A crença infundada não pode ser destruída pela razão, então apele à emoção.
  259. Pessoas comuns desconfiam da razão.
  260. Não mentir não é o mesmo que amar a verdade.
  261. A fonte da sua virtude é aquilo que você ama.
  262. Não tente ser virtuoso além das suas forças.
  263. Não tente algo que você sabe que dará errado.
  264. Se você não acha motivo de riso na vida, está procurando mal.
  265. Melhor enlouquecer de felicidade do que de tristeza.
  266. Algumas pessoas elogiam a castidade porque castidade lhes dá tesão.
  267. Temos medo de animais, inclusive daquele que vive em nós.
  268. Também é inocência não saber o que é inocência.
  269. A sabedoria pode levar alguém a assumir comportamento anormal.
  270. Aceitar o que a vida tem de bom implica aceitar também a dor que a mesma vida pode te infligir; você não pode escolher ficar só com a parte boa.

25 de outubro de 2017

Anotações sobre “Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro”.

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Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro” foi escrito por Nietzsche. Abaixo, o que aprendi lendo esse livro.

O bem e o mal.

Nem tudo é “bom” ou “ruim”: há áreas cinzentas entre os valores. Antinomia de valores pode muito bem ser só um ponto de vista. Pensadores tradicionais pensam no “sim” e no “não”, esquecendo do “talvez”. Pode até ser que duas coisas aparentemente contrárias sejam duas manifestações da mesma coisa. O fato é que é infantil olhar as coisas usando critérios morais absolutos, porque “moral” é a interpretação subjetiva de um mundo objetivamente amoral. Toda moral é, portanto, uma escolha e não tem existência fora na pessoa, na natureza. Morais universalmente aceitas não existem na Terra. Isso é válido também para além da moral: há graus entre verdadeiro e falso. Uma afirmação pode ser “mais verdadeira” que outra, sem ser totalmente verdadeira, seja porque há mescla de falsidade, seja porque é uma verdade incompleta.

Fazer ciência da moral não é possível, porque moral muda conforme tempo e espaço. Cada tempo pensa que sua moral é melhor do que as anteriores. O modo atual de pensar é melhor que o anterior ou somos levados a pensar assim? Veja o caso dos moralistas: eles odeiam povos indígenas, porque estes mostram uma sociedade que funciona com princípios morais diferentes, considerados “menos refinados”. Seu ódio reflete apenas seu orgulho ferido. A mudança da moral segundo tempo, lugar e pessoa é fatual. Segue-se que não há fundamento seguro para a construção de uma ciência chamada “ética”.

Hipocrisia e moralismo.

O ser humano tem as coisas mais fúteis como as mais importantes. Por causa disso, várias coisas fúteis são tidas como “boas”, mesmo que num nível individual. Um exemplo é o desprezo: quem se despreza ainda se orgulha do desprezo que tem de si mesmo. Quando esse desprezo toma forma de autonegação (o desprezo por si próprio), ele pode adquirir contornos hipócritas. Por exemplo: a pessoa que se esforça pra não sentir emoções. Ora, o desejo de superar uma emoção já é causado por outras emoções.

Um outro exemplo de “futilidade importante” é a ignorância. Para alguns, a ignorância é uma condição de manutenção da vida. É pela ignorância que a sociedade encontra estabilidade e não muda. A ignorância conserva, mesmo que conserve em um estado negativo. É perfeita para aqueles que temem mudar seus hábitos, mesmo que para melhor. Outro exemplo é o desinteresse. Por que uma ação tem que ser desinteressada pra ser boa? Eu não posso agir corretamente motivado por interesse próprio? Nem todas as ações feitas com interesse são erradas. O amor não é desinteressado, mas nem por isso inválido.

Outro exemplo é a mentira. Para algumas pessoas, a mentira é melhor do que a incerteza. Uma informação que te deixa feliz ou que te torna virtuoso pode ainda assim ser falsa. Da mesma forma, uma verdade pode ser desagradável. Então, podemos amar a mentira porque a mentira nos deixa alegres. O peso da realidade faz o sonho nos dominar. A mentira é, portanto, importante para aqueles que constroem suas vidas sobre a mentira. É o caso daqueles que querem dar uma forma de verdade incontestável à sua moral pessoal. Muitos julgamentos morais são arbitrários, mas argumentados de forma a parecerem científicos. É possível justificar um vício transformando-o numa virtude ou incluindo-o numa virtude. Assim, temos a sensação de que certas atitudes são sempre erradas ou “más”, mesmo que tal leitura da realidade não subsista ao escrutínio e tudo seja manipulação da linguagem. Apesar de tudo isso, a verdade se impõe. Felicidade pessoal não é argumento que sustente uma moral que se pretenda universal.

Tais futilidades podem ser usadas contra você. Tome como exemplo a obediência e a abstinência. Todo o mundo quer que você obedeça, mas os mais ricos são os que mais mandam e os que menos obedeceram. A abstinência nos leva a desejar e esse desejo pode ser usado a favor de alguém. Suponhamos, por exemplo, que a mulher de quem você gosta exige que você mude por ela ou ela deixará você. Mudar por amor é provar que a pessoa por quem você muda não te ama pelo que você é, mas pelo que ela pode te tornar. Ela usa a abstinência como arma para explorar você. Então, um lugar em que a “moral vigente” valoriza a obediência e a abstinência pode ser um ambiente que facilite o controle e a exploração de uns pelos outros.

Aceitando a moral como escolha pessoal.

De tanto você se esforçar em ver as coisas de forma distorcida, você não pode mais ver as coisas como são. A realidade moral, dos nossos conceitos de bem e de mal, passa a ser tida como absoluta quando, na realidade, ela varia de cultura pra cultura e até de pessoa pra pessoa. Uma moral pode ser imoral pra outra moral. Há mais morais do que é possível contar nos dedos de duas mãos. Como então superar isso? Se algo tem que morrer, ignore-o: abdique da ideia de que a moral proposta por alguém é universalmente aceita e viva dessa forma. Não deixe que ninguém te diga como ser feliz. Agir dessa forma, porém, não é algo que se faz somente com a própria força de vontade, mas é algo próprio dos fortes. “Basta querer pra conseguir” é um enunciado errado.

Quem pretende superar a moral absoluta tem que estar pronto pra se colocar em grande risco. Quando você começar a agir dessa forma, pode ser que te olhem diferente. Aquilo que você é pode não corresponder à ideia que fazem de você: viver com uma moral própria, pessoal, pode ser visto por aqueles que acreditam em morais absolutas como uma demonstração de desumanidade. Quem age segundo princípios, especialmente os próprios princípios, acaba se distanciando do agir comum, o que faz com que outras pessoas queiram puni-lo. E é aí que entra um dos desafios de mudar de comportamento: a quebra do pertencimento. Se você mudou para melhor e seus amigos não aprovam a mudança, rompa a amizade. Falar é fácil.

No entanto, mesmo depois de aceitar que não há moral objetiva e que toda moral é uma escolha, você não se tornará blindado contra as consequências de seus atos. Mesmo que você mude de comportamento, ainda sofrerá as consequências de um erro passado. Seja capaz de aceitar isso. A dor constrói, o prazer conforma. Quem não tem coração duro na adolescência não o terá na idade adulta. A pessoa amadurece ao enfrentar dificuldades. Quem sofre e sobrevive ao sofrimento acaba se tornando alguém melhor em termos de experiência.

A natureza filosófica.

Um ato consciente não é 100% feito sem instinto: nós pensamos porque queremos ou o pensamento nos vem de súbito? A filosofia, que se propõe a ser racional, por exemplo, se origina também do instinto e o mesmo pode ser dito das ciências, como a física, a qual é um meio de apreender o mundo que nos estimula. Tal instinto é a curiosidade: nos interessamos por fenômenos raros. Logo, praticar filosofia é uma manifestação dos instintos humanos. A marca da filosofia é a dúvida. Mas não é possível duvidar de tudo. Duvidar de tudo nos leva a duvidar de nosso pensamento. O filósofo pode dizer que quer duvidar de “tudo”, mas salvaguardar certas coisas da dúvida, como os princípios de raciocínio com os quais trabalha, uma vez que não é possível conduzir um raciocínio sem pressupostos. Um pressuposto comum é a religião. Tem muito pensamento sério baseado em crenças religiosas, mesmo que o pensador não perceba isso.

Há diferença entre descobrir e inventar, a descoberta sendo a constatação de algo que nos é mostrado pelo mundo e a invenção sendo a realização de uma ideia. Também há diferença entre criar e desenvolver. Existem pessoas que têm boas ideias e existem pessoas que desenvolvem bem as ideias que outros tiveram. Também é assim na filosofia.

Crítica à filosofia.

A filosofia se guia por perguntas. Algumas aberrações filosóficas são produzidas não quando a filosofia conclui de forma errada, mas quando ela pergunta de forma errada. Tais aberrações podem estar gestando antes da pergunta ser feita, quando o filósofo decide colocar coisas claras em dúvida. Então, antes de fazer uma pergunta qualquer, faça uma outra pergunta antes: “eu preciso perguntar isso?” Complicar o óbvio pode ser desejo de chamar atenção. Um filósofo que põe em dúvida o óbvio, então, pode estar sendo motivado pelo desejo por fama. E aí outros caem em sua armadilha e logo o pensamento de muitos se desvirtua. Ainda se crédito à ideias que nunca foram demonstradas e contra as quais se acumulam evidências contrárias.

Além disso, a filosofia muitas vezes trabalha com termos que não foram definidos. Como posso dizer “penso, logo existo” se eu não sei o que é pensar? O que é filosofia? Saber o que é filosofia requer prática de filosofia. Mas como eu vou praticar filosofia sem saber o que ela é? Assim a filosofia precisa ter conceitos claros como instrumentos de sua atividade, ou suas conclusões, mesmo quando não monstruosas, serão vazias. É grave construir algo novo sobre um erro antigo. Então uma filosofia nova que se funda em uma filosofia anterior, que incorre nesse erro conceitual (como é o caso das tradições metafísicas), pode facilmente ser questionada.

Outro problema da filosofia é que, por se fundar em conceitos, ela está invariavelmente sujeita à linguagem e, consequentemente, à gramática. A gramática de um povo influencia a filosofia a ponto de pessoas que raciocinam com gramáticas semelhantes chegarem à conclusões semelhantes. Isso permite que as filosofias de diferentes povos sejam diferentes entre si. Isso prejudica o caráter supostamente universal da filosofia. Claro que isso não significa que todos em um território sempre agem igual: mesmo que tenham princípios iguais, não terão objetivos iguais.

Embora a filosofia seja “amor pela sabedoria”, um filósofo pode ser amigo da sua verdade, que não necessariamente é a verdade de fato. Existem filósofos empenhados em mostrar que não estão errados, mesmo que estejam, porque são vaidosos. Já outros não estão tão a fim de provar a sua verdade, mas a verdade de quem os paga. O filósofo deve sê-lo por predisposição, talento, não por dinheiro (até porque paga muito mal e o campo é restrito) e nem por fama (porque compromisso com a verdade requer defender verdades desagradáveis).

O filósofo por vezes teme a si mesmo. A filosofia que apenas repete os valores de seu tempo e só está interessada em justificá-los é uma filosofia de coleira, digna de pena. Uma pessoa pode ser inteligente e esconder isso, pra pertencer à sociedade. Algumas pessoas sabem que estão certas, mas, temendo as consequências da verdade, se veem desejando que outros não pensem como elas. Assim, mesmo que alguém faça filosofia, pode ser que a faça de forma mais “suave” porque teme as consequências de ideias radicais nas quais acredita. A filosofia feita por alguém revela também seu caráter. Portanto examine-a.

Além disso, a filosofia produz uma multitude de resultados, devido a multitude de métodos, já que a filosofia, não sendo ciência, não tem método unificado. Alguns resultados se contradizem mutuamente. Isso causa ceticismo. O ceticismo, na medida em que tem dúvidas sem propor nada novo, é conservador. Há filósofos que já não mais creem na capacidade da filosofia de explicar o que quer que seja, já que é difícil filósofos entrarem em acordo entre si. Quando os filósofos se desesperam da filosofia, ela perde seu crédito. Já outros usam a filosofia apenas para destruir verdades estabelecidas sem propor nenhum novo entendimento da vida. Destruir uma certeza sem propor novas certezas é doentio. É preciso ter certeza, pelo menos, de si mesmo.

Por último, existem verdades que são percebidas por pessoas comuns, antes de ser percebidas pelos intelectuais, porque fazem parte do contexto comum. Se a filosofia se eximir do contexto comum, será inútil e a sabedoria popular lhe será superior. Apesar disso, mesmo que a filosofia se ocupe da vida comum, pode ser que ela não seja compreendida e seja tida por loucura. As pessoas negam as ideias que não têm maturidade pra compreender, como negam a existência de estrelas cuja luz não nos chegou. Por causa disso, pode ser que suas ideias não sejam entendidas neste século.

A ação correta.

No período helenístico, se costumava dizer que a vida feliz é aquela que se vive segundo a natureza. Se agir segundo a natureza é agir segundo a vida, ninguém precisa dizer a você pra fazer isso; você já está fazendo.

O valor de algo deve ser medido segundo suas consequências. Quando o valor de algo é medido segundo a intenção, em vez de segundo as consequências, então é lícito fazer atrocidades se for “por uma boa causa”. Se algo deve ser motivado pelas consequências que se quer obter, então procurar a verdade sem razão (o chamado “saber pelo saber”) te faz não encontrá-la. Você só procura a verdade se a mentira te incomoda ou porque você espera que sua vida melhore com isso. Além disso, mais que encontrar a verdade, é preciso que a verdade seja útil: atingir um ideal é ultrapassá-lo. Descobrir uma verdade que não serve pra nada é como morrer de sede no meio do mar, água que não se pode beber.

Cada um deve agir visando a felicidade, essa é a consequência que se procura. No entanto, o erro da pessoa feliz é pensar que não perderá a felicidade.

Na busca pela felicidade, nos deparamos com outros que fazem o mesmo por seus próprios meios (já que toda moral é uma escolha pessoal), o que pode causar conflitos e, portanto, ódio. Só é possível sentir ódio de alguém igual ou superior a nós. Por outro lado, algumas pessoas superiores a nós não estão interessadas em nossa destruição. Isso pode ser motivo de desconforto para alguns. Algumas pessoas sentem desconforto ao ser bem tratadas por alguém superior, porque sentem que não podem retribuir.

Crítica à religião.

O catolicismo domina em locais onde a prática tem mais valor do que o puro pensamento, porque o catolicismo condiciona a salvação às boas obras. Na verdade, uma pessoa pode agir mais como católico do que como brasileiro, tal é a ênfase nas obras. É diferente do protestantismo, que condiciona a salvação à fé somente. Se o catolicismo condiciona a salvação às boas obras, você não pode ser salvo somente crendo. O processo pode ser árduo. Ninguém é santo por diversão. Mas aí surge um problema: o mais difícil de fazer não necessariamente é o melhor a se fazer. Imagine se, depois de uma vida de austeridade e ascetismo, você descobre, depois da morte, que a forma que você pensava ser a correta de buscar a salvação era, na verdade, errada. Infelizmente, a crença na vinda vindoura pode tornar uma pessoa mais propensa a não aproveitar a vida presente. E se essa abnegação não compensar no final?

Nenhuma religião é totalmente santa. Existem pastores que estão apenas interessados em ganhar dinheiro e fiéis que vão pra igreja apenas porque não têm o que fazer em casa. Qualquer instituição composta de seres humanos que afirme ser santa, isto é, sem pecado, é automaticamente hipócrita, porque não há quem não peque. Seja no clero, seja entre os leigos, não é possível que todos sejam santos o tempo todo.

Há que se lembrar que a fé varia de pessoa pra pessoa. Se a religião for obrigatória, nem por isso todos crerão. Tem pessoas que são religiosas por “estilo” somente, como se fosse um adorno. Essas pessoas não estão interessadas na salvação, mas em status. Outro problema da religião é o fanatismo. Alguns são tão fanáticos que, no exercício do amor à divindade, se esquecem de amar o próximo. Não se deve amar um só ser em detrimento de todos os outros. Deus mesmo nunca mandou que se fizesse isso. Quem luta contra monstros deve tomar cuidado pra não se tornar também um monstro.

A moral dos senhores e a moral dos escravos.

Há dois tipos de moral: a dos senhores e a dos escravos. Antigamente, uma pessoa bem-sucedida era considerada virtuosa e ela era quem ditava o que era virtude e o que não era, através de seu comportamento. Assim, antigamente, na época da moral dos senhores, virtuoso era o comportamento do vencedor, qualquer que ele fosse. Aquele que luta por uma causa a ponto de os oprimidos se refugiarem sob sua sombra, por proteção, já nasceu senhor. Na moral do senhor, o mau é a insignificância, a necessidade de aprovação dos outros, a impotência, mas é o contrário na moral do dominado. Na moral dos dominados, ou dos escravos, que por inveja criam uma moral oposta à dos senhores, tudo o que é “opressivo”, como a desigualdade, é mau. Provam isso apontando as falhas de seus senhores, mas também sistematicamente negando as qualidades de tais senhores, tais como coragem, sagacidade, compaixão (porque também dominadores são capazes dela) e solidão, esta última sendo a virtude que limpa a pessoa da sujeira contraída pelo convívio com os outros.

Se você estivesse por cima, você pensaria em igualdade? Por isso a igualdade é reivindicada pelos oprimidos: se os oprimidos fossem opressores, não pensariam em igualdade. Mas para que haja essa mudança de paradigma, é preciso que o escravo tome o lugar do senhor ou tenha esse lugar concedido a ele. A emancipação feminina, por exemplo, só foi possível porque as assembleias políticas compostas totalmente por homens deram a elas o direito de votar.

Educação e família.

Se você acredita que o filho repete os erros do pai porque isso é genético, que utilidade você vê na educação? O filho não necessariamente agirá como seu pai. O pai pode ser a pessoa mais virtuosa e, ainda assim, estragar seu filho mimando-o. A criança mimada é viciosa. Tem-se então um pai virtuoso e um filho vicioso. A educação é importante, talvez mais que a genética. Mas a educação precisa ser boa. Uma educação qualquer, por exemplo, também ensina a dissimular e isso não é bom.

21 de setembro de 2017

Anotações sobre o “Crepúsculo dos Ídolos”.

Crepúsculo dos Ídolos foi escrito por Friedrich Nietzsche. Abaixo estão algumas afirmações feitas no livro. Uma afirmação pode ou não coincidir com o que eu penso sobre o assunto.

  1. Defender uma causa controversa requer que o indivíduo se mantenha sereno.

  2. O triunfo requer petulância.

  3. Força em excesso prova força suficiente.

  4. A mentira é mais comum do que a verdade.

  5. Dizem que a falta do que fazer é mãe de todos os vícios.

  6. Às vezes sabemos que algo não é verdade, mas temos medo de nos opor.

  7. Dizer que a verdade é sempre simples é mentir duas vezes.

  8. O que não mata, fortalece.

  9. Se ajude para receber ajuda dos outros.

  10. Não procure adeptos.

  11. A verdade é um atentado ao pudor.

  12. Ou se tem virtude ou se tem vantagens.

  13. Tem coisas que fazemos escondido, mas querendo que outros encontrem.

  14. Não se deve olhar o passado a fim de repetir os erros lá contidos.

  15. Satisfação aumenta a imunidade.

  16. Uma mulher com virtudes masculinas é irresistível, mas uma mulher sem essas virtudes não resiste a nada.

  17. A música nos deixa alegres.

  18. Pense andando.

  19. Existem os que se movem pra resolver o problema, existem os que só olham o problema e existem os que preferem não ver o problema.

  20. É preciso saber o que desejamos e se vale a pena desejar isso.

  21. Passar por cima dos outros é necessário pra progredir.

  22. A filosofia grega, que dizia que viver não vale a pena, mais especificamente a filosofia socrática, era doentia.

  23. Um consenso pode estar errado: pode ser que muitos concordem com uma coisa errada.

  24. Julgar a vida é idiotice; a vida é a vida.

  25. Somos parte da vida.

  26. Quando alguém emite um juízo de valor sobre a vida, sendo que ele próprio faz parte da vida, está pirado.

  27. Um sábio que julga a vida está se pondo acima dela, como juiz, o que prova que ele não é assim tão sábio.

  28. Para enfurecer um adversário e colocá-lo contra a parede, ponha-o numa situação em que ele tem que provar que não é um idiota.

  29. A feiúra de Sócrates podia muito bem ser um reflexo de sua má saúde, ajudada pelo excesso de controle sobre os próprios instintos.

  30. Se os instintos podem nos tiranizar, a razão pode nos tiranizar também.

  31. Uma pessoa pode ter que se forçar a ser racional.

  32. A doença do grego: excesso de razão.

  33. Por causa desse excesso de razão, o ato de satisfazer os instintos passou a ser visto como demonstração de fraqueza e não necessariamente o é.

  34. Quando a dialética abala a autoridade vigente, as pessoas esperam do dialético uma solução para o problema que ele próprio criou, o que lhe dá autoridade pra dizer o que a massa deve fazer.

  35. O ascetismo dessas morais é procurado como meio de salvação, mas essa vida clara, comedida, fria, prudente… nem sempre traz a felicidade que promete.

  36. Numa vida saudável, felicidade e instinto são a mesma coisa.

  37. Filósofos erram, pois não consideram o conceito como construção, como submisso às vicissitudes da história.

  38. A filosofia tradicional vê o devir como problemático.

  39. O ser imutável não encontra fundamento empírico mas os filósofos (falando aqui apenas dos platônicos, penso) querem que ele exista, o que os leva a admitir que o devir é ilusório e que o ser imutável é objeto de especulação.

  40. Os sentidos não mentem.

  41. O que acontece é que os sentidos nos dão uma informação imparcial, mas nossa interpretação dessa informação que pode estar errada.

  42. A filosofia tradicional parte do universal pra explicar o singular.

  43. Lógica não é sinal irrefutável de razão: algo pode fazer sentido e estar errado.

  44. Não é possível demonstrar que o mundo não é como parece ser, isto é, como nossos sentidos o captam.

  45. Uma ideia pode levar milênios para ser superada, mas ela é superada quando acaba não servindo mais pra nada.

  46. A moral pode se manifestar contra a natureza.

  47. As paixões podem trabalhar a favor da razão.

  48. Alguém que combate a ciência não luta inteligentemente contra nenhum inimigo.

  49. A moral tradicional prefere suprimir o desejo sexual, por exemplo, em vez de se perguntar como esse desejo poderia ser usado de forma construtiva.

  50. Se a paixão é uma expressão da vida, atacá-la é atacar a vida.

  51. Quem faz guerra contra os próprios desejos é quem não é capaz de usá-los a seu favor.

  52. Guerrear contra os desejos revela fraqueza de espírito: você mata o desejo porque não tolera sua sedução.

  53. O estabelecido precisa de oponentes.

  54. Uma moral que não tem como objetivo a preservação da vida é doentia.

  55. Qualquer moral que não tenha a vida como objetivo é decadente.

  56. Um humano não pode dizer como o ser humano deve ser.

  57. Quando uma pessoa diz “seja assim”, normalmente está dizendo, mesmo que não saiba, “seja como eu”.

  58. O maior vacilo que a razão pode cometer é confundir causa e efeito.

  59. A moral e a religião cometem esse vacilo constantemente.

  60. Não se pode fazer generalizações com base em um só exemplo.

  61. Não coma muito, nem coma pouco; coma o suficiente.

  62. Se eu sou virtuoso, farei o bem, mas fazer o bem não me torna virtuoso.

  63. Vício e luxo não são a causa da decadência humana, mas sinais dessa decadência.

  64. Outro vacilo: assumir causalidade onde ela não existe.

  65. Outro vacilo: imaginar causas que não existem.

  66. Outro vacilo: fingir que já se conhece o que é, na verdade, desconhecido.

  67. Se permitimos uma dor se apoderar de nós, é porque reconhecemos que a merecemos, mesmo quando não a merecemos de fato.

  68. Movimento peristáltico, como uma bela digestão, pode ser confundido com tranquilidade de espírito.

  69. Não temos razão de existir.

  70. Não há “fim”, isto é, objetivo.

  71. Moral não prova nada.

  72. O juízo moral crê numa realidade que não existe.

  73. Moral é interpretação e interpretações são pessoais.

  74. Moral é relativa.

  75. É possível falar uma coisa sem compreender as próprias palavras.

  76. Uma pessoa que não sabe o que a moral realmente é não pode tirar fruto dela.

  77. “Moral” é uma tentativa de melhorar o ser humano.

  78. Mais fácil melhorar o gênero humano pela ciência.

  79. Domesticar um animal é adoecê-lo, ao fazê-lo agir de uma forma não estipulada pela natureza.

  80. Quando se quer enfraquecer alguém, adoeça-o.

  81. Um número de processos de eugenia foram religiosamente sancionados.

  82. O Evangelho é contra o arianismo, é contra os valores de raça pura e dominante.

  83. A educação pode matar o gênio.

  84. Política e ciência são coisas diferentes.

  85. As épocas de maior avanço em termos filosóficos e científicos foram épocas de crise política.

  86. Nenhuma escola ensina a pensar.

  87. Não há mais disciplina que ensine lógica.

  88. Infelizmente, a ciência faz parte da democracia.

  89. Faz sentido um ateu moralista?

  90. Não se faz arte sem estar embriagado, mesmo que não de álcool.

  91. É possível estar embriagado de tesão.

  92. É possível estar embriagado de sonho.

  93. A sensação de força e de plenitude é o que torna a embriaguez uma fonte de inspiração artística.

  94. A embriaguez de Apolo nos leva a pintar, esculpir e descrever, mas embriaguez dionisíaca nos leva a compor, tocar e dançar.

  95. Existem ateus que querem deixar de ser ateus.

  96. Só é possível ter espírito (circunspeção, paciência, astúcia, mentira e domínio) na necessidade dele.

  97. Algumas vezes, imparcialidade é manifestação de arrogância.

  98. A filosofia de Kant é desonesta.

  99. As maiores tragédias só acontecem com as pessoas mais ilustres.

  100. Sempre seguir as regras da sociedade acaba comprometendo a pessoa.

  101. A mãe da filosofia é a atração por menores.

  102. Praticar arte só por fazer é lutar contra a moral.

  103. O objetivo do ensino superior é transformar um homem numa máquina estatal kantiana, ensinando-o, através da moral, a ter ódio de si próprio.

  104. De vez em quando, faça arte sem método.

  105. O gênio consome energia e trabalha sob pressão e arruinará sua saúde se não der uma pausa pra mexer o corpo.

  106. Mais vale um homem real do que um ideal.

  107. Doenças são sinal de decadência não causas de decadência.

  108. O anarquista culpa a sociedade e o cristão culpa a si mesmo.

  109. O socialista faz da revolução sua vingança e o cristão, muitas vezes, faz do juízo final sua vingança.

  110. Não é possível agir sem interesse.

  111. Ser totalmente altruísta, isto é, nunca pensar em si, é fórmula de suicídio.

  112. Melhor você negar seu valor do que o valor da vida.

  113. O doente terminal deveria ter direito de se matar, se quisesse.

  114. Se a pessoa perdeu a dignidade de viver, permita-a morrer dignamente.

  115. Todas as épocas se julgam no ápice da realização moral.

  116. Uma moral muito restritiva vem de um povo mais fraco e delicado, que “não suporta” certas coisas.

  117. O valor de uma moral vem de sua serventia.

  118. Nossa sociedade detesta correr riscos.

  119. Alguém que zela pela liberdade não pode se vender.

  120. Você só pode ser forte se precisar sê-lo.

  121. Pra quê serve o casamento hoje?

  122. A moral kantiana nada mais foi do que a validação dos costumes de sua época.

  123. O sacrifício heróico é o ato que desconsidera a sobrevivência do praticante em nome de uma causa maior que sua própria vida.

  124. O criminoso é um homem forte que nasceu numa época que não compreende sua força.

  125. Antes de ganhar notoriedade, todos os gênios são odiados por seu tempo.

  126. Educar sentimentos e pensamentos não te torna belo, mas educar o corpo torna.

  127. A realidade está nos acontecimentos verdadeiros do mundo, não na nossa cabeça e nem na nossa moral.

  128. Não existe mudança sem sacrifício.

6 de setembro de 2017

Anotações sobre o nascimento da tragédia.

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  1. A tragédia nasce do espírito da música, diz o autor.

  2. Por que os gregos tinham necessidade do gênero trágico, eles que eram tão felizes?

  3. Pessimismo não é sinal seguro de declínio.

  4. Foi Sócrates quem matou a tragédia grega. A razão descreditou a tragédia.

  5. A racionalidade pode ser sinal mais seguro de declínio do que o pessimismo.

  6. A ciência é questionável. Infelizmente, ela pode ser questionada erroneamente também.

  7. A ciência não pode pensar a si mesma. Esse é o trabalho pra arte ou pra filosofia. Nietzsche prefere a arte.

  8. A tarefa do livro é ver a ciência sob a ótica do artista.

  9. É possível ser tão lúcido a ponto de ficar louco? Sim, é possível.

  10. O cristianismo, pelo ódio ao mundo, leva o cristão a fechar os olhos aos prazeres desta vida em prol de vagas promessas, diz o autor. Importante lembrar que se trata do cristianismo mais tradicional. O judaísmo não tem, por exemplo, um “céu” pra onde as almas vão. Para os judeus, só há um mundo onde humanos podem viver: este. É o mesmo com as testemunhas de Jeová. Essa crítica de Nietzsche só se sustenta no cristianismo que afirma a existência de dois mundos.

  11. Para o cristão, esta vida é sem sentido. Nietzsche vê nisso um sintoma de grave doença.

  12. A moral, diz Nietzsche, é o começo do fim.

  13. Uma filosofia que afirma o valor deste mundo em detrimento do outro mundo cristão é uma filosofia anticristã. Só que hoje, com o movimento cristão alternativo ganhando força, existe um cristianismo que afirma só um mundo. Então, Nietzsche já não é mais tão anticristão como costumava ser no seu século.

  14. O espírito trágico, diz Schopenhauer, não vê neste mundo nenhuma razão de apego. Assim, ele conduz o indivíduo à resignação. Nietzsche discorda. Pra Nietzsche, o espírito trágico não traz nenhuma resignação.

  15. Pra alguns, é melhor que nada seja verdade do que o inimigo ter razão de alguma coisa. Esse pessoal frequentemente se dirige e seduz os jovens.

  16. Não adianta ouvir de ouvidos tampados.

  17. O consolo do cristão é a vida futura. O consolo do ateu é o riso mundano, diz o autor. No entanto, o cristão pode se consolar de ambas as formas, já que essa vida futura pode estar bem longe. Ou não (Mateus 24:36).

  18. A arte plástica e a arte musical nascem desse confronto entre o dionisíaco e o apolíneo. O impulso dionisíaco produz a música e, no seu combate com o apolíneo, é estimulado a produzir mais música. O impulso apolíneo produz artes plásticas, como a escultura, da mesma forma que Dionísio produz música. Mas a tragédia ocorre quando os dois estão juntos, lado a lado, o que não necessariamente quer dizer que eles estão em concórdia.

  19. Apolo e Dionísio são relacionados aos dois estados de inspiração do artista: Apolo é o sonho, Dionísio é a embriaguez. Isso porque Dionísio é também o deus grego do porre.

  20. Dizem os antigos que os deuses apareciam em sonhos, nos dando uma ideia de como eles eram em aparência. Aí o pessoal esculpia eles. E é quando estamos bêbados que mais dançamos. Festa sem álcool não existe.

  21. Para alguns poetas, a poesia é a arte de interpretar sonhos.

  22. Não é possível praticar artes plásticas sem imaginar a cena a ser representada antes de começar, diz o autor. Isso não é verdade; eu sei, por experiência própria, quando desenho, que a cena pode ser imaginada conforme a representação progride. Não há necessidade de ter uma cena completa em mente antes de começar. É como desenhar por associação livre, um jogo de perguntas e respostas entre você e o papel.

  23. A sensação de que o mundo físico é falso é sinal de aptidão para a filosofia. Porque a filosofia diz que as coisas não são como parecem.

  24. Tem sonhos mais reais que a realidade. Se você não acordasse, nunca iria saber.

  25. Para desespero de Descartes, sim, existem casos em que um sonho continua o outro. Como saber se estou acordado agora, então? Porque, pra Descartes, a única diferença entre sonho e vigília é que um sonho não continua o outro, mas um dia no mundo real continua o dia anterior. Se um sonho pode continuar o sonho da noite anterior, como é que eu vou poder diferenciar com segurança?

  26. Viver sóbrio, mesmo que torne a vida mais longa, torna a vida mais chata. A pessoa que não se permite um excesso, que é excessivamente controlada e comedida (tipo eu), tem uma longa vida chata, em comparação com a curta vida louca do bêbado festeiro, que ao menos o faz feliz.

  27. Tomar um porre de vez em quando não necessariamente é ruim.

  28. O porre é a concretização da instrumentalidade humana.

  29. Nem todas as festas são dionisíacas. Nem todo o sátiro é Dionísio. Existem festas em que a pessoa se embebeda e produz arte. Mas existem festas em que a pessoa se embebeda e vira um animal.

  30. Tem gente que preferia não ter nascido.

  31. O sofrimento é necessário à arte, porque nos permite imaginar como as coisas poderiam ser diferentes. Assim, a arte que consola vem da realidade opressiva.

  32. Às vezes é preciso estar bêbado pra dizer a verdade.

  33. A música representa, à sua maneira, os mesmos objetos que a arte plástica, mas sem mostrá-los. É como quando você nomina um tema: “Ambiente Aquático”, “Louco Dançarino”, “Exodia”, são todas músicas sem letra, mas que representam alguma coisa por similitude, isto é, sem mostrar o objeto a que se reportam. Existem exceções, como músicas com letra e músicas cujo nome tão somente se refere às técnicas usadas (“Prelúdio e Fuga em A-Menor”, pra dizer que a música usou a técnica de prelúdio, a técnica de fuga e é tocada em a-menor).

  34. A poesia imita a música. Mas palavras não podem imitar o simbolismo universal da música, que se dirige ao coração, em um nível mais penetrante que o da palavra.

  35. Ninguém sabe exatamente como a tragédia grega começou, mas porque ninguém se importou em sequer fazer a pergunta com seriedade.

  36. Para que a arte funcione, precisa ser reconhecida como arte e não como realidade. É o que Kant diz do sublime, de certa forma, quando afirma que o sublime só pode ser apreciado sem perigo real.

  37. Não existe plateia sem show.

  38. A comédia é a “descarga artística da náusea do absurdo”. É tão doido que chega a ser engraçado. E porque é engraçado que é tolerável.

  39. Para Nietzsche, o sátiro é superior ao ser humano, por viver a realidade inteira com toda a sua intensidade. A civilidade impede o ser humano de fazer o mesmo.

  40. O poeta quer retratar a realidade, mas como, se ele não a viver?

  41. Na tragédia, Dionísio é representado pelo coro, enquanto que Apolo é representado pela cena. Som e imagem se juntam, embora não se misturem, num espetáculo com todos os elementos de um e de outro.

  42. Uma pessoa sábia ainda pode errar e se tornar miserável. Paralelo com Salomão.

  43. Alguém escreveu: “um sábio mago só pode nascer de um incesto.” Isso porque magos não são seres naturais, mas que resistem à natureza, ao passo que o parecer da época era de que incesto é algo antinatural.

  44. A sabedoria humana foi um acidente. Para o autor, ela não é natural. Pra mim, se ela é acidental, é um feliz acidente.

  45. O princípio do mal é a individuação. Não poderíamos fazer mal um ao outro se fôssemos um só.

  46. A música atinge todo o seu potencial na tragédia. Caso você ainda não tenha percebido, “tragédia”, aqui, é o gênero de teatro.

  47. Para Nietzsche, as religiões começam a morrer com a ortodoxia. Quando você faz um cânon oficial, descartando tudo o mais como mito, você impede a depuração e revitalização da religião. Então, como o cristianismo subsiste? Porque, verdade seja dita, não existe ortodoxia no crisitianismo… Existe uma Bíblia Sagrada, é verdade, mas não há interpretação oficial fora da Igreja Católica. Por exemplo, o Protestantismo encoraja cada cristão a ter sua interpretação da Bíblia. Como é possível uma ortodoxia assim? Nietzsche, contudo, fala de cânon histórico, mas o fenômeno cristão mostra que é possível que uma religião subsista com cânon histórico, desde que não haja cânon doutrinário. Se houvesse uma só interpreação da Bíblia, o cristianismo seria destruído quando essa interpreação fosse descreditada, mas o que se observa é que, quando uma interpretação cai, duas aparecem no lugar.

  48. A tragédia grega morreu de suicídio. Trágico.

  49. O suicídio da tragédia ocorreu quando Eurípides começou a escrever tragédias em que o destino poderia ter sido evitado. Isso fez com que a população, que antes encarava o destino com indiferença (“qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, então é inútil me preocupar”), passou viver em estado de alerta (“qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, mas eu posso evitar, então devo me preocupar o tempo todo”). A tragédia, que antes promovia a aceitação da vida, passou a promover a sua negação. Não é a vida como é que importa, mas como ela deveria ser.

  50. A tragédia foi sucedida por outro gênero que melhor atendia às pessoas que agora pensavam dessa forma: a nova comédia.

  51. O valor formativo do trabalho de Eurípides o tornava requisitado. Não se ia mais ao teatro pra sofrer com os personagens, mas pra aprender.

  52. Antes, era possível encarar a miséria humana com indiferença, mas agora ela era temida.

  53. A única crítica que o arrogante escuta é a dele próprio.

  54. Derrotar um gênero artístico requer a prática desse gênero.

  55. Eurípedes arruinou o gênero trágico por causa de Sócrates! Parece que foram contemporâneos. Como Eurípedes não gostava da atual forma da tragédia grega, ele começou a conversar com Sócrates, que também não assitia as tragédias. Foi pela influência socrática que Eurípedes concebeu sua interpretação da tragédia, a qual ele levou a efeito.

  56. Quando Eurípedes percebeu que estava destruindo o gênero trágico, ele tentou fazer uma peça nos moldes da tragédia tradicional, mas já era tarde demais. Destruir e depois pedir desculpas não conserta o que foi destruído. Além do mais, considerando que Eurípedes não entendia a tragédia tradicional e passou sua vida discordando dos mestres, não duvido que sua retratação tenha sido uma porcaria de peça.

  57. Eurípedes removeu o elemento dionisíaco das suas tragédias, ao passo que nunca conseguiu chegar totalmente ao apolíneo. Havia um vazio em suas peças que precisava ser preenchido. Ele preencheu com ajuda de Sócrates. Com filosofia.

  58. A tragédia euripidiana conta o final da peça já no prólogo.

  59. Uma peça que estimula a pensar é uma peça que desencoraja a sentir. Tudo bem você refletir depois sobre a peça, mas é contraprodutivo estimular essa reflexão durante a peça. Durante a peça, você deveria assistir.

  60. Se Sócrates não era artista, como é que Eurípides deixava Sócrates ajudar?

  61. A poesia é a verdade para idiotas. Porque algumas pessoas só entendem a verdade através da arte, não pelo discurso científico.

  62. Platão ia ser poeta, se não tivesse se encontrado com Sócrates e virado filósofo.

  63. O romance é uma fábula intensa.

  64. A influência socrática sobre Eurípedes deu à luz “tragédias” que enfatizavam a ligação entre felicidade e virtude. Só que essa é uma ligação que não é necessária: muitos bons sofrem. A tragédia anterior, que mostrava o sofrimento como ato do destino, algo que poderia sobrevir a qualquer um, não é mais realista, ao menos nesse ponto?

  65. A tragédia encontra seu elemento dionisíaco (musical) no coro. Remover o coro da tragédia é remover Dionísio. Sem Dionísio, não há mais tragédia, uma vez que a tragédia é Apolo e Dionísio.

  66. Sócrates não começou a batalha contra Dionísio, mas apenas ajudou a terminá-la, transformando, por meio de Eurípides, a expulsão de Dionísio em uma moda a ser seguida.

  67. Os gregos eram tão originais que alguns artistas preferem não estudá-los, pra não verem que algumas de suas ideias, aparentemente tão originais, já foram tentadas e desenvolvidas antes. É por isso que um dos meus amigos não lê TV Tropes.

  68. Alguém contente consigo próprio não pode ser derrotado por simples inveja ou mentira. Por isso as pessoas temem ou se envergonham perto dele.

  69. A busca pela verdade dá sentido às pessoas. Querem procurar a verdade, mas não necessariamente encontrá-la. Porque, se encontrarem, o que farão da vida depois disso? Já pensou como seria nossa vida se não houvesse mais nada pra aprender? Se soubéssemos tudo? Talvez ela até fosse melhor, mas nem todos a levariam numa boa, porque não iriam saber o que fazer com a vida. A busca pela verdade inalcançável, esquecendo que é inalcançável, é uma autoajuda, um meio de dar significado a uma vida que, de outra forma, não teria sentido.

  70. Uma luta intelectual não pode ser somente assistida. Quem assite, tem que lutar também.

  71. A filosofia e a ciência não podem se sustentar sozinhas. O ser humano precisa da arte. E o grego que havia começado a curtir a tragédia de Eurípedes percebeu também, em algum tempo, que o conhecimento humano tem limites. A frustração de se deparar com esses limites criou uma nova demanda pela tragédia, mas como voltar a ela agora, uma vez que o grego havia aprendido a detestar Dionísio?

  72. O comentário mais fiel de uma cena é feito pela trilha sonora que toca junto com ela.

  73. Se a música combinar com a cena, o entendimento da plateia é melhorado.

  74. É por isso que se canta, em vez de simplesmente declamar poesia.

  75. A cientifização da arte faz com que encaremos gênios que não pactuam com essa cientifização como incompreensíveis. E no entanto são os melhores.

  76. Uma classe de escravos que percebe que está sendo tratada injustamente e passa a desejar vingança é algo perigoso ao estabelecido. Quando um escravo começa a querer se vingar e a vingar até as gerações futuras, não há religião que o pare (“se Deus existe e é bom, deve ser contra a opressão!”).

  77. Tem muito pastor ateu.

  78. Não é possível saber tudo.

  79. Causalidade, tempo e espaço são coisa da nossa cabeça.

  80. Uma sociedade científica deve deixar de existir quando começa a ser ilógica. Uma cultura científica ilógica está caduca.

  81. Para Nietzsche, a ópera não é uma criação de artistas, mas de leigos.

  82. O problema da ópera (e de muitas músicas por aí) é priorizar a letra sobre a melodia, a harmonia e o pulso.

  83. Nem todas as pessoas sensíveis são artistas. Sensibilidade não é o mesmo que aptidão artística.

  84. Não existe estado sem indivíduos.

  85. A educação e as notícias predispõem uma pessoa a julgar um trabalho de arte de determinada forma.

  86. Um crítico de arte pode julgar uma obra com critérios que não têm nada a ver com arte.

  87. Um pouco de dissonância ajuda a música.

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