Continuando a leitura de: Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche), Aurora (Nietzsche) e A arte de escrever (Schopenhauer).
Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.
Se Nietzsche identifica o bem com a força e com a potência, então virtudes só podem ser aquelas que servem aos nossos propósitos. Virtude, pra Nietzsche, é qualquer coisa que facilite minha busca por ser o melhor e mais elevado homem possível. Isso casa com a sua observação de que virtudes e vícios variam de culturaa cultura. Por exemplo, antigamente, na época trágica dos gregos, a inveja era uma virtude e a esperança era um vício. Se virtude e vício podem ser julgados culturalmente, por que não pessoalmente?
Uma dessas virtudes de época é o desinteresse. Nietzsche afirma que o desinteresse é, na verdade, prejudicial e talvez inatingível. Todos aqueles que se sacrificam o fazem por um “bem maior”. Isso é interesse e ninguém se sacrificaria se esse bem maior não compensasse o sacrifício. Se você faz algo sem interesse, o fará mediocremente. É preciso querer algo com aquilo. Até mesmo o amor é interesseiro. No entanto, o interesse não torna o amor menos nobre. Na verdade, um amor desinteressado provavelmente não é amor, mas algo que esbarra na moral enquanto deseja se tornar amor.
Meninos brincando durante o banho de Vênus: uma alegoria do amor. Autores: Jan Brueghel e Pieter van Avont. Fonte: Wikimedia Commons.
Vendo que tais ideias modernas não trazem felicidade, a maioria dos homens as abandona em seu coração, mesmo que não publicamente, e adota uma moral nova, pessoal, secreta. Com o tempo, a coisa fica pública e a moral de um povo começa a mudar pra algo mais vantajoso. É preciso saber se adaptar. E um sinal dessa adaptação é o olhar franco para o passado do próprio povo e o olhar para outros povos. Isso nos leva a ver como as coisas poderiam ser diferentes. Se nosso “bom gosto” não for o melhor, o que nos deixa mais felizes, então dane-se nosso “bom gosto”. Observe que a felicidade de Nietzsche não é a felicidade de Epicuro, porém…
Na prática, sempre foi assim. Sejamos francos: a moral de um povo representa o que tal povo acha vantajoso. A moral não é algo, tipo, acima do homem. Por causa disso, um moralista é sempre um cara como qualquer outro que quer parecer ser mais que os outros. Aliás, ele é perigoso também: já reparou como um moralista, quando comete uma falta moral, culpa todo o mundo por isso, menos ele mesmo? Coisa chata deve ser ter um amigo moralista.
Aliás, o moralista é provavelmente pior que a média humana. Condenar os outros é apenas a forma dele de descarregar a frustração que sente por se perceber inferior, seja em beleza, em inteligência, sucesso ou santidade. Ele só tem sua moral e só pode usar ela pra se sentir bem. É tipo o estereótipo brasileiro: é fanático por futebol porque tem a impressão de que não é capaz de desempenhar bem nenhuma outra tarefa (o que não é verdade e as pessoas deveriam parar de dizer que o Brasil não presta pra nada). Então, se uma pessoa é feia, burra, pobre, pecadora (mesmo que só secretamente) e tem somente sua moral como qualidade redimidora, ela será um moralista, pois se aferrará a sua moral pra compensar todas as faltas que tem e a usará pra tentar ser melhor que os outros. Uma espécie de vingança.
A arte de escrever.
Se Schopenhauer fosse vivo, ele ficaria escandalizado com a ideia de que trabalhos acadêmicos precisam de referências bibliográficas. Pra Schopenhauer, a prática de citar outros em vez de emitir seu próprio julgamento é similar a atitude de um cidadão que ouve e segue silenciosamente leis com as quais ele pessoalmente discorda. Por outro lado, o sujeito que põe os outros autores abaixo de si é como um monarca que cria suas próprias leis.
Isso não quer dizer que não se deva citar, mas que uma pessoa não deve usar o trabalho já publicado sobre determinado assunto como substituto de seu próprio pensamento. Se você não julga o que você lê, não produzirá conhecimento novo. Na verdade, talvez só consiga ficar confuso quanto a quem acreditar, porque a multidão de pensamentos conflitantes soa como ruído ao cérebro. Algumas pessoas tentam remediar isso se limitando a repetir apenas as opiniões mais recentes, mas não há garantia de que as opiniões mais recentes são necessariamente melhores.
Fonte dos Seis Meninos. Foto de Pere López. Fonte: Wikimedia Commons.
O ideal é que você seja capaz de julgar o que você lê e o que você vive, a fim de emitir o seu julgamento sobre algo. Do contrário, você usará o fato de algo ter sido publicado num livro como prova de que algo é verdade. Isso não quer dizer que Schopenhauer é inimigo da leitura, muito menos da escrita: se você tem um pensamento que você valoriza, deve escrevê-lo pra perpetuá-lo, mas tenha em mente que tanto haverá quem o tome como palavra do evangelho quanto haverá pessoas que pensarão que você não sabe do que você fala, mesmo que você saiba. Em suma: você deve julgar o que você lê, mas também deve escrever o que você pensa.
Outra razão pra escrever o que se pensa é que isso gera os melhores escritos. Quando você escreve aquilo que genuinamente interessa a você, o texto será digno de ser lido, pois contém algo que uma pessoa realmente acha importante comunicar. Por outro lado, existem os que escrevem apenas por dinheiro e pra manter suas carreiras. São os que escrevem, por exemplo, artigos noticiários sensacionalistas, livros que só servem pra concordar com quem vai comprá-los e outras literaturas de baixo nível. Se não houver escritores sinceros pra competir com esses sujeitos, a inteligência média das pessoas vai cair e a humanidade ficará mais burra.
Pra Schopenhauer, isso pode ser resolvido tornando a escrita um ofício pouco lucrativo. Se a escrita, assim como a política, for algo que possa tornar alguém milionário, um grande número de pessoas entra nesse jogo visando apenas ganhar dinheiro e não contribuir com o crescimento do homem e da sociedade. Isso ocasiona a proliferação de maus livros. Assim, os bons livros são identificados por suas prioridades: se o assunto é mais importante que o lucro, você tá escrevendo certo; se o lucro for mais importante que o assunto tratado, você tá escrevendo errado. Além disso, se você valoriza o assunto que está tratando, você pensa sobre ele. Pensar antes de escrever enriquece o estilo do livro. É melhor do que escrever sem pensar e também melhor do que pensar enquanto escreve. Pensar antes de escrever resultará em um trabalho mais claro.
Aurora.
Existe um tipo de pessoa que causa mais mal à humanidade do que todos os criminosos. São os que levam as pessoas a se desgostarem da vida, a sentirem-se cansadas do mundo, não necessariamente a se desesperar da realidade, mas a odiá-la. Essas pessoas não querem que você mude nada no mundo, porque “não vale a pena”, e prescrevem paliativos, que a pessoa toma até ficar doente e morrer, seja literalmente ou só metaforicamente. Também falam contra o autoaperfeiçoamento, pela mesma razão, porque “não vale a pena”.
O ideal pra essas pessoas é deixar o mundo o quanto antes e viver em seus mundinhos, esse atalho pra felicidade, que desvia a humanidade de seu justo caminho. Se todo o mundo faz isso, não haverá crime que seja capaz de causar mais estrago à humanidade, pois ela se deteriorá legalmente. Mas Nietzsche não valoriza a liberdade? Sim, mas a liberdade por acaso não cai bem com o domínio, com a força e com o progresso próprio? A liberdade usada em prol da mediocridade é uma declaração de fracasso.
Teoria lunar de Cláudio Ptolomeu, em cores velhas. Fonte aquie aqui. Também no Wikimedia Commons.
Mudando de assunto, Nietzsche fala sobre como o século dezenove estava perdendo o medo do Inferno, em grande parte por causa da influência protestante e pelo avanço da ciência, mas nem por isso havia deixado de lado modos cristãos originariamente concebidos pra evitar a entrada no Inferno. Não é estranho?
Embora Nietzsche diga isso, eu tenho minhas teorias sobre por que as pessoas, mesmo deixando de temer o Inferno, continuavam adotando comportamentos cristãos: esses hábitos podem ser bons em si mesmos. Amor ao próximo, por exemplo. Com ou sem Inferno, esse não é um valor que vale a pena cultivar? Amar ao próximo como a si mesmo, certamente um preceito melhor do que amar ao próximo como ele se ama. Além disso, há quem se sente feliz com a religião, o que o próprio Nietzsche afirma ao falar dos padres que vêm de família nobre: sentem tanto o prazer da obediência quanto o prazer do domínio. Essa felicidade aristocrática é embrutecida pela reforma protestante. Não que a constatação desse fato torne Nietzsche um defensor da religião, a qual, pra ele, é a opinião pessoal elevada ao grau de revelação divina. Na idade média, todos queriam ter a habilidade de ter essas revelações, de “ver” essas coisas. Tal busca levou muitos à loucura.
Continuando a leitura de: Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche); Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud); Arte poética (Aristóteles); A Bíblia Sagrada (Jehovah); O anticristo (Nietzsche); Antologia ilustrada de filosofia (Ubaldo Nicola); A arte de escrever (Schopenhauer); Assim falava Zaratustra (Nietzsche); Aurora (Nietzsche).
Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche).
Nietzsche aponta que, já em sua época, havia uma tendência a considerar a ciência como mais importante que a filosofia. Pra ele, isso acontece por uma variedade de razões, mas principalmente porque os filósofos de sua época acabavam, com seus livros, inspirando desprezo pela filosofia. Imagine uma mulher lendo Parerga e Paralipomena, de Schopenhauer, o quão absurdo ela iria achar aquilo. Nietzsche afirma, apesar de sua reverência por Schopenhauer, que o ciúme que Schopenhauer tinha de Hegel acabava por ferrar a recepção de sua obra.
Parece que os filósofos mais bem quistos na academia da época de Nietzsche eram justamente os mais inúteis e complicados (dentre os quais não estava Schopenhauer). Também os mais imparciais, sem objetivos, “desinteressados”, a quem Nietzsche compara com vasos sem conteúdo. Dentre esses desinteressados estavam os céticos conservadores da época, os quais odiavam qualquer resposta definitiva a qualquer pergunta. Por quê? Porque certezas mudam o status quo. Se você duvidar de tudo quanto se apresenta de novo, se você se abstém de julgar, você trabalha pra que as coisas não mudem. É um ceticismo estratégico, disfarçado na separação entre o pensamento e a ação (em conceitos como “pensamento puro”).
Margarida Trip, como Minerva, instruindo sua irmã, Anna Maria Trip. Autor: Ferdinand Bol. Fonte: Wikimedia Commons.
Uma filosofia dessas, especialmente quando também se pretende ser algo de “elevado”, inspira desconfiança em qualquer cientista ou aspirante a homem da ciência. Não deveria ser assim. A opinião que os não-filósofos têm da filosofia é quase a opinião que eles têm do eremita ou de um guru good vibes. Isso é totalmente errado, mas devemos culpar os vulgos por terem essa impressão ou a nós mesmos por darmos a eles motivos pra isso? Mas isso não quer dizer que os cientistas estão livres de reprimendas, nem por parte de filósofos e nem de leigos. A ciência passa de si uma imagem de fria e apática, de competição rancorosa entre os que dela participam e até de mediocridade, quando um determinado cientista, por ter um trabalho que foge demais dos trabalhos comuns, acaba por precisar ser sustentado por outros. Isso se relaciona à mediocridade porque o cientista passa a fazer apenas o que é minimamente necessário pra receber seu pagamento.
Nietzsche então muda de assunto pra falar que também nossa gratidão deve ser limitada. Se você não sabe dosar sua gratidão, será escravo de qualquer um que te fizer um favor. Na verdade, Nietzsche já menciou isso anteriormente no livro, sobre como as pessoas se aproveitam da gratidão dos outros pra levá-las a agir contra seus próprios interesses. É o que acontece hoje com o pagamento do auxílio emergencial: quem receber, fica grato ao cara que permitiu que maio de 2020 se tornasse o mês onde mais mortes ocorreram no Brasil. E a coisa vai ficar pior, mas, por causa dos seiscentos paus… Existem virtudes pelas quais se paga caro. Por isso saiba quando negar sua gratidão. Saiba quando confrontar seu país com o que há de mais perigoso a ele: a revolução interna.
Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud).
Embora Freud admita que sua teoria acerca dos instintos é limitada e provisória, deixando várias pontas soltas na teoria do princípio do prazer, ele afirma que tal teoria não deve ser totalmente rejeitada só por causa disso. Existem teorias concorrentes pra explicar o mesmo fenômeno e cada um deveria ficar com a teoria que melhor resiste às críticas. Mesmo que não tenhamos certeza do que estamos pensando, dizendo ou fazendo, é certo que existem opiniões melhores que outras.
Logo, o fato de uma pessoa aparecer com uma hipótese ainda não provada não garante que essa pessoa está errada, mas também não garante que sua hipótese tem o mesmo valor que outras teorias concorrentes. Essa competição entre pensadores revela quais são os melhores. E, se você estiver errado, se retrate. Ciência não é catecismo e nem religião. Nada na ciência precisa ser dogma. Não há nenhuma vergonha em um cientista admitir que errou, mesmo que isso implique uma reação em cadeia que leve vários outros que basearam seus trabalhos num erro a também se retratarem. Com isso, termina Além do Princípio do Prazer, e começa Psicologia de Grupo, onde Freud analisa a influência do pertencimento a um grupo ou relação social sobre o ego.
A psicologia de grupo difere da psicologia individual porque não considera a mente do homem como indivíduo, mas como membro de um grupo específico. Ela não estuda eu ou você especificamente, mas nos estuda como parte de uma nação (brasileiros), como parte de um sexo (macho humano), como parte de uma classe (professor), como parte de uma família (filho, irmão). A função da psicologia social é estudar as influências do pertencimento a um grupo sobre a mente de indivíduos, tendo um alcance, por isso, mais pervasivo. A necessidade de uma psicologia social surge com a pergunta: por que determinadas pessoas agem de modo diferente quando estão em um grupo? Algumas ideias só surgem quando a pessoa se encontra com seu grupo. Já outras ideias que já existem na pessoa só encontram expressão em um grupo. Separado do grupo, a pessoa volta à normalidade. Por que isso acontece? Porque uma pessoa pode agir de um jeito sozinha e de outro jeito quando se sente parte de um grupo? A psicologia individual não basta pra responder isso satisfatoriamente.
Citando Le Bon, Freud explica que uma das razões pelas quais a pessoa age de um jeito sozinha e de outro jeito quando parte de um grupo é o fato de que uma associação humana é mais poderosa que um homem só. Quando você está num grupo violento, você se sente empoderado pra satisfazer suas próprias tendências violentas, se estas se coadunam com a índole do grupo. Exemplo, suponhamos que você passe na frente do Supremo Tribunal Federal todos os dias. Você odeia aquela corte, mas não faz nada porque teme punição. Agora, você descobre que tem um grupo plenejando um ataque à corte. É sua chance de satisfazer a vontade, porque é mais difícil punir um grupo do que um sujeito em particular. Dependendo do grupo, sentimos que não precisamos nos segurar e algumas tendências que mantemos reprimidas afloram. Isso nem sempre é ruim, mas nem sempre é bom também. Tudo depende do grupo e de qual tendência é habilitada pelo grupo.
Mas existem outras coisas que fazem com que o sujeito mude seu comportamento quando está em um grupo: o contágio e a dissolução. O pensamento de um grupo é mais ou menos homogêneo quanto maior o trânsito de ideias e comportamentos considerados padrão. Cada membro do grupo passa a pensar e agir como seu conterrâneo, porque ele está em um lugar onde suas ideias são aceitas, facilitando que ele aceite outras ideias daquele grupo. Isso geralmente ocorre depois da dissolução: quando você se identifica com o grupo, você se torna o grupo quando está com seus colegas, se sacrificando por ele, agindo em função dele e obedecendo aos ideias dele. Pessoas que se dissolvem num grupo deixam, na prática, de ser quem são. Perdem sua individualidade e agem como um homem só.
Assim, o sentimento de pertencimento a um grupo leva as pessoas a experimentarem empoderamento, contágio ideológico e sugestionabilidade. Essas três coisas tornam o homem uma força ameaçadora quando age em grupo, visando um objetivo comum com seus conterrâneos: sente que nada é impossível ao grupo, mantém a ideologia do grupo homogênea e cada um influencia o outro permanecer na causa. Esses elementos também são observados naquilo que hoje o povo chama de “mentalidade de rebanho“.
Ao falar dos episódios em que uma tragédia pode se dividir, Aristóteles aconselha a variedade. Quando uma peça teatral fica muito uniforme, a audiência acaba ficando satisfeita do assunto tratado. Se o assunto continua, ocorre uma sensação horrível de tédio e tempo perdido. Portanto, ao escrever uma tragédia, ou mesmo uma comédia, dividida em episódios, é preciso que cada episódio seja suficientemente diferente dos outros pra evitar que o leitor ou a audiência fiquem entediados. Um bom jeito de fazer isso é introduzindo pormenores na história que mantenham a atenção do leitor ou da audiência. Tais pormenores podem ser fantasiosos ou pouco realistas. O fantástico pode também ser parte da trama principal. Na verdade, Aristóteles diz que é mais interessante mostrar algo impossível, mas plausível, do que mostrar algo possível, mas incrível. A ficção científica moderna está tão cheia de impossibilidades plausíveis, que algumas de suas “predições” se mostraram bem reais.
No entanto, Aristóteles adverte: uma trama precisa ter apenas o número de passos necessários para que a história seja entregue. Se você pega uma trama pequena e a dilui em vários episódios, cada episódio será insignificante e a trama se moverá lentamente, a ponto de perder a atenção da audiência. Aristóteles pergunta o que seria da recepção de Édipo se ele tivesse o mesmo número de versos que a Ilíada. Para usar um exemplo de otaku, você acha que alguém teria saco pra Neon Genesis Evangelion se este tivesse cinquenta e dois episódios? Você não acha que Appmon seria melhor em formato de vinte e seis episódios (o que removeria todos os fillers)? Assim, se a história que você tem mente for melhor apresentada em formato curto, não a espiche: quanto mais longa a história, mais facilmente a audiência se entedia.
Alegoria da poesia lírica. Autor: François Boucher. Fonte: Wikimedia Commons.
A poesia na época de Aristóteles tinha como objeto a vida das pessoas ilustres do passado ou do presente. Então, ao escrever uma poesia trágica ou comédica, o autor tinha três opções: escrever em verso a realidade, escrever em verso a percepção popular sobre a realidade ou escrever em verso aquilo que deveria ser real (mas não é). Se fôssemos adaptar esse critério pra hoje, tempos em que não se faz mais apenas poesia ou prosa sobre pessoas que existem ou existiram, o primeiro caso seria o conto biográfico ou historicamente correto, o segundo caso seria a fantasia “baseada em história real” e o terceiro seria uma história totalmente original.
Disso decorre que a verdade é mais necessária a certos estilos de poesia do que a outros (e isso está também relacionado ao uso de metáforas fantásticas em vez de expressões literais), mas, se o objetivo da ficção é entreter, a verdade é um meio que se deve usar ou não dependendo do que você achar que será mais interessante. Isso não é válido somente pra verdade, mas pra todos os elementos do trabalho e de sua encenação: em algumas peças, é preciso gesticular ou dançar, mas não em todas, se isso atrapalhar a recepção da obra. O historicamente correto é secundário. Por causa disso, a poesia trágica, bem como trabalhos de ficção em geral, mostram os homens como melhores do que realmente são. Na ficção moderna, um exemplo extremo disso seria Dragon Ball, onde lutadores de artes marciais detém habilidades absurdas, e um exemplo em menor grau seria Danganronpa. Quando escrevo esses exemplos, eu imagino meu professor de metafísica atrás de mim, me julgando por usar exemplos tão vulgares.
Deus mandou seus anjos para Sodoma a fim de verificar as queixas que vinham de lá. Os anjos entraram na casa de Ló. Acontece então o infame episódio no qual todos os homens da cidade, e talvez também os meninos, tentaram invadir a casa de Ló pra “conhecer” os anjos que ele hospedou. “Conhecer”, neste contexto, é um eufemismo pra fazer sexo. Diante dessa afronta, os anjos cegaram os homens que tentavam invadir, tiraram Ló e sua família daquela cidade, e permitiram que Deus destruísse Sodoma, bem como Gomorra.
Muitas pessoas dizem que a homossexualidade em Sodoma foi a causa da destruição, mas, de acordo com A Profecia de Ezequiel, os pecados de Sodoma foram orgulho, abudância de alimento, insolência e falta de empatia para com pobres e necessitados (Ezequiel 16:49). Se a homossexualidade fosse um problema (numa época anterior a Moisés, logo antes de ser revelada qualquer interdição à homossexualidade), teria sido mero agravante, tanto que A Profecia de Ezequiel diz, várias vezes, que Israel vinha agindo pior que Sodoma e Gomorra, apesar de Israel ter interdições à homossexualidade.
Visão de Ezequiel: um grupo de cadáveres e esqueletos emerge para fora das tumbas e, acima deles, cinco meninos alados segurando uma bandeira. Autor: Giorgio Ghisi. Fonte: Wikimedia Commons.
Após Ló sair de Sodoma, ele estava sem filhos e também sem esposa (porquanto a esposa de Ló virou uma estátua de sal). Assim, não havia como Ló ter um filho macho. Diante desse impasse, as filhas de Ló tiveram uma ideia: embebedaram Ló e se relacionaram com ele. Lembrando: isto foi antes de Moisés, então não havia interdição explícita ao incesto. Dessa união, nasceram Moab e Ben-Ammi.
Finalmente, na velhice, como Deus havia prometido, Sara pariu um filho a Abraão. Esse filho era Isaque. Hagar e Ismael foram então rejeitados e expulsos de casa, por pedido de Sara, embora Abraão tivesse se oposto a isso. Tanto Isaque quanto Ismael foram abençoados, porém. Deus resolveu testar a fidelidade de Abraão ordenando Abraão a sacrificar Isaque, mas, faltando apenas que Abraão degolasse Isaque, um anjo mandou Abraão parar, avisando que era apenas um teste. Mais um pouco e Abraão teria matado seu filho.
Em seguida, na narrativa bíblica, morre Sara e Abraão compra uma sepultura dos filhos de Heth. Em vias de morrer, Abraão proíbe que Isaque se case com qualquer mulher, instituindo uma pessoa que vá buscar uma mulher que valha a pena para que esta se case com Isaque. O servo foi e, com a ajuda de Deus, encontrou Rebeca, futura esposa de Isaque. Rebeca vai de boa vontade, com a aprovação dos pais. Isaque, de quarenta anos, se casa com Rebeca. Como Rebeca era estéril, Isaque teve que orar a Deus pra que Rebeca concebesse. A oração foi atendida. Rebeca pariu gêmeos: Esaú, pai dos edomitas, e Jacó, que mais tarde geraria os patriarcas das doze tribos de Israel (e Diná). Esaú, em sua maturidade, ficou com duas mulheres que davam desgosto aos pais de Esaú e Jacó. Talvez por isso que Rebeca, mãe de Jacó, instruiu Jacó a se aproveitar da cegueira de seu pai a fim de tomar pra si as bênçãos destinadas a Esaú, passando-se por este.
De onde se origina o cristianismo como religião? Pra Nietzsche, responder a esta questão requer a compreensão do judaísmo, uma religião considerada por Nietzsche como superior em termos psicológicos, do qual o crisitianismo é a consequência lógica. O cristianismo não é uma oposição ao judaísmo, mas sua forma completa, ele diz, inclusive citando Cristo: a salvação vem dos judeus. Mas a separação entre cristianismo e judaísmo foi tão aprofundada ao longo da história que existem cristãos antissemitas. Isso é um absurdo: primeiro porque Jesus era judeu e segundo porque o cristianismo é, diz Nietzsche, a consequência final do judaísmo. Têm o mesmo Deus, o Deus da justiça. Com isso em mente, a semelhança entre as duas coisas fica fácil de ver.
Por que o cristianismo é tão popular? Nietzsche afirma que é porque valorizamos o amor e o cristianismo se mostra como a religião do amor. Além disso, ao colocar ênfase na castidade, o cristão internaliza sua religião, pois passa a praticá-la internamente como controle do desejo. Isso põe o cristianismo pra dentro da identidade da pessoa, fazendo com que ela se sinta cristã. O mesmo é feito com outros sentimentos, os quais, porquanto são sentimentos, são subjetivos: fé, esperança e caridade. Colocar o cristianismo pra dentro da pessoa, através do amor e de outros sentimentos, torna o cristianismo popular. Ele se torna parte da identidade da pessoa.
Mas há um problema com o cristianismo e também com o judaísmo. Quando Israel passa a ver em tudo uma recompensa ou punição divina, ele começa a introduzir na lógica causal algo estranho. As causas naturais desaparecem do raciocínio. Eu até mesmo lembro de ter lido em algum livro, não lembro qual, que uma determinada escola de pensadores judeus medievais acreditava que não havia causalidade natural. Se eu acendo uma vela e o fogo ilumina, é porque Deus interfere diretamente na cena assegurando que assim seja. É como se a criação divina não fosse autônoma. Levada a extremos, tal doutrina não chegaria até mesmo a negar a liberdade humana?
Alegoria do livre comércio. Autor: Gerard de Lairesse. Fonte: Wikimedia Commons.
Assim, ver tudo em termos de punição e recompensa é contrário a outras doutrinas. Deus pode intervir, mas ele não intervém o tempo todo. Além disso, ver as coisas dessa forma leva também o fiel a se culpar por tudo de ruim que lhe ocorre (“Deus está me punindo por algo que fiz”), quando existem coisas que claramente não são culpa dele. Isso depõe contra a ideia de ordem moral do mundo: nem tudo o que recebemos de ruim é punição divina por algo que tenhamos feito. Pode ser só um imprevisto, um acaso (Eclesiastes 9:11).
Mas isso não é tudo: ao ver tudo em termos de punição e recompensa divinas, você dá ao sacerdote, que é o intérprete da vontade de Deus, um poder enorme. Não há garantia de que o sacerdote saiba o que está dizendo. Afinal, em algumas igrejas evangélicas populares, basta ser casado pra ser pastor! Ele não está usando o nome de Deus em vão, quando age como um cabo eleitoral? Qual é a garantia de que ele está realmente falando em nome de Deus, e não tentando levar o povo a pensar de um jeito que lhe favoreça?
Se assim é, qual é o uso feito do dinheiro do dízimo (do qual Deus não precisa)? Nietzsche, por isso, chama os sacerdotes de parasitas. Seu trabalho é convencer você a dar o dízimo, porque essa é a “vontade de Deus”, como se Deus tivesse ganância. Isso não é trabalho, mas exploração da fé da população pra ganho pessoal. No entanto, o povo sente que precisa dos sacerdotes pra acessar a vontade de Deus. Isso mantém a aura de indispensabilidade dos pastores e dos padres. A classe sacerdotal talvez nunca será extinta. E, enquanto ela existir, haverá pessoas mal-intencionadas dispostas a fazer do sacerdócio uma carreira lucrativa.
Terminada a seção sobre a escola eleática, Nicola começa sua exposição dos sofistas. Os sofistas faziam do saber uma profissão. São os primeiros professores remunerados da história da filosofia. Eles ensinavam, sobretudo, a retórica. Por quê? Porque a escola sofista também acreditava que não existem verdades absolutas na atividade humana, de forma que tudo é opinião nos negócios humanos. Se tudo é opinião, a mais útil arte que existe é a arte de levar os outros a concordar com você. Por isso a retórica, a arte de discursar bem, era ensinada por eles.
Seu público-alvo eram os jovens que queriam entrar na política. Você não deveria ficar surpreso… As razões pra isso talvez estivessem associadas ao fato de que os sofistas eram também estrangeiros, o que os privava de direitos políticos restritos ao cidadão grego. Se eles não podiam interferir diretamente na política, ao menos formariam aqueles que nela poderiam interferir. Por isso não se deve mandar brasileiros pra estudar no exterior.
Mas então, se não existe verdade objetiva nos negócios humanos, por que nós deveríamos nos dar ao debate ou participar da política? Não seria melhor que cada um simplesmente seguisse seu coração? De maneira alguma. Os sofistas eram professores e acreditavam que a educação tinha seu valor no estabelecimento e propagação de opiniões úteis ao indivíduo e à sociedade. Se tudo é questão de opinião, ainda precisamos da educação pra selecionar as opiniões mais úteis a nós e aos que amamos, não necessariamente a opinião “certa”. Isso está por trás da doutrina do relativismo: se preocupar com útil, o belo, o justo, não necessariamente o verdadeiro, leva cada homem e cada sociedade a adotar leis e costumes diferentes, porque os conceitos de útil, belo e justo variam de pessoa pra pessoa, de naçãopra nação.
Alegoria da justiça e da paz. Autor: Corrado Giaquinto. Fonte: Wikimedia Commons.
Assim, quando você debate com alguém que está convicto de ter razão, você tentar prová-lo errado não surtirá efeito. O que você deve fazer é mostrá-lo que a opinião dele lhe acarreterá consequências ruins. Ou melhor: mostrar como a vida dele melhoraria se ele mudasse de opinião! Nietzsche, mais tarde, retoma este ponto: se você acredita ter encontrado a verdade, a menos que tal verdade se mostre também útil, ela não será crida e estará em desvantagem diante de mentiras as quais, por serem mais úteis, são aceitas como “verdade”. Simplesmente argumentar logicamente não basta. Convencer alguém requer que a pessoa com quem se debate veja que o seu ponto de vista beneficia ela também. Segue-se, portanto, que o orador ou retórico, assim como o médico, deve conduzir uma pessoa obstinada à opinião melhor, não necessariamente a mais verdadeira. A verdade não basta pra convencer uma pessoa. Se bastasse, ninguém teria votado no Bolsonaro.
O meio através do qual os sofistas exerciam seu poder era a palavra, logicamente. Desenvolvendo a arte de retórica, eles faziam umas acrobacias lógicas pra atrair novos discípulos e dinheiro. Górgias, por exemplo, conseguia provar, pela lógica, que nada existe. Mas, se você pagasse ele bem, ele iria provar que a tese de que nada existe está errada. Claro que está errada: você vê que as coisas existem, as ouve e as sente. Mas essa é a graça da retórica: levar o raciocínio a concluir exatamente o contrário do que dizem os sentidos. Claro que os aspirantes à vida política iriam querer aprender essas técnicas. Novamente, pros sofistas, isso não significava mentir (já que mentira implica que existe uma verdade, que era algo em que eles não acreditavam).
Mas levar uma pessoa a acreditar em algo não era o único uso que os sofistas faziam da palavra. Górgias, em seu Elogio de Helena, afirma que a palavra pode ser usada também pra exercer influência sobre sentimentos e emoções, o que, por seu turno, tem desdobramentos físicos. Pela palavra é possível excitar a raiva, a tristeza, a alegria, a luxúria, a compaixão, a coragem e várias outras sensações. Também é pela palavra que você pode reduzir a dor e o sofrimento, fazer a pessoa corar de vergonha, chorar, paralizar ou se acalmar. É como se a palavra funcionasse como uma droga. Nesse sentido, a sofística antecipa a psicanálise, que também usa palavras pra um efeito parecido. Excitando as emoções e os sentimentos, é mais fácil fazer com que o coração se sobreponha ao cérebro. A pessoa enfurecida não é capaz de raciocinar logicamente. Também a pessoa deprimida não consegue. Excitar emoções é um bom jeito de levar a pessoa a cometer idiotices… e a aceitar mais facilmente alguma coisa. E pronto! O livro encerra a exposição dos sofistas pra se dedicar a Sócrates.
Schopenhauer se põe a pensar sobre a diferença entre o pensamento próprio e a leitura. Quando você lê, se impõe ao seu cérebro pensamentos novos que foram produzidos por outros, com outras disposições, outras intenções. Isso dificulta a identificação com o que está sendo lido e, consequentemente, a produtividade do sujeito. Porque, a bem da verdade, nem sempre lemos o que gostaríamos de ler. Quando isso acontece, ocupamos nossa mente com pensamentos maçantes, o que nos leva a sufocar quaisquer ideias próprias que nos ocorram naquele momento e que talvez não nos ocorram novamente.
Detalhe do teto da Capela Sistina. Autor: Michelangelo Buonarroti. Fonte: Wikimedia Commons.
Já o pensamento próprio impõe pensamentos novos perfeitamente identificáveis. Sempre que você pensa por si, você pensa com sua própria energia, com sua própria vontade e desejo, com sua própria razão e experiência, as quais devem ser empregadas em justa medida (pois nem a razão é mais importante que a experiência e nem o contrário). Isso aumenta a produtividade, porque você está interessado. Além disso, tanto pensar quanto ler consomem tempo. Se você passa muito tempo lendo, passará pouco tempo pensando. Assim, quem lê muito provavelmente tem poucas ideias próprias e se limitará a citar as respostas de outros quando confrontado com um problema. Em GURPS, chamamos isso de “embotado”. Pra Schopenhauer, você fica “embotado” quando o hábito da leitura, por ser excessivo, degenera a capacidade da pessoa de pensar por si.
Mas seria Schopenhauer, por isso, inimigo da leitura? Se ele fosse, não escreveria livros. Schopenhauer explica que a leitura só é útil quando nós mesmos não conseguimos resolver algo com nosso próprio esforço. Quando uma questão irresolvível se impõe, convém ver como outros a resolveram. Schopenhauer diz que não há gênio no mundo que não passe por isso. Todos os pensadores encontram seus limites eventualmente e, quando isso acontece, você recorre aos livros. Assim, pra Schopenhauer, a leitura deve ser subordinada do pensamento próprio, ao pensamento orgânico, servindo como ajuda quando o pensamento próprio não pode mais avançar sem errar. Se você tem leitura, mas não pensamento próprio, você será um erudito. É o pensamento próprio que proporciona originalidade e é a originalidade que faz o pensador. Eis a diferença entre o filósofo e o historiador da filosofia, entre a testemunha direta e o historiador. Assim, a leitura não substitui o pensamento próprio, mas deve ser a ele subordinada.
Sabendo que falar de desprezo prejudica a atenção da multidão, Nietzsche resolve se dirigir ao orgulho deles. Ele diz que o homem deve ter um objetivo. Aqui, se refere provavelmente ao homem em geral, à espécie humana. Lembre-se de que o objeto do Zaratustra é o super-homem, a ideia de que o homem pode se tornar uma espécie nova e melhor, que não precisamos ser meramente humanos se existir possibilidade melhor. O super-homem é o raio que descende da núvem humana. É a concentração de sua força em um fenômeno só e explosivo.
O objetivo do homem presente é conduzir a humanidade a esse estado superior, no qual enfraquecer é o pior erro possível. Isso requer que os homens que guardam o caos dentro de si produzam suas estrelas (em língua de gente, isto é um apelo aos que têm originalidade pra que eles sejam produtivos). Apesar disso, o pessoal continuava rindo de Zaratustra, sem entender o que ele dizia. Zaratustra pondera que os anos que passou em isolamento prejudicaram sua capacidade de se fazer entender. Mas é claro, gênio. Por causa desse isolamento, ele fala de um jeito muito diferente e soa como um louco a seus pares. “Caos dentro de si”? “Produzir estrelas”? Que porcaria é essa? Fala português, homem!
Melancolia I. Autor: Albrecht Dürer. Fonte: Wikimedia Commons.
Zaratustra desiste (por enquanto) e assiste a um espetáculo que tá acontecendo na praça onde ele fez sua pregação. Havia dois palhaços numa corda bamba, um mais ágil e o outro mais lento. O mais ágil vinha rapidamente ao encontro do mais lesado. O mais ágil reclama que o lento está obstruindo o caminho ao que é mais ágil que ele. Então o palhaço ágil pula sobre o mais lento, aterrissando na corda. O movimento fez o mais lento perder o equilíbrio e cair. Dá pra ver que metáfora Nietzsche tentou entregar aqui: aquele que visa o super-homem, o homem do amanhã, não pode esperar a boa vontade dos menos capazes que ele. Para atingir esse estado, o homem precisa tomar a frente, passar por cima dos que não colaboram. Estes, aliás, não são aptos pra travessia. Por isso caem. Inobstante, tentaram atravessar a corda, aceitando o perigo. Isso ainda é admirável. Assim, pior do que tentar e falhar é não ter tentado. Não tentar é se reconhecer como fraco e incapaz.
Após o incidente, Zaratustra é aconselhado a deixar a cidade, porque todo o mundo ali o odeia e talvez não apenas riam dele da próxima vez. Zaratustra ignora e vai pra um bosque ali perto. Lá, ele decide que precisa de uns amigos novos.
As leis e os costumes visam desencorajar comportamentos ridículos, bizarros, pretensiosos, violentos, arrogantes ou diferentes. Nisso consiste a moral civil. Mas, Nietzsche acrescenta, também os animais agem assim. Talvez se nós observarmos as razões por trás da “moral animal” tenhamos uma pista sobre o porquê de humanos também agirem segundo regras que, muitas vezes, não lhe proporcionam benefício.
Nietzsche deixa isso mais claro: tal como nossa moral visa nos camuflar, nós, homens individuais, em uma “sociedade”, também o cameleão se camufla no ambiente mudando de cor, um animal adota a aparência de outro ou adota a aparência de uma folha, areia ou pedra. Ambas as coisas têm como função permitir um ataque à presa ou fugir de um predador. As virtudes sociais humanas são o que o transformam em um “camaleão social”. Elas não têm nada de elevado ou de belo. São apenas formas de se virar na vida, especialmente se você consegue fingir que as têm. Vendo os pais agirem dessa forma, crianças aprendem esses comportamentos por imitação. Só na idade adulta eles se põem a analisar por que razão elas (e seus pais) se comportam de tal forma.
Exemplo: felicidade marital. Nietzsche afirma que o casamento pressupõe que o amor eterno é regra, em vez de exceção. Para Nietzsche, tentar eternizar qualquer emoção ou sentimento ocasiona hipocrisia. Não existe emoção que dure pra sempre e sentimentos podem se esgotar. Dessa forma, o corpo de uma mulher torna-se tedioso quando se transa com ela vez após vez. O mesmo vale pra mulher, em relação ao seu homem. Regra é o divórcio, que se torna tanto mais frequente quanto mais é facilitado. Se assim é, se o amor que embasa o casamento pode acabar, é importante que a pessoa, caso esteja insatisfeita com seu casamento, pareça estar feliz com o cônjuge. Afinal, estar casado é símbolo de status (mas esses dias estão contados). Você não quer perder esse status, não é? Então sorria, mesmo debaixo dos pratos de porcelana que quebram sobre você, porque seu casamento precisa durar.
Este é um daqueles livros em que Nietzsche se pronuncia através de aforismos, então não se afobe se eu mudo de assunto muito rápido. Ele passa então a discutir a superstição de que a atitude que mais anima você é a correta, porque o sentimento de certeza vem de Deus. Esse sentimento é explorado ainda hoje, quando um pastor diz aos fiéis: “faça o que você sente em seu coração”. Agir conforme o coração é um gancho pra levar a pessoa a não ouvir a própria razão, a não pensar, o que a leva a tomar atitudes inclusive anticristãs (Jeremias 17:9).
Menino matando um basilisco, símbolo da heresia protestante, em Munique. Foto de Onderwijsgek. Fonte: Wikimedia Commons.
Mas esse “argumento” funciona muito bem. Enfatizar o coração em vez do cérebro é uma boa forma de explorar as pessoas com mais sentimento do que razão (a maioria). Apelar pro sentimento, a seguir “o que o coração manda”, é um argumento bonito, prazeroso e que não precisa de justificação, porque já há uma inclinação em todos nós a fazer o que temos impulso de fazer, inclinação que depende justamente da razão e da força de vontade pra ser refreada. É à razão e à experiência que se deve seguir, não ao sentimento (a menos que a razão e a experiência estejam de acordo com o sentimento).
Nietzsche então volta à crítica ao cristianismo de seu tempo. Pra Nietzsche, antes do cristianismo, as pessoas faziam mais ou menos como fazem hoje no Twitter: tentam parecer melhores que as outras exibindo suas virtudes, inclusive aquelas que não têm, mas aparentam ter, tentando envergonhar aqueles que vivem de um modo menos virtuoso. É o tipo de gente que, quando acusada falsamente de uma falta moral, toma a oportunidade pra se sentir superior por estar do lado da verdade, mesmo que isso ocasione sofrimento. A ideia era posar de Mary Sue, de perfetinho, de estar do lado do bem.
Com o cristianismo, e sua ênfase na miséria humana, as pessoas entenderam que a mais importante das virtudes é a humildade… e passaram a desfilar seus defeitos em vez das qualidades! É a mesma coisa. As pessoas ainda querem se sentir melhores que as outras, agora vendo quem sofre mais. Jesus diz, em Mateus 6:17-18, que você não deve deixar transparecer seu sofrimento ao público, que o sofrimento é algo particular. Então, na verdade, o estímulo eclesiástico ao culto do sofrimento é anticristão. É verdade, o cristão não deve esbanjar suas qualidades, mas tampouco seus defeitos, fraquezas e sofrimentos. Ambas as coisas são orgulho.
Por último, uma crítica às causas finais: o fato de o ser humano fazer uso de algum elemento da natureza não justifica a existência desse elemento. Por exemplo: antigamente se pensava que o Sol existe porque a vida precisa de iluminação. Na verdade, não. O Sol existe, é verdade, e a iluminação é consequência de sua existência. Mas não podemos dizer que foi essa necessidade que criou o Sol.
Vamos continuar a leitura de Além do Bem e do Mal (Nietzsche) e Arte de Lidar com As Mulheres (Schopenhauer).
Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.
Embora Nietzsche fale mal da religião a cada duas ou três páginas deste livro, ele admite que a religião tem poder formativo quando utilizada pelas pessoas certas. A religião tem caráter pedagógico. Um bom filósofo que usa a religião como ferramenta libertadora tá sendo um cara muito esperto. Na verdade, eu penso que seja essa a razão de marxismo ter sido tão pouco aceito no Ocidente. É que o marxismo se colocou contra a religião. Marx não fazia ideia de como um monte de coisa que ele diz em sua obra já fora dito na Bíblia Sagrada? O caso mais emblemático está nos Atos dos Apóstolos, onde a estrutura econômica da igreja de Jerusalém é exposta: todo o mundo vendia o que tinha, dava o dinheiro aos apóstolos, eles compravam os bens de que a comunidade precisava e administravam diretamente os bens segundo a necessidade de cada um, de forma que todos tinham tudo em comume ninguém passava necessidade (Atos 2:44-45; Atos 4:34-35). Havia uma administração direta dos bens.
Embora tal administração fosse feita pelos apóstolos, eles próprios não se consideravam mais que meros homens. Isso coloca em questão até mesmo o quão nítida realmente era a divisão de classes na igreja primitiva. Se Marx tivesse usado o cristianismo inteligentemente, talvez o neoliberalismo nem existisse hoje. Os filósofos deveriam usar a religião pra enriquecer seu discurso, assim como usam suas condições históricas, econômicas e sociais. Especialmente no Brasil. Aqui, se você se põe contra a religião, você já perdeu. Assim, vemos que Nietzsche, por condenar a religião com argumentos do tipo “a religião não enobrece o homem”, pode tolerar a religião se ela não atrapalhar tal enobrecimento ou favorecê-lo.
Não é tanto a religião em si, mas o uso que se faz dela. Nietzsche cai mais encima do crisitianismo porque é a religião que é mais facilmente usada contra o enobrecimento do homem (por seu culto à humildade, por exemplo). Ele não fala muito de outras religiões, justamente porque elas têm tal característica em menor grau. Mas Nietzsche afirma que o que há de mais elevado no cristianismo, essa religião que ele odeia, é sua capacidade de ensinar o homem a tolerar o sofrimento inerente à vida. Isso é positivo. Bom, Nietzsche é justo, afinal. Ao menos ele reconhece que o cristianismo tem algo de positivo, quando usado da forma correta.
O problema que Nietzsche tem com o cristianismo é que este ensina a se acostumar com o sofrimento e vê-lo como uma condição superior de vida. Uma coisa é tolerar o sofrimento, outra coisa é você abrir mão de se superar. O cristianismo faz isso tornando os pobres e oprimidos em modelos de comportamento e demonizando todos os que têm vida melhor. Isso pode causar até mesmo um tipo de orgulho hipócrita, quando o cristão sente orgulho de sua miséria e passa a medir a própria miséria com a de um outro, como se fosse um tipo de competição. Mas orgulho também não é pecado? Se orgulhar da miséria a desqualifica como miséria. Você não pode dizer “olha como desprezo a mim mesmo” se você faz isso pra se mostrar, porque aí não é mais autodesprezo.
Se o cristianismo não fizesse isso, se ele ensinasse que o homem pode e deve se superar, Nietzsche talvez não reclamasse da nossa fé. Pra ele, a igreja pega o homem, o melhor ser da Terra, e o desfigura, em vez de torná-lo melhor. Isso seria razão de orgulho pra Deus, que fez o homem? Mas, novamente, isso depende de como a religião é usada. Lembre que, pra Nietzsche, a verdade precisa ser útil pra que seja aceita. Se realmente a Bíblia Sagrada fosse a verdade, pra quê tornar o cristianismo uma coisa mais penosa do que precisa ser? Uma verdade pesada é um convite à procura de mentiras leves.
A arte de lidar com as mulheres.
Pra Schopenhauer, a mulher é mais propensa a mentir e enganar (aos outros e a si mesma), tanto no amor como durante um julgamento, e também mais radical ao tentar conseguir o que deseja, tendências aumentadas com o aumento de sua influência na vida pública. Por essas e outras razões, Schopenhauer acredita que a dama, a mulher que recebe respeito pela simples razão de ser uma mulher, é um conceito absurdo e danoso. Eu não sei como era no século dezenove, mas eu penso que, hoje, em tempos nos quais a palavra da mulher vale muito, qualquer homem se sentiria tentado a acreditar que isso é uma possibilidade, não porque a mulher é inerentemente falsa, mas porque a lei a protege mais. É mais fácil pra uma mulher que comete crime contra um homem se safar.
Vênus e Amor. Autor: Hans Holbein. Fonte: Wikimedia Commons.
Talvez por isso Schopenhauer diga que a inteligência atrapalha a pegação, porque mulheres preferem homens mais bobinhos, mais dispostos a obedecer e acreditar nelas. Tipo o Hifumi. Esse controle é facilitado pela cultura monogâmica, que está em declínio, pois a exigência de que você só pode amar uma mulher de cada vez o impede de usar o amor de mulheres melhores quando o amor de uma não satisfaz ou é condicionado, o que ajuda a mulher a manter o homem eleito sob controle. Lembrando que Schopenhauer era um filósofo misógino, que prefere que a mulher seja sempre tutelada pelo sexo masculino, então não se alarme ao ler que ele escreveu esse tipo de coisa. Em todo caso, ele diz com acerto que relacionamentos fracassados como esses certamente exerceriam efeito negativo na geração seguinte.
Recentemente, um professor de tiro foi acertado por seis disparos desferidos por sua parceira e há quem diga que não podemos ter certeza ainda sobre o quão culpada é essa mulher. Fosse o contrário, a cobertura do caso seria maior e ninguém duvidaria que a culpa é inteiramente do homem. Não acredito que a mulher é naturalmente propensa ao perjúrio, a mentir em julgamento sob juramento, mas uma pessoa ciente de que a lei está enviesada a beneficiá-la seria mais facilmente tentada a viciar a aplicação dessa lei. Não é tanto um problema da mulher, mas mais do sistema jurídico e da cultura de que todas as mulheres são dignas de respeito incondicional. Não seria melhor respeitar alguém, homem ou mulher, na medida de suas obras, não por pertencer a este ou aquele grupo?
Nesta semana, continuo minha leitura de Além do Bem e do Mal (Nietzsche), Antricristo (Nietzsche), Arte de Escrever (Schopenhauer), Arte de Lidar com as Mulheres (Schopenhauer) e Alma (Voltaire). Também começo a leitura de Assim Falou Zaratustra (Nietzsche).
Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro.
Já observou como o catolicismo é mais forte no hemisfério sul e o protestantismo é mais forte no hemisfério norte? Pra Nietzsche, isso acontece porque os povos do norte descendem de povos bárbaros, os quais não tinham uma religião de rituais (ou tinham uma de rituais mínimos). No sul, as religiões primitivas eram religiões de obras. Por causa disso, povos do sul já tinham a ideia de que Deus requer um determinado comportamento e não simplesmente uma fé.
Nietzsche inclusive diz que uma pessoa do sul, ao se revoltar contra o catolicismo, causa um impacto social maior do que uma pessoa do norte ao se revoltar contra o protestantismo, porque o homem do norte que faz isso simplesmente está agindo conforme o espírito nacional original. Pra Nietzsche, na Alemanha, tal espírito é justamente não ter espírito religioso. E, realmente, ao renegar o catolicismo, você renega os sacramentos, as práticas, as orações, os rituais, mas renegando Lutero você só renega a fé, que a única coisa que você tem.
Eu consigo ver um católico se converter ao protestantismo antes de se dar por ateu, mas é muito mais difícil imaginar um evangélico virando católico. Nietzsche também observou algo parecido, pois ele diz que, na Alemanha de seu tempo, é o ensinamento teístico que está em crise, mas não a fé. As pessoas continuam crendo em Deus, só estão deixando de acreditar na igreja. E não me admira. Até mesmo intelectuais, quando têm um lado espiritual, se afastam da igreja, pois sabem quantas coisas horrorosas foram feitas na história em nome da fé. Alguns se dirão contrários ao cristianismo, sem saber que muitas ideias modernas se configuram como uma forma de cristianismo sem Cristo.
Mas a herança étnica não é a única coisa que faz o protestantismo ser tão dominante no norte. É também a falta de tempo. Se dedicar aos rituais, às preces, ao rosário, às penitências, tudo isso requer tempo.
Hércules na encruzilhada. Autor: Jan_van_de_Hoecke. Fonte: Wikimedia Commons.
Olha como os Estados Unidos são ricos. Num país onde se trabalha tanto pra garantir o próprio sustento, especialmente com a sombra de uma recessão monstruosa pairando sobre nação tão poderosa, quanto tempo sobra pra se praticar uma religião de obras? Você acha que o catolicismo iria ser dominante na China? Quando uma nação trabalha muito, os povos são mais atraídos às religiões que afirmam que é possível se salvar com menos esforço. Se a pessoa for especialmente pragmática, ela deixará totalmente a religião porque dela não é possível fazer negócio (se bem que há controvérsias). Uma religião que, no máximo, apenas requer coisas que não interfiram com seus negócios seria mais fácil de pegar em nações com menos tempo livre. Pequenos empresários de classe média provavelmente são evangélicos.
Isso nos leva ao assunto dos santos. Não há santos no protestantismo, porque a santidade implica um estilo de vida e, como tal, atitudes. Mas há vários santos no catolicismo, que adquiriram esse título por terem se entregado a Deus de tal forma que renegaram a própria vontade. Esse fenômeno sempre causou admiração. Para dominar a própria vontade, o santo deve ser alguém muito forte e a força é algo que todos desejamos. Um monte de gente pratica o ascetismo hoje visando alcançar a santidade. Mesmo entre os que não querem ou não podem seguir tal caminho, o santo provoca admiração.
Mas por que alguém iria querer ser santo? Qual é o benefício de agir de tal forma? Será que o santo sabe de algo que eu não sei? Por isso o santo acaba reunindo discípulos ao redor de si. As pessoas querem saber suas razões e seus meios, a fim de viver melhor. A religião de hoje não pede mais sacrifícios humanos. Os sacrifícios requeridos hoje são ações, atitudes. O altar não espera frutas ou animais, mas suas vontades “erradas”. Mas será que vale a pena se sacrificar tanto?
Antes de passar pro próximo assunto, Nietzsche nos notifica que a religião grega, quando era aristocrática, era uma religião de gratidão. Você era grato aos seus deuses por tudo de bom que você tinha. Foi quando a religião grega se tornou coisa do povão (novamente, Nietzsche demoniza o povo), ela se tornou uma religião de temor. Em vez de grato pelo que os deuses te davam de bom, você passava a ter medo do que ele poderia te fazer de ruim! É mais difícil ser grato a quem pode te matar.
Alma.
Ao contrário de hoje, a crença na imortalidade da alma não era muito popular na antiguidade ocidental e seitas que acreditavam que a alma perecia com o corpo eram numerosas e tinham muitos adeptos. Inclusive os primeiros cristãos tinham suas dúvidas sobre a alma ser ou não imortal. Quando a crença na alma imortal tornou-se hegemônica, começaram as perseguições aos dissidentes. Antes disso, as seitas que tinham opiniões diferentes sobra a alma viviam em paz e harmonia.
Parece que o preconceito e o ódio aparecem mais em pessoas que têm certezas. Se nós assumíssemos que não sabemos, a não ser pela fé, se a alma é ou não imortal, talvez algumas perseguições históricas teriam sido evitadas, graças a humildade que vem do reconhecimento da própria ignorância. Se você admite que apenas tem fé em algo, é mais fácil ver sua crença como algo pessoal e até protegido de argumentos contrários (porque fé e razão são opostos, mesmo quando apontam na mesma direção). Já se você raciocina as coisas que vêm da fé, você irá argumentar contra quem não partilha de suas crenças, dando oportunidade aos cismas. Ao separar fé e razão, será possível ter os dois. A necessidade de deixar um dos dois pra trás só existe se você tenta misturá-los. Quando separadas, a fé não pode ferir a razão e nem o contrário. Mas, juntas, uma das duas será sacrificada.
É uma crença professada até hoje a de que animais inumanos não têm alma imortal. O fundamento pra tal crença é a falta de razão entre animais. Voltaire levanta então a objeção: a criança que, por defeito congênito, tem raciocínio incapacitado… essa criança tem alma imortal? Ou ela recebe um desconto porque veio de pais humanos? Analogamente, que certeza temos de que animais vivos, sensíveis e que aprendem truques, inclusive uma forma rudimentar de comunicação com o dono, não raciocinam? Quanta razão um ser precisa ter pra que sua alma seja elegível à imortalidade, onde será recompensada ou punida?
A criança de três anos tem alma imortal? Voltaire pergunta porque observa que o gato de seis semanas, o canário de um ano e um cachorro bem treinado têm habilidades o suficiente pra sobreviverem sozinhos, enquanto que a criança de três anos não sabe nada ainda. Na verdade, estudos mostram que a inteligência de um porco e a de uma criança de três anos são comparáveis. Se a medida da imortalidade da alma é a razão, então o porco que virou salsicha e a criança que morre de diarreia aos três anos, tanto um como o outro são imortais, a menos que você esteja disposto a admitir que nenhum dos dois é.
Esse tipo de problema só se resolve pela fé. No campo da razão, por uma questão de bom senso, você não deve procurar uma causa indeterminada pra um fenômeno de causa conhecida. No caso, se tivermos que usar a razão e não a fé, é o cérebro que nos permite pensar e não uma alma. Ora, mas o cérebro é material! Isso quer dizer que a matéria pode pensar. Tal coisa é possível pra Deus, que pode tudo. Ninguém pode dizer que Deus não pode conceder à matéria a faculdade de pensar. Além disso, tal ideia é compatível com a possibilidade de que a alma seja uma energia, como a luz, que existe na matéria.
O anticristo.
Já se perguntou por que Nietzsche odeia a religião cristã? Bom, ele tem suas razões. A primeira é que o cristianismo coloca num pedestal as coisas que Nietzsche identifica como negadoras da vida. A castidade, o jejum, a pobreza, essas coisas não favorecem o aprimoramento do homem, pensa Nietzsche. A segunda razão e a mais importante é que a fé que o homem exerce em sua religião o impede de ver a vida de outra forma. Sua religião já determinou o que é verdadeiro e falso, certo e errado, justo e injusto. Ele nunca verá como bom pra ele aquilo que é bom pra humanidade, porque ele identifica o bem pra humanidade com aquilo que é ordenado por Deus. Essa também é minha visão e Nietzsche me detestaria por isso. Uma pena.
Então, resumindo, Nietzsche odeia o cristianismo porque ele ordena coisas que tornam o homem medíocre ao mesmo tempo que impede, através da fé, que seus seguidores vejam o próprio erro. É assim que ele pensa. Pra ele, uma religião dessas acaba com o potencial humano ao se tornar hegemônica. Ela é especialmente perigosa quando ascende ao poder. Nisto eu devo concordar, porque, embora eu creia que Deus saiba o que é melhor, admito que suas ordens estão em um texto o qual deve ser interpretado. Se uma determinada interpretação se torna hegemônica e tal interpretação estiver errada, teremos um problema. Assim, tanto eu como Nietzsche concordamos que o cristianismo não deveria aspirar ao poder político, mas afirmamos isso por razões diferentes.
Nietzsche nos revela que a filosofia alemã é fortemente influenciada pelo protestantismo. Como a denominação cristã que prioriza a fé sobre tudo o mais (enquanto que o catolicismo vê a fé e a razão como conciliáveis), ela é o lado mais sentimental do cristianismo. Mas, como vimos na Alma de Voltaire, fé e razão são mesmo de natureza diferente. Se você prioriza a fé, rebaixa a razão.
Virgem do apocalipse. Autor: José de Ibarra. Fonte: Wikimedia Commons.
Nietzsche chama o protestantismo, inclusive, de paralisia da razão. E é essa paralisia que está subjacente em toda a filosofia alemã, ele diz. A primazia do sentimento sobre a razão nos leva a ver nossos sentimentos, o “eu creio”, como argumentos. Quanto mais forte for o sentimento, mais a pessoa se julga acima da razão. Essa intuição é mais perniciosa quando propaga verdades, não métodos. Se você descobre um método, você pode testá-lo pra saber se funciona. Se você descobre uma verdade, sem método (porque sentimento não é método), como você vai saber se aquilo é mesmo verdade?
Se assim é, claro que uma moral falida como a de Kant seria alardeada como revolucionária. Falida, porque impraticável: pra Kant, se você faz algo porque é prazeroso, mesmo que esteja agindo bem, não está fazendo por dever. Logo, sua ação não é moral. Pra Kant, a pessoa só age moralmente se age sem prazer. Lascou-se pra quem gosta de defender causas sociais. Isso acaba com o potencial dos que fazem o bem por prazer, justamente aqueles que têm mais habilidade de fazer o bem. Também perigosa: uma nação que se guia pelo imperativo categórico, pelo que “é certo”, não pelo que lhe é vantajoso (porque vantagem é prazer), se torna presa das nações que não observam esse princípio. O mesmo se diz do homem individual: quem é muito bonzinho sempre se ferra.
A virtude deve ser julgada como tal segundo o quão benéfica ela é à nossa vida. Tudo o que atenta contra nossa vida não é virtude. Nietzsche põe Kant, Leibniz e Lutero na categoria de “empecilhos à integridade alemã”.
A arte de escrever.
Schopenhauer faz uma distinção entre informação e instrução. Informação é a descrição das coisas: sua definição, sua constituição, seu processo de feitura, sua serventia (ou efeitos). Mas isso é inferior à instrução. A instrução é a capacidade de usar essa informação. Quando você sabe apenas pra mostrar que sabe, você é informado, mas não instruído. Quando você usa a informação que tem pra melhorar sua vida ou pra construir seu próprio pensamento, você é instruído, mesmo que, às vezes, mal informado.
Esse problema é apontado por Roberto Machado, pra quem as aulas de matemática no curso de pedagogia e no curso escolar parece que só servem dentro da escola. Os alunos não sabem pra quê usar as fórmulas que aprendem sofregamente no ensino médio, por exemplo. A informação sem instrução é inferior. É preciso que cada aluno tenha pensamento próprio e seja capaz de aplicar em sua vida o que aprendeu. Ter erudição sem pensamento próprio é como ter uma peruca (cabelo de outros) por não ser capaz de produzir o próprio cabelo.
Mas a instrução sem informação também é péssima! Se você constrói o pensamento próprio com informações desencontradas, falsas, tendenciosas ou incompletas, você vai virar um astrólogo e morar em Virgínia. É um erro comum entre os neófitos da faculdade de filosofia pensar que é possível ser filósofo sendo somente original, elevando sua opinião ao grau de verdade. Tanto o excesso de aprendizado quanto o excesso de ensino, tanto o excesso de escrita quanto o excesso de leitura, essas coisas prejudicam o pensamento próprio. Informação e instrução precisam estar equilibradas. Num ensino básico que vai do infantil (creche) até o médio (adolescência), é indisculpável que a escola não guarde, pelo menos, um quinto desse tempo pra instruir os alunos, em vez de só informá-los.
Mas surge uma dúvida: se a instrução depende da informação, como saber se uma informação é boa? A maioria das pessoas, quando precisa se instruir, procura recomendações. Tipo, quando alguém se pergunta o que ler agora, ele pega o jornal e vê quais livros estão em alta. Schopenhauer diz que todo o mundo tem o direito de falar besteira, mas que comentar a besteira dita pelos outros deveria ser ilegal. Justamente porque tem gente que procura recomendações pra saber o que ler. Se você faz uma resenha de um livro ruim, as pessoas que esperam esse conteúdo serão atraídas ao livro através da sua resenha. Por causa disso, você só deveria comentar os livros bons que você leu (ou filmes que tenha assistido, jogos que tenha jogado, músicas que tenha ouvido).
Inspiração do poeta. Autor: Nicolas Poussin. Fonte: Wikimedia Commons.
Mas você ainda precisa julgar o que foi produzido. Não comentar não é o mesmo que não experimentar. Se alguma doutrina, pensamento ou posição se torna popular na sociedade (como quando é professado por alguém que tem estima entre o povo ou entre acadêmicos), os intelectuais deveriam se ocupar dele e ter seu parecer sobre ele, mesmo que não o comentem. Além disso, o fato de Schopenhauer dizer que algumas posições não deveriam ser comentadas não quer dizer que eu concorde com ele. Algumas posições precisam ser contestadas, mesmo que isso implique em sua divulgação.
Schopenhauer se volta, então, à diferença entre os que estudam por prazer e os que estudam porque são pagos pra isso. Sim, você pode ser pago pelo estado pra estudar. Isso se chama “pesquisa e desenvolvimento” e é necessária a qualquer nação. É graças aos pesquisadores muito bem pagos que a vacina contra o coronavírus está em desenvolvimento. Schopenhauer observa que as grandes descobertas são feitas por aqueles que colocam o dinheiro em segundo plano, mesmo que estejam sendo pagos.
Se você faz ciência visando dinheiro, você fará uma ciência completa o bastante pra ganhar o dinheiro que você quer. Aliás, esse é o tipo de pessoa que falsificaria a verdade científica se a mentira pagasse mais que a verdade! Por isso que uma sociedade se arruína quando todos só pensam no benefício próprio, especialmente se intelectuais são levados a agir de tal forma.
Se você faz ciência porque gosta, você fará uma ciência muito mais abrangente, porque não a verá como trabalho. Se ciência é divertido pra você, nunca você vai parar de praticá-la e irá mais fundo no seu objeto de estudo, mesmo que você descubra algo tão massa que nenhum estado do mundo poderia te pagar adequadamente. Claro que isso requer certo grau de independência: se você depende de alguém, você terá que conformar sua ciência àqueles que te sustentam.
Assim falava Zaratustra.
Zaratustra, aos trinta anos, deixou seu país pra morar dez anos na montanha. Um belo dia, ele olhou o sol e teve uma epifania: a glória do sol não é nada se não tiver quem necessite da luz solar. Se não houvesse gente no mundo, não houvesse plantas ou bichos, o sol não teria significado. Seria uma bola de fogo ali. Zaratustra quer ser como o sol. Ele, julgando-se sábio, entende que sua sabedoria vale pouco ou nada se ele não se encontrar com aqueles que necessitam dessa sabedoria. E assim começa a história dele, com a ideia de que aqueles que creem ser sábios devem ir atrás de quem deles necessite.
Triunfo de Galateia. Autor: Rafael. Fonte: Wikimedia Commons.
Eu não me considero sábio, só um cara que estuda. Mas como eu acho que tem gente que precisa ler o que os filósofos pensaram, embora não tenham tempo nem forças pra compreender seus livros, eu dei tal propósito a este blog. Se você tem algo a dizer e acha que outros se beneficiariam do que você diz, por que você não fala? O sábio silencioso é inútil.
A arte de lidar com as mulheres.
Após passar um capítulo inteiro falando bem da poligamia, inclusive dizendo que a poligamia acabaria com a necessidade de prostituição, por ele vista como um ofício duro e inevitável, Schopenhauer admite que a poligamia tem uma desvantagem. É a única desvantagem por ele apontada à poligamia: o número de sogras. O estereótipo de sogra exigente vem de muito tempo e é perfeitamente compreensível. Afinal, você está se casando com o filho de alguém. Esse filho tem mãe e a mãe não vai querer que seu filho case com qualquer um. Eu li em algum lugar, não lembro onde, que o Islã permite você ter várias esposas, desde que elas não sejam irmãs entre si. O escritor do texto rapidamente adiciona: seria fácil entrar no Paraíso se você tivesse dez mulheres e uma só sogra. Eu não sei se Schopenhauer tá falando sério agora, depois de falar tão bem da poligamia. Talvez esta desvantagem seja uma piada. Ou uma verdade contada em tom comédico. Quem sabe?
Passando pra outro assunto, Schopenhauer fala dos direitos iguais. Lembre que Schopenhauer, à época da escrita de Parerga e Paralipomena, era misógino. Então, é claro que ele escreveria que a mulher não deveria ter direitos iguais aos dos homens se também não lhe fosse concedido o intelecto masculino. Pra nós, hoje, isso soa muito errado, mas talvez fizesse sentido na época de Schopenhauer, pelo simples fato de que o acesso à educação era mais difícil à mulher.
Isso também estaria por trás da ideia que Schopenhauer fazia das mulheres artistas. Pra ele, a mulher tem zero sensibilidade artística. A isso, gostaria de contrapor a autora de Fullmetal Alchemist. Mas Schopenhauer rapidamente diria, se estivesse vivo e ainda fosse machista, que uma exceção não altera a regra. Na verdade, ele diria que a mulher que se “força” às belas artes é como uma mulher que coloca silicone. Como? Porque, pra Schopenhauer, isso não seria natural. Uau, isso foi tão pesado que até eu, que não sou mulher, fiquei ofendido.
A reclamação de Schopenhauer quanto a essa “falta de intelecto” é de que a mulher, ele diz, ao receber os bens do marido quando morre, não os gerencia bem, os dissipa, desperdiça e estraga. Schopenhauer diz que esse problema seria resolvido se a mulher tivesse seu direito de herança limitado. A viúva, na medida em que também não trabalha, deveria receber auxílio do governo até a morte. E é isso. Ela não teria direito ao capital ou bens imobiliários do marido finado. Me pergunto pra onde iriam esses bens e capital então. Pros filhos, mas sobretudo aos meninos: a herança só seria da esposa se o homem não tivesse deixado filhos do sexo masculino. Ele também era contra a ideia de que a mulher deveria ficar com a guarda dos filhos, porque a pessoa que precisa de tutela não pode tutelar.
Isso constituiria razão suficiente pra não casar. Mas Schopenhauer, como sempre, dá mil e uma razões pra não casar. Deveria haver um livro só sobre isso: Conselhos Filosóficos Contra o Casamento. Então, Schopenhauer diz, com muito acerto, que o casado “carrega todo o fardo da vida”, mas o solteiro carrega “só a metade”. Porque o solteiro tem tempo livre pra atividades intelectuais. Schopenhauer, por isso, aconselha que o homem com inclinação científica, filosófica ou artística deveria permanecer solteiro. Já o homem que se casa, vai virando burro de carga, ele diz, e é notável como as mulheres tratam subalternos. Bom, já estou na página noventa deste livro. Daqui a pouco o termino. Portanto, paciência.
O texto abaixo é uma honesta aula filosófica baseada em Algumas palavras sobre o panteísmo , escrito por Schopenhauer, com sugestões de como as ideias contidas em tal escrito podem ser usadas para desenvolver o país e ajudar as pessoas a se compreenderem.
O panteísmo.
O panteísmo já foi um tema tabu na filosofia. Isso aconteceu por várias razões, mas principalmente porque, depois que a filosofia se tornou coisa de acadêmicos universitários, se criou um consenso de que tal coisa não merecia ser ensinada. Como estamos cansados de ver, inclusive hoje em dia, um professor universitário de filosofia se vê obrigado a lecionar apenas aquilo que sua universidade permite que seja ensinado. Mas por que esse consenso? Há uma boa razão? Primeiro precisamos nos perguntar o que é o panteísmo… e sermos capazes de defini-lo de forma simples.
Então, panteísmo é a ideia de que tudo é Deus. Observe que tal tese assume, desde o começo, que Deus existe. Assim, o mundo, o universo, a natureza, essas coisas são Deus, afirma o panteísmo. É mais ou menos isso que quer dizer a expressão “o mundo é Deus e Deus é o mundo”. Agora, há um grande número de problemas aí implícitos. Não estamos falando apenas de uma perspectiva cristã, mas também de uma perspectiva lógica. Se Deus é o ser mais elevado que existe, é preciso que ele seja imune à degradação, que ele seja criador, que ele seja eterno, que ele seja perfeito e que ele seja sábio. Por essas razões, isto é, porque ele tem que ser o máximo nesses atributos, Deus também só pode ser um: se houvesse dois deuses igualmente perfetos, nenhum deles seria “o Deus”, pois nenhum deles seria “o mais perfeito.”
A dificuldade lógica.
Precisamos ser capazes de definir o que é Deus (isso já fazemos) e o que é mundo (isso é mais difícil). Se não soubermos o que são ambas as coisas, ficamos com uma definição circular. É como dizer, “alma é espírito” e depois perguntar “o que é espírito?”. Aí, o engraçadinho responde: “ora, espírito é alma!”. Filho duma égua. Então, se a expressão “Deus é mundo; mundo é Deus” tiver que ser levada a sério, precisamos de uma definição fechada dos dois. Em filosofia, Deus é mais fácil de definir que o mundo: Deus é imutável, criador de tudo, eterno, perfeito e sumamente sábio. Mas o que é o mundo? Até onde ele se extende? É a Terra? É o Sistema Solar? É a Via Láctea? É a nossa linha de tempo? Ao dizer “Deus é o mundo”, você adiciona um novo sinônimo a Deus. Mas, quando você diz “o mundo é Deus”, você tenta explicar um conhecido por um desconhecido, o que é pior. O panteísmo, portanto, precisa de uma definição fechada de mundo.
Além disso, precisamos observar que, se Deus é perfeito, igualá-lo ao mundo não tem lógica: o mundo é imperfeito. Pode Deus contrair coronavírus? Só se ele quisesse. Mas que Deus faria algo pra se prejudicar? Considerando todos os problemas enfrentados pelo mundo, só poderíamos igualar mundo e Deus se admitirmos uma divindade masoquista. Faria mais sentido igualar o mundo ao diabo. Foi o que João quase fez em 1 João 5:19, onde ele diz que o mundo jaz no poder do mal. Como pode o mundo ser Deus? Se Deus é perfeito e o mundo é imperfeito, dizer que Deus é o mundo ou vice-versa é absurdo. Se é imperfeito, não é Deus. Isso torna o panteísmo pior que o teísmo tradicional: o primeiro é absurdo e o segundo é só improvável.
Dois tipos de panteista.
Existem dois tipos de filósofos panteístas: os ateus incofessos e os panteístas de raiz. Os ateus incofessos procuram um meio seguro de seguir uma via atéia na condução de um raciocínio: não é que Deus não exista, é só que ele é o mesmo que mundo, o qual pode ser explicado cientificamente. Isso torna a revelação automaticamente desnecessária, sem perder o apreço da audiência teísta que assite o discurso. Isso é bem válido no Brasil, onde um ateísmo puro é extremamente mal-visto. Já os outros são os panteístas de verdade, que realmente acreditam no panteísmo. Na filosofia, eles provavelmente têm alguma ligação com a escola espinosista ou talvez com o otimismo metafísico, o qual é falso.
Recomendações.
Vivemos tempos de liberdade de culto então não haveria muito problema, de um ponto de vista civil, um sujeito ser panteísta. Na verdade, uma pessoa que sustenta que o mundo é vivo, mesmo que não diga que o mundo é Deus, é provavelmente uma pessoa ecologicamente mais consciente e talvez até existencialmente mais calma. Poderia uma pessoa dessas pensar: “ao morrer, estou apenas devolvendo o que a Terra me emprestou.” Se o sujeito também tiver tendências espíritas, ele provavelmente não se preocupa nada com a morte e ainda é capaz de aproveitar a vida e o que ela tem a oferecer. Então, mesmo que o panteísmo não faça muito sentido de um ponto de vista lógico, o simples fato de pensar no mundo como se este fosse um ser vivo, do qual nossa própria existência depende, já aumenta o valor da pessoa como sujeito moral.
Seria interessante que outras religiões tivessem uma abordagem melhor do mundo. Por exemplo: o papa falou, recentemente, no tal Sínodo da Amazônia, que devemos nos ver como “co-criadores” do reino. Como disse Jesus, o reino de Deus está entre nós (Lucas 17:21). O mundo é a casa de todos nós. Você iria gostar que seu convidado (pois nossa vida no mundo é concessão divina) entrasse em sua casa pra vandalizá-la? É um ponto de vista interessante, que combina o teísmo tradicional com uma atitude mais responsável em relação ao mundo, pelo menos o mundo como “planeta”. Se o reino de Deus está entre nós, não deveríamos estar trabalhando pela sua manutenção e melhoramento? Interessante ideia. Assim, uma visão panteísta não é necessária pra que alguém encare o mundo ou a sociedade como algo de que se deva cuidar.
Hegel, destruidor de papel, de tempo e de mentes! Na Alemanha, Hegel, um charlatão repugnante, estúpido e escrevinhador de disparates sem igual, conseguiu ser aclamado como o maior filósofo de todos os tempos … Enquanto outros sofistas, charlatães e obscurantistas falsificam e arruínam apenas o conhecimento, Hegel destruiu até mesmo o órgão do conhecimento, a própria inteligência.
Pena que a Semana Filosófica está chegando ao seu fim. Os dois primeiros dias foram um saco, admito, mas os dois últimos dias de minicursos foram magistrais, porque foram apresentados por alunos seguros do que estavam fazendo e por um doutor em Schopenhauer. Refleti feito um espelho, involuntariamente, participei das discussões, ri, chorei, foi maravilhoso.
Ontem estudamos os elementos do antissemitismo do ponto de vista de Adorno e Horkheimer. Foi-nos apresentado um pedaço do filme O Pianista e foi aí que chorei. Credo, o Nazismo foi mesmo um verdadeiro absurdo e ver aquelas imagens do filme foi muito mais tocante que simplesmente ler um livro de história. Deus do céu, onde esteves quando aquilo aconteceu? Depois falamos do tal eclipse da razão. Todo o esclarecimento que ocorreu na Europa e particularmente na Alemanha deu naquilo, quando a razão alemã foi avidamente exaltada pelo Idealismo Alemão (aquele Fichte é um canalha; onde já se viu dizer que os alemães são melhores que as outras ração simplesmente porque seu idioma não se misturou a nenhum outro?). Foi-nos explicado os métodos que Hitler usou para manipular a população e só lembrei de um colega meu do Ensino Médio que era apaixonado pelo Nazismo (não o bastante pra ser nazista, mas o bastante para estudá-lo como quem tem fome de saber). Quem dera ele estivesse lá; iria adorar.
Depois teve o minicurso de Schopenhauer e foi aí que ri. O doutor foi categórico, Schopenhauer está errado, você não deveria ler Schopenhauer procurando por verdades filosóficas porque Schopenhauer é contraditório, insustentável e simplesmente incorreto em muitas coisas cruciais. Você deveria ler Schopenhauer, contudo, para aprender a arte de desconfiar das coisas, para entrar em contato com o único filósofo até o momento que disse que o corpo é a porta para a verdadeira metafísica… ou pra dar risada, visto que ele escreve de forma relativamente clara, em contraste com os outros filósofos alemães de seu tempo, e é morbidamente engraçado.