Pedra, Papel e Tesoura

31 de março de 2022

Essencial de Agostinho.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, , — Yure @ 18:22
Talvez excessivamente branco pra um cara que nasceu na África.

Agostinho! Um dos meus filósofos favoritos. Extremamente produtivo, escreveu mais de trezentos textos entre religiosos e filosóficos. Se bem que seu pensamento filosófico sempre esteve muito atrelado à religião católica, o que é compreensível.

Agostinho teve uma infância normal pra época, o que quer dizer que ele apanhava dos professores por brincar na aula. Na idade adulta, ele reprovou os professores que o bateram, óbvio, antecipando em um bom tempo a tendência moderna de banir das escolas a disciplina física. O’Carroll ficaria orgulhoso.

Já na adolescência, Agostinho gostava de sair de madrugada com outros adolescentes tão desocupados como ele pra fazer rolezinhos medievais, o que envolvia roubar pêras (mais sobre isso em breve).

Agostinho escreveu sobre vários temas. Eu fiz anotações sobre alguns textos dele e as publiquei aqui. Lendo as anotações, vemos que Agostinho escreveu sobre filosofia, antropologia filosófica, metafísica, ética, teoria do conhecimento, entre outros. Neste texto, vamos nos focar em apenas três coisas: sua teoria cronológica (a natureza do tempo), a substancialidade do mal e a condição humana.

O que é o tempo?

Pergunta desconfortável essa. Agostinho entende o tempo como parte da criação, isto é, o tempo não existia antes que Deus o criasse. Assim, seria ilógico perguntar o que Deus fazia antes de criar suas criaturas: se o tempo é uma das criaturas, então não se pode falar de “antes” do tempo ser criado, uma vez que o conceito de “antes” depende do de “tempo”.

Assim, se o tempo é uma das criações de Deus, segue-se que não havia “antes” da criação. Mas, pois bem, voltemos à pergunta principal: o que é o tempo. Agostinho afirma que o tempo é uma daquelas coisas que todo o mundo sabe o que é, mas que não é fácil colocar em palavras. Mas ele vai tentar assim mesmo: pense no tempo como uma espécie de “régua mental” usada para medir a distância entre dois momentos, em vez de dois objetos ou dois locais. Quando você percebe algo, você começa a “medir” e pára de medir ao perceber outra coisa de interesse. Hoje chamamos isso de tempo psicológico, em oposição ao tempo ontológico.

Agostinho afirma que somente o presente existe: o passado e o futuro, por sua natureza (o que não existe mais e o que ainda não existe) não podem ter existência objetiva. Então, pode esquecer seus planos de viajar pro passado. Passado e futuro têm apenas existência subjetiva, como memória e esperança. Assim, passado e futuro só existem na sua cabeça. Fora de nós, só o presente existe.

Origem do mal.

Fonte: https://www.pinterest.com/furikusho/skulls/ .

Todo o mundo sabe que Agostinho era cristão (católico, mais especificamente). Isso quer dizer que ele acreditava em um Deus bom e todopoderoso. Se Deus é bom e todopoderoso, qual seria a origem do mal? Porque o mal existe, certo? Deus teria criado o mal? Se o criou, certamente foi de propósito.

Agostinho tenta sair dessa de um jeito inusitado: o mal é como a escuridão ou o silêncio, isto é, um estado de ausência. A escuridão é um espaço vazio de luz. Então, o que existe é a luz, não a escuridão, que só ocorre quando a luz se vai. Da mesma forma, o silêncio é um espaço vazio de som. Tanto o silêncio quanto a escuridão são ausências e, portanto, não têm substância. Assim é o mal: o mal é a ausência de bem.

Mas o que leva o bem a ser afastado de determinado lugar, pessoa ou situação? O mau uso do livre-arbítrio. O ser humano escolhe rejeitar o bem. Mas isso nos leva a outra pergunta: por que Deus permite isso? Bom, por que Deus nos deu liberdade? A liberdade é um bem e só vai discordar disso quem tem mentalidade de escravo. Então, a criação seria menos perfeita sem criaturas livres que lha dessem um caráter autônomo.

Para ilustrar (como fazem as testemunhas de Jeová): suponhamos que eu te dê cinquenta reais e você vai e compra crack com o dinheiro. A culpa é minha? Do dinheiro? Ou sua? Assim é a liberdade: ela é um bem e não deixa de ser um bem só porque há quem a use de forma errada. Então, Deus não tem culpa pela maldade humana, se a liberdade é um bem. O responsável pela maldade é quem a comete. Ideias tão próximas do existencialismo pra um cristão!

Existem três tipos de males, sendo dois relativos e um literal, segundo Agostinho: natural, voluntário e corretivo. Somente o segundo tipo é um mal em sentido literal. Os outros dois só são males de determinado ponto de vista. O mal natural é apenas a natureza funcionando como deveria (erupções vulcânicas, tornados, enchentes, tudo isso não pode ser chamado literalmente de “males”, pois a natureza age sem moral). Já o mal corretivo (punições por ações ruins) só são males pra quem recebe a correção, mas são benéficas pra sociedade como um todo. Assim, só é mal, em sentido literal, aquele que escolhemos praticar. Se mal é ausência de bem, então somos maus quando deliberadamente afastamos o bem de nós ou dos outros.

Por que escolhemos praticar o mal?

Agostinho, na adolescência, gostava de sair de madrugada pra fazer rolezinhos medievais com adolescentes tão desocupados como ele. Em um desses rolezinhos, ele e seus amigos foram roubar pêras. Refletindo sobre este assunto na idade aduta, Agostinho se pergunta por que ele iria querer roubar pêras, quando ele as tinha em maior número, melhor qualidade e compradas com dinheiro lícito? É porque roubar é interessante. Mas por quê?

Para Agostinho, o pecado original nos leva a derivar prazer gratuito do desafio à autoridade. A maior autoridade é Deus. Além disso, ele não queria passar vergonha: seus amigos também roubaram as pêras e ele, se não o fizesse, seria tido em menos estima entre seus amigos.

Com isso vemos que o ser humano não precisa de uma boa razão pra fazer o mal aos outros, argumento retomado por Thomas Hobbes, o qual sustenta que o ser humano é, por natureza, antissocial. Assim, muitas vezes escolhemos praticar o mal apenas porque isso nos dá prazer, não por alguma utilidade a longo prazo nem por necessidade. Trágico, não é?

Recomendações.

Das ideias de Agostinho, eu só falei das que eu sei com maior solidez. Ele escreveu mais de trezentos textos e discorrer sobre todas elas requereria, no mínimo, uns seis livros.

O fato de que seres humanos não precisam de boas razões pra praticar o mal é o que deveria nos levar a pensar em meios preventivos, não apenas corretivos, na educação de seres humanos. Tome o exemplo das nossas leis: nenhuma delas tem poder contra intenções, só contra crimes consumados, o que é uma coisa boa pro tipo de medida que elas são. Mas precisamos lembrar que a pessoa que sente que pode se safar e não ser descoberta cometerá um crime, pra bem ou pra mal. Geralmente pra mal. Quem previne é a educação. Mas que tipo de educação? Não é a biologia, a química ou a física que vai ensinar a pessoa a ser alguém íntegro, mas as ciências humanas. Aí se tira fundos da educação, tira a autonomia das ciências humanas e o que acontece? Que geração estamos formando? Triste que nosso governo não pensa no futuro.

Mas a ideia de que a vontade de fazer o mal é comum aos seres humanos deveria servir pra nos aproximar. Ter vontades ruins é normal e você só se torna uma pessoa ruim se você praticar atos ruins. Então, se você tem vontade de fazer algo que sabe que não deveria fazer, saiba que eu também passo pela mesma coisa e que todo o mundo também passou por isso ou ainda vai passar. Faz parte da natureza humana. Você só precisa sentir culpa por seus atos, nunca por suas vontades, especialmente porque você as não escolhe.

20 de outubro de 2020

Circuncisão.

Filed under: Saúde e bem-estar — Tags:, , — Yure @ 13:23

Um amigo meu estava assistindo uma transmissão ao vivo de um artista filipino de quem ele gosta. Durante a transmissão, o artista mencionou que foi circuncidado aos sete anos e não tinha gostado nada. Outros filipinos do chat da transmissão partilharam o mesmo sentimento. Aos sete anos, você é capaz de memória faz tempo e essa seria uma experiência inesquecível, não no bom sentido. A parte que deixou meu amigo perturbado foi quando o artista e os outros filipinos do chat mencionaram que a circuncisão deles não foi motivada por razões religiosas ou médicas, mas por um costume prevalente nas Filipinas, como os furos que se fazem nas orelhas das meninas no Brasil, a fim de que elas possam usar brincos.

Meu amigo, que é circuncidado, ficou com tanto nojo daquela história que passou mal. Ele começou a pesquisar sobre o assunto e resolveu virar um intactivista. O “intactivismo” é a ideia de que a circuncisão, como fenômeno cultural, deve ser abolida. A única razão lícita pra circuncidar um menino seria por grave deformidade peniana. Então meu amigo resolveu usar seu canal no Youtube pra defender essa causa.

Na tentativa de ajudá-lo, eu resolvi mostrar alguns argumentos contra a circuncisão por aqui também. Não que isso faça algum sentido pra minha audiência principal, que é brasileira, visto que a circuncisão por aqui não ocorre por “tradição”. Mas, pra deixar o cara mais feliz, por que não?

Razões físicas.

O prepúcio é bastante sensível ao prazer. Por causa disso, o sexo é mais prazeroso pra pessoas que o têm. Sem o prepúcio, o homem precisa fazer movimentos mais intensos pra chegar ao orgasmo. Um dos amigos do meu amigo circuncidou o filho dele pra que o garoto “durasse mais tempo na cama”. É verdade, a pessoa circuncidada realmente dura mais tempo na cama porque é menos sensível ao prazer. Também por essa razão, o sujeito precisa se mexer mais rapidamente e com mais intensidade durante o sexo, o que o torna mais “selvagem”. As mulheres curtem isso. Mas pense um pouco: você faria uma mudança permanente no corpo do seu filho pra que ele possa dar mais prazer à mulher, às custas do próprio prazer? Você não acha isso nem um pouco humilhante? Além disso, tal decisão, a de circuncidar o filho, é tomada pelos pais, que não viverão a vida sexual do filho em lugar dele. Isso me soa uma desnecessária intrusão na vida sexual do filho, quando ele ainda é um bebê.

É certo que o prepúcio torna o homem mais vulnerável a algumas doenças sexualmente transmissíveis. Então, nos tempos bíblicos, era uma vantagem circuncidar um menino, já que a medicina era muito limitada e não existia camisinha. Hoje, é possível evitar doenças sexualmente transmissíveis através da boa higiene, do bom cuidado com o corpo e do uso de preservativos. Logo, a vantagem física da circuncisão pode ser obtida pela prática segura do sexo e de uma higiene em dia.

Ademais, nos tempos bíblicos, não havia fraldas. As fraldas são usadas pelos pais pra conter os excrementos da criança enquanto ela não aprende as convenções do uso do banheiro. Uma criança recém-circuncidada que é posta numa fralda expõe as marcas da cirurgia às bacterias que lhe infestam as fezes. Isso provoca inflamação, ardência e retardo na recuperação da cirurgia. Pra ser justo, porém, existem métodos pra evitar isso.

Por último, a circuncisão é uma cirurgia de remoção. Mesmo que ela seja bastante segura, ela não é livre de possibilidade de erro, seja pela perícia do médico, seja por uma reação inesperada no corpo do paciente, ou até por razões fora do controle dos dois. É possível morrer em decorrência de uma circuncisão mal feita. A chance é muito baixa, mas, se acontecesse com seu filho, de que valeriam as estatísticas?

Reflexão sobre a moralidade da circuncisão.

Circuncidar um menino é fazê-lo passar por um procedimento que não é completamente reversível (um prepúcio restaurado não é exatamente igual ao prepúcio natural). Isso é normalmente feito sem o consentimento do menino. E se, no futuro, ele concluir que a vida dele teria sido melhor se a circuncisão não tivesse ocorrido? Os pais agem imoralmente ao fazer a circuncisão no filho, na medida em que o fazem sem necessidade, porque impõem ao corpo do filho uma modificação que ele não poderá desfazer ao chegar à idade da razão. Se não houver necessidade médica, deixe como está. Ele decidirá, na idade adulta, se quer ou não passar pelo procedimento. Passar por cima desse preceito é abuso (ou deveria ser considerado abuso). Depois apontam pra certos grupos, dizendo que os monstros são eles, quando abuso físico infantil ocorre com mais frequência e é mais pernicioso.

Circuncidar sem necessidade é circuncidar pelo luxo, pela “aparência”. É um absurdo fazer uma criança passar por um procedimento invasivo por questões de aparência, procedimento que ela provavelmente não escolheria se fosse oferecido a ela. É como furar a orelha da menina quando ela ainda é um bebê, pra que ela seja introduzida ao uso dos brincos. Eu nem sou feminista e sempre fui contra isso. Modificações frívolas no corpo devem ser uma escolha da criança, não dos pais dela.

E quanto à religião?

Eu abro uma exceção à religião porque, enfim, a fé é um sentimento. Como todo sentimento, não há argumento que afete a fé, na medida em que o fiel tem uma fé forte. Mas, de um ponto de vista estritamente cristão, a circuncisão não é necessária. É verdade, Jesus disse que a Lei é pra sempre, mas a Lei foi dada aos judeus (tanto que Jesus, sendo judeu, foi circuncidado), não aos “gentios”, como se chamava na época os que não eram judeus. Por causa disso, a igreja de Jerusalém, formada logo após a subida de Jesus ao Pai, emitiu um decreto exonerando os gentios da observação da Lei de Moisés, embora também deixasse recomendado a abstenção do consumo de sangue, do consumo de animais mortos por sufocamento, da fornicação e da idolatria (Atos 15:1-20).

Concluindo.

Gosto bastante do meu amigo ter se tornado intactivista e ter se apaixonado por tal causa. Eu não sei se eu posso me considerar um intactivista já que eu nunca fiz ativismo por causa disso. Este texto é o único que produzi sobre este assunto. Mas é uma boa causa pela qual lutar. Espero ver mais sobre este assunto no futuro, no Brasil e fora dele. Lembrando que o que acabo de escrever diz respeito à circuncisão sem razões médicas ou religiosas. Claro que, se você tiver fimose ou uma inflamação recorrente, você vai ter que remover o prepúcio. Mas essas são condições raras. Nesses casos, compensa circuncidar.

9 de junho de 2020

Tolerância religiosa.

Esses dias, eu estava lendo um hentai. Daí eu percebi que um dos artistas da antologia havia parado de desenhar pornografia ano passado, depois da publicação da antologia. Eu fui então conversar com ele sobre isso, sobre suas razões de ter parado. Ele disse que desenhar pornografia estava em desacordo com seus valores religiosos. Ele é testemunha de Jeová. É o segundo japonês testemunha de Jeová que eu conheço (e que deixou de desenhar pornografia).

Sempre que alguém faz alguma coisa como essa, eu tendo a questionar. Mas, se a razão é religião, eu sempre aceito imediatamente. Porque qualquer um aceitaria fazer qualquer tipo de sacrifício ou adotar qualquer tipo de comportamento se isso lhe proporcionasse a vida eterna. Então eu elogiei a decisão dele, disse que respeitava e deixamos por isso mesmo, como deve ser. Mas aí, eu fiquei pensando: eu aceito muitos comportamentos motivados pela fé, mas haveria algum limite?

John Locke, em sua Carta Sobre a Tolerância, dá alguns limites à tolerância religiosa. O comportamento religioso deve ser sempre tolerado, quando não posar problemas ao estado (isto é, ao governo ou ao povo), quando os cultos forem públicos (é muito estranha a religião que não quer que as autoridades saibam o que é feito nos templos) e quando a religião em questão não busca influência política (o que poderia tornar preceitos de fé em leis, válidas até pra quem não quer seguir tal religião). Eu poderia resumir tudo isso como: uma religião é sempre aceitável desde que o comportamento de seus fiéis não interfira com o meu próprio sem meu consentimento. Assim, uma religião que ordena o suicídio de seus membros não seria algo a que eu me oporia, mas uma religião que ordena o assassinato de não-membros seria algo contra o que eu resistiria.

Aí eu pensei: e como o estado deveria se comportar em relação a isso? Em nível estatal, visto que todas as religiões podem assumir um caráter violento, é preciso que uma religião, antes de ser proibida em determinado território, tenha um precedente de ato violento motivado pela fé. Se o ato tiver realmente sido motivado pela fé, o estado deve dar um direito de resposta aos outros fieis, pra sabermos se o ato é inerente à religião, caso no qual a religião deveria ser proibidia, ou é resultado de uma interpretação particular de um texto sagrado, por exemplo, caso no qual somente o fiel maluco seria responsabilizado. Se isso não for feito e religiões forem banidas “antecipadamente”, fere-se o direito à liberdade de culto. Apenas religiões inerentemente violentas deveriam ser proibidas.

Depois de eu lembrar dessas coisas que o Locke mencionou e adaptá-las um pouco, eu concluí que há um limite à minha tolerância e esse limite deveria ser adotado por todos inclusive por uma questão de bom senso: deixe em paz as religiões que não prejudicam você. Tá todo o mundo querendo se salvar aqui, então deixe cada um seguir o caminho que quiser, desde que esse caminho não atrapalhe o seu ou a sua vida material.

6 de março de 2016

Paulo.

Filed under: Livros, Organizações, Saúde e bem-estar — Tags:, , , — Yure @ 18:27

Como vocês já sabem, este diário é bem pessoal. Desde o início, a religião foi um tema tão presente aqui quanto, por exemplo, parafilias, filosofia e arte. Isso porque, no começo, eu tinha muito medo da morte e aquilo que me aproximou da religião em primeiro lugar foi o medo da morte. Eu sempre fui uma pessoa compreensiva e pensei que ganhar a vida eterna sem mudar muito de minha atitude era uma proposta tentadora.
Eu pensei em me tornar testemunha de Jeová, até eu ler o livro Jovens Perguntam: Respostas Práticas, que tocava um assunto muito sério de maneira muito leviana. Quando eu conduzi uma pesquisa nesse assunto por conta própria, percebi que eu estava muito melhor sozinho.
Pensei que talvez eu fosse mais feliz lendo a Bíblia por conta própria e praticando o que eu aprendi, já que a igreja que mais atraía no dia em que pensei essas coisas havia me decepcionado grandemente. Mas não foi fácil e, após duas tentativas, desisti.
No segundo semestre do curso de filosofia, eu aprendi, durante a aula de ética, que a Bíblia era, na verdade, uma seleção feita em âmbito intelectual por convocação de um tal Constantino. Embora eu não acreditasse que livros que continham ensinamentos legítimos tinham ficado de fora da Bíblia, eu pensei que livros ilegítimos poderiam ter se esgueirado na seleção. Isso, alimentado por dúvidas sobre como a religião do amor poderia se mostrar tão intolerante dependendo do referencial doutrinário, me levou a escolher quais livros eu iria seguir (afinal, se um grupo medievo pôde, também eu poderia). Partindo do pressuposto que ser cristão é seguir Cristo, eu pensei que os Evangelhos seriam o bastante. E, de fato, Cristo é a maior autoridade do cristianismo. E, por anos, eu vivi tendo somente os Evangelhos como regra de vida e vivi muito bem. Como consequência, eu rejeitei sumariamente todas as epístolas de Paulo, que também ensinavam coisas que Cristo não havia ensinado. Na época, eu não sabia que o Apocalipse também tinha ensinamentos diretos de Cristo, mas isso não fez muita diferença.
Certa noite, resolvi atender a uma reunião das testemunhas de Jeová e o líder religioso (não sei se é lícito chamá-lo de “pastor”, porque as testemunhas usam outro termo, “ancião”, se não me engano) mencionou que a Bíblia inteira tinha muita sabedoria. Eu estava fazendo anotações de obras filosóficas na época, como faço ainda hoje, e pensei que talvez fosse uma boa ideia fazer o mesmo com a Bíblia, mesmo que eu não fosse aceitar tudo como regra de salvação.
Dividi a Bíblia em dez partes e me propus a ler um capítulo de cada parte por dia, para conciliar velocidade de leitura com energia e força de vontade (lê-la cronologicamente pode ser exaustivo, sendo melhor que o primeiro contato seja feito numa ordem oportuna).
As anotações não estavam sendo feitas, porque pensei que eu falaria menos besteira se eu lesse ela totalmente antes de fazê-las, que seria feito numa segunda leitura, em ordem cronológica. Paralelamente, Echo, o morcego, estava passando por uns problemas com a mãe dele, que estava sendo insensível, já fazia um mês mais ou menos: a avó dele havia acabado de falecer e a mãe dele não entendia seu sofrimento. Além do mais, ela não achava saudável que ele tivesse amigos como eu e o colocou na terapia, na qual ele começou tratamento para consertar sua urofilia, algo que ele não achava errado, mas que sua mãe e seu terapeuta concordavam que era. Sabendo desses problemas, eu fiz uma oração por ele, a qual foi (surpreendentemente, admito) atendida na manhã seguinte. A mãe havia mudado seu parecer, o deixou voltar a se relacionar comigo e meus amigos e o havia tirado da terapia. Eu fiquei estupefato. Minha oração havia sido atendida subitamente e de forma melhor do que eu havia pensado. E não havia sido a primeira vez, mas a segunda.
Parei meus planos e comecei as anotações imediatamente, reiniciando minha leitura da Bíblia, como forma de agradecimento (porque eu acredito que as obras têm maior peso que a fé).
A leitura e o fichamento foram concluídos em um mês e meio, a partir da Almeida de 1819 (com auxílio da Almeida Recebida, da versão dos Capuchinhos e da Bíblia Livre, todas obtidas no repositório do Crosswire, acessível pelo Sword com a interface Xiphos, obtenível no repositório do Linux Mint), porque foi a primeira em português em volume único, de forma que eu pudesse, nas leituras subsequentes, perceber a evolução das traduções. E, de fato, a Bíblia inteira tem muita sabedoria. Nessa leitura, desenvolvi um apreço por dois conceitos hoje em crise: inerrância bíblica e cânon bíblico.
Como cristão, o Novo Testamento tem um peso gigante pra mim. E as epístolas de Paulo me intrigaram, não de forma positiva. Muitos ensinamentos de Paulo, tal como alguns aspectos de sua atitude, parecem ir contra os ensinamentos de Jesus. Eu pensei que talvez fosse uma falha de entendimento de minha parte e pensei que Paulo, sempre que introduzia algum preceito que Jesus não havia introduzido, estava somente dando conselho, tal como Salomão faz com os Provérbios, de forma que seguiria o conselho quem quisesse. Então, Paulo não seria necessário à salvação, visto que Jesus seria o único caminho. Mas aí Paulo diz que os homossexuais, por exemplo, não herdarão o Reino. Aí que surge o problema: se Paulo nunca viu Jesus, passou pouco tempo com os apóstolos, supostamente herda sua doutrina desses apóstolos e prega que o cristão está desobrigado da Lei de Moisés, com que autoridade ele diz essas coisas?

Antes que se pense que esse é um problema pequeno, é importante mostrar por que ele é enorme: essa pergunta ataca a autoridade de Paulo e, consequentemente, os dois conceitos que eu havia acabado de adotar, a saber, a inerrância (a Bíblia não se contradiz) e o cânon (todos os sessenta e seis tomos de que a Bíblia é composta são divinamente inspirados).
Existem outras contradições, quer sejam aparentes ou não, que levam à práticas hediondas na igreja, não apenas da perseguição aos homossexuais, mas também como a prática da dissociação entre as testemunhas de Jeová. Paulo diz que não devemos nos associar com pecadores, mas Jesus o fazia com frequência durante seu ministério. Se levarmos esse raciocínio até suas últimas consequências, Paulo estaria repreendendo o comportamento de Jesus, o qual disse que deveríamos imitá-lo. Depois da leitura completa, fiquei tão perplexo que resolvi pesquisar se mais alguém pensa como eu. Pra minha surpresa, um punhado de estudiosos, tanto do passado como da atualidade, pensam da mesma forma. Para citar apenas um exemplo do nosso país e da atualidade, para que o interessado tenha um ponto de partida, Fábio toca o assunto vez por outra em suas lições de hermenêutica. Mas é claro que não é o primeiro e nem é o único.
Esse é um assunto que requer mais pesquisa da minha parte, porque é algo muito sério. Não estou dizendo que Paulo é completamente inútil ou pernicioso e acho que encarar o que ele diz como conselho e não como regra de salvação é razoável. Não obstante, não me parece que Paulo tem qualquer autoridade para fechar as portas da salvação para qualquer indivíduo, porque esse é direito divino. Paulo repreendeu Pedro, o que mostra que nenhum ser humano, mesmo que seja apóstolo, é irrepreensível. Então, há a possibilidade de Paulo ter errado. Porém, eu não posso confirmar absolutamente nada por enquanto.
Isso me dá algo pra estudar durante as férias da universidade. A defesa da minha monografia é amanhã, espero que dê certo.

23 de outubro de 2011

Nós criamos muitas regras ao redor da sexualidade.

Filed under: Saúde e bem-estar — Tags:, , , — Yure @ 13:03

Eu tinha dezesseis anos.

Minha mãe, testemunha de Jeová, havia me dado um livro chamado “Jovens Perguntam: Respostas Práticas”. Eu até que estava gostando do livro até chegar a um capítulo relativamente delicado: masturbação. Nunca fui o tipo de indivíduo que acredita em tudo o que ouve e, levando em consideração como o livro tratava o assunto, senti que aquilo estava incompleto e fugidio dos textos bíblicos citados como referência. Resolvi buscar respostas eu mesmo.

Precisei de muita força de vontade para digitar no Google, entre aspas, “masturbação é pecado”. Eu estava com medo de descobrir algum argumento que derrubasse minha crença de que masturbação era uma prática inocente e sem riscos. Eu tinha muito mais fé naquela época, acreditava que Deus era realmente um indivíduo pessoal que me escutaria e me atenderia se eu andasse dentro de seus princípios, então eu rezava antes de pesquisar para manter minhas bases fortes e não acreditar na palavra de qualquer um.

Coletei textos e textos, chequei referências e referências, refutei refutações e, em três meses, o maior texto que eu já digitei estava pronto. Um ano mais tarde, redigi uma versão condensada em inglês, uma vez que eu já havia me tornado ávido visitante de sites estrangeiros.

Uma coisa me intriga até hoje: qualquer um com um pingo de bom senso chegaria à mesma conclusão que eu cheguei, então como tem tnta gente que acredita que a masturbação é pecado? Ou a homossexualidade? Ou parafilias (das quais eu tenho umas quatro)?

Lendo a respeito, vejo que o sexo fazia muito mais sentido antes da Idade Média, com leis sobre igualdade e punição contra abusos. Era uma prática como qualquer outra, não havia motivos para punir demonstrações de sexualidade, embora punissem abusos porque era uma forma de violência. Ou seja, era necessário consenso, seja entre homens, mulheres, casais e por aí vai. Acho que o desprezo do corpo começou na Idade Antiga também, com a crença de que o corpo era uma prisão para a alma, atrapalhando-a em suas atividades intelectuais. A razão começou a sobrepujar necessidades corporais.

Com a vinda de Jesus, fomos encorajados a deixar algumas práticas sexuais de lado. Seus discípulos, principalmente Paulo, levaram isso um pouco longe demais. Os mandamentos entregues por Jesus não deveriam ser pesados, mas, aparentemente, Paulo recebeu influências de pensadores gregos da época, como epicurismo e estoicismo. Com que autoridade digo isso? Meus professores de ética me disseram isso e, olhando bem, há vários traços dessas disciplinas nos ensinos de Paulo. E alguns não aparecem nos Evangelhos. Digo, Paulo condena a homossexualidade, sendo que Jesus, ele mesmo, nos Evangelhos, nunca disse uma palavra contra os homossexuais. De onde Paulo tirou isso?

Eu ainda tenho muitas perguntas e poucas respostas a respeito disso, mas a Igreja importou certos conceitos da filosofia grega. E aí começou a grande dicotomia sobre masturbação ser ou não pecado. Santo Tomás de Aquino, num belo dia, resolveu refletir sobre sexo. Chegou a conclusão de que, sendo sexo uma coisa feita por Deus para reprodução e povoamento da Terra, quaisquer outras formas de sexualidade vão contra o propósito deste. Assim, masturbação e sexo que não visa reprodução vira pecado. Mas note que isso é pensamento de Aquino. A Bíblia é preto no branco, você não reflete, você faz. Não tem que refletir sobre sexo, não tem que refletir em religião.

Jesus entregou os ensinamentos de Deus para serem seguidos, não para se pensar sobre eles, do contrário não seriam ordens e sim sugestões… de ação… de Deus para os homens. Ridículo. Tudo isso começou porque alguém resolveu refletir e discutir o que não pode ser refletido nem discutido. Paulo, Aquino e agora todos aqueles que levam as bases divinas ao extremo com leis que não salvam ninguém tinham ou têm boas intenções (algumas vezes), mas estão fazendo errado. Se estivessem fazendo certo, não teríamos pessoas sexualmente hipócritas que dizem não praticar parafilias, mas as praticam em segredo porque não podem evitar; se estivessem fazendo certo, não teríamos jovens ficando deprimidos e sentido-se culpados até a morte porque não conseguem parar de se masturbar, o que é natural; se estivessem fazendo certo, não teríamos preconceitos com aqueles de caminhos sexuais diferentes, o que está em total desacordo com a ordem de amar ao próximo como a si mesmo.

Regras demais e poucos seguidores de fato. Na minha opinião, estamos no caminho errado.

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