Pedra, Papel e Tesoura

14 de abril de 2024

Por que a última assembleia da APEOC foi um fracasso.

Filed under: Notícias e política, Organizações — Tags:, — Yure @ 13:12

Se você acompanha notícias da educação cearense, você certamente percebeu que uma anomalia aconteceu na última assembleia da APEOC. Foi uma loucura tão grande que é preciso um vídeo pra que você possa acreditar.

https://www.youtube.com/watch?v=EwsWSKc9D_Q

Eu acompanhei de perto os movimentos da APEOC, o sindicato dos professores da educação básica do estado do Ceará, e penso que posso responder com alguma confiança o que causou o incidente em que a dirigência do sindicato foi agredida com cadeiras pelos próprios sindicalizados e no qual bandeiras do sindicato foram queimadas. Posso dizer que ocorreu uma sucessão de erros, grandemente motivados por excesso de confiança, e espero que este texto sirva de aviso para outros movimentos não caírem nas mesmas armadilhas.

Antecedentes.

O estado do Ceará tinha pendências econômicas com a classe dos professores estaduais e precisava ser pressionado para que tais pendências fossem sanadas. Ocorreu uma assembleia na qual o estado de greve foi aprovado, depois uma assembleia na qual o indicativo de greve foi aprovado. Faltava apenas uma assembleia para, de fato, deflagar a greve, mas a mesa de negociação não havia fechado à data da assembleia e seria prejudicial às negociações se a greve fosse deflagrada enquanto ainda havia negociações acontecendo. Então, a greve não poderia acontecer, mas a data da assembleia de votação havia chegado e a maioria dos professores queria uma greve à qual a dirigência do sindicato se opunha.

Erro 1: dois grupos de Whatsapp.

A APEOC tem, pelo menos, dois grupos no Whatsapp no momento: Professores Cearenses em Luta e Estado de Greve 2024. O primeiro é mais voltado a informativos do sindicato, entre sindicalizados. O segundo é focado exclusivamente no estado de greve aprovado na primeira assembleia do ano. O segundo grupo foi mais compartilhado, naturalmente, pelos proponentes da greve, atraindo pessoas de perfil pró-greve, já que o link para um grupo é geralmente partilhado entre pessoas que pensam igual.

A diferença de reações entre os dois grupos para as mesmas postagens é marcante: sempre que a direção do sindicato publicava algo que pudesse indicar uma posição contrária à greve, a reação negativa no segundo grupo era sempre muito maior. Ter um segundo grupo de Whatsapp apenas para a discussão sobre a greve atraiu grande número de pessoas radicalmente favoráveis à greve. Isso foi bom no começo, mas, quando a diretoria do sindicato começou a mudar de ideia sobre a possibilidade de aprovar a greve, o segundo grupo se tornou um problema e pode ter gerado uma célula pró-greve pararalela ao sindicato e fora do controle do mesmo, a qual se reuniu em outro grupo. Isso é fácil de fazer: basta adicionar em outro grupo todos os que estão no grupo da greve.

Assim, o segundo grupo reuniu e conectou proponentes da greve, eventualmente, contra a dirigência do sindicato quando esta passou a dar sinais de que a greve seria uma má ideia. Isso me parece plausível, porque, na assembleia do papoco, muitos foram com roupas combinando e tinham combinado um plano de tumultuar a assembleia. Isso, obviamente, sugere que houve articulação paralela.

Isso foi o primeiro erro motivado por excesso de confiança: reunir professores pró-greve em um grupo é ótimo pra dirigência pra pressionar o estado, mas péssimo quando o interesse da dirigência começa a divergir do interesse da classe. Eles deveriam ter pensado nisso ou, se pensaram, concluíram que poderiam contornar facilmente a situação. E não contornaram.

Erro 2: não ter mudado a pauta da assembleia antes da data marcada.

Se a mesa de negociação estava aberta, o início da greve seria desaconselhável. A pauta da assembleia deveria então ter sido mudada e tal mudança ser anunciada antecipadamente nos grupos de Whatsapp. E isso não aconteceu. A dirigência do sindicato estava confiante de que poderia convencer a maioria dos professores a votar contra a greve na assembleia final. Eles argumentaram nos grupos, mas a reação aos argumentos foi péssima. Nem mesmo a ilegalidade de outros movimentos grevistas (UECE, URCA e DETRAN) desmotivou os grevistas.

Se a pauta tivesse sido mudada com antecedência e tal mudança tivesse sido anunciada nos grupos, além de devidamente explicada, haveria maior controle sobre a situação, pois a opinião dos professores pró-greve na assembleia não seria levada em consideração. Mas como a pauta permaneceu a mesma, a opinião deles tinha que ser levada em consideração e não foi, algo sobre o que eu entrarei em mais detalhes depois. Ademais, a pauta foi mudada numa ocasião totalmente inapropriada: na própria assembleia. Mais sobre isso também depois.

Erro 3: falta de controle na entrada da assembleia.

No dia da assembleia, eu entrei, assinei a frequência e peguei um crachá. Não houve checagem acerca da minha participação efetiva no magistério. Isso é bom quando se quer inflar um movimento, mas, àquela altura, deveria já ter ficado claro que a maioria dos professores que atenderiam à assembleia eram favoráveis à greve, então inflar o movimento seria contraproducente. Mas, novamente, a dirigência estava confiante na sua capacidade de controlar a situação.

Não houve exigência de contracheque, declaração ou ficha funcional. Qualquer um podia entrar. Se houvesse exigência de documentação, talvez menos pessoas tivessem ido. Como não havia, o lugar lotou. O número de professores ali presentes, penso eu, passava de seiscentos, com uns 350 vestidos de preto. O desastre parecia iminente, mas poderia ter sido evitado. Infelizmente, a dirigência do sindicato deixou mais uma oportunidade passar, como vemos a seguir.

Felizmente, a dirigência do sindicato aprendeu com seu erro e passou a exigir contracheque na entrada dos encontros zonais. Isso permite não apenas garantir que somente professores participarão, mas também permite, se a dirigência quiser, restringir a entrada somente a sindicalizados, deixando de fora maioria dos professores temporários (dada a imagem da APEOC como um sindicato que despreza os temporários, apesar de ter acatado algumas demandas dos temporários recentemente, isso seria totalmente esperado).

Erro 4: não ter usado, imediatamente, o tumulto como desculpa para adiar a assembleia.

Enquanto eu esperava a assembleia começar, eu ouvi dois professores conversando entre si sobre um plano que havia sido combinado entre os professores pró-greve: fazer barulho sempre que alguém da dirigência do sindicato se pronunciasse sobre qualquer coisa, tumultuando a assembleia com palavras de ordem ou vaias. E foi o que foi posto em prática. Sempre que alguém contrário à greve tentava se pronunciar, sua voz era afogada e suprimida no barulho. Alguns inclusive ficavam de costas para a dirigência em sinal de desprezo.

A dirigência do sindicato teve uma oportunidade de ouro para adiar a assembleia alegando que não poderia haver votação sem que ambos os lados fossem ouvidos civilmente. Mas, em vez disso, eles ficaram enrolando por três horas, esperando que os professores a favor da greve tivessem que sair para outros compromissos, a fim de que o local ficasse mais vazio. Foi uma clara tentativa de manipular a votação. A desculpa do tumulto eventualmente foi usada, mas apenas no final da assembleia, depois de três horas. Não dá pra usar a desculpa de que o tumulto não deixa a assembleia continuar quando ela já ocorria por tanto tempo.

Erro 5: mudar a pauta no meio da assembleia.

Em certo momento, a dirigência ficou abertamente contra a categoria. A pauta foi mudada e a votação não seria mais sobre a deflagração ou não da greve, mas sobre a aceitação da proposta do governo (insatisfatória para muitos) ou pelo retorno das negociações. Como que para “punir” os professores pró-greve, o tempo de fala para cada professor foi reduzido de dois para um minuto. Tempo que depois não foi respeitado pela dirigência.

Mas, mesmo com um minuto para se manifestar, os professores deixaram claro que queriam uma greve. A maioria ali era a favor e votações simbólicas foram chamadas três vezes, deixando claro que quase todos os professores ali presentes, mais de 99%, queriam a greve. E isso nos leva ao último e mais grave erro da dirigência do sindicato.

Erro 6: não ter deflagrado a greve.

O líder do sindicato anunciou o fim da assembleia sem que a votação ocorresse, alegando que o tumulto não permitia que a assembleia continuasse, sendo que ela já durava três horas. Agora, pense um pouco: se a maioria dos filiados ao sindicato queria a greve e o sindicato, autoritariamente, passou por cima da vontade da maioria dos filiados, podemos dizer que tal sindicato representa a categoria? Não. Então o que ele representa? Há várias teorias para responder tal pergunta e a resposta fica a cargo de cada professor: há quem diga que representa o governo, a “direita”, o lucro ou até que a dirigência do sindicato representa apenas eles próprios. Mas o fato é que cada filiado à APEOC contribui mensalmente, com dinheiro, para a manutenção do sindicato. O resultado não poderia ser outro: a categoria se sentiu traída (porque foi traída) e agrediu a dirigência. Podemos realmente culpar a categoria? Talvez tenha sido uma reação excessiva, mas as motivações são compreensíveis.

Alguém poderia questionar: “não pode haver greve durante negociação, pois a greve seria considerada ilegal e o que fora conquistado em negociação seria perdido”. Verdade, mas, se a maioria quer a greve, ela deveria acontecer, a despeito das consequências. O sindicato existe para representar a categoria e não para que sua dirigência decida “o que é melhor” para seus filiados, como se fosse uma mãe superprotetora. Não, a dirigência tem que ser mais como um pai liberal, que diz quais as consequências do que o filho está tentando fazer, mas não o impede de fazer. A categoria sabia dos riscos e estava disposta a aceitá-los. Ademais, essa mesma categoria já havia obtido conquistas em greves passadas, algumas das quais inclusive haviam sido declaradas ilegais.

Concluindo.

Tudo isso teria sido evitado se a dirigência do sindicato tivesse sido menos confiante em sua capacidade de “controlar” os professores. Eles perderam o contato com a realidade do que estavam fazendo desde o começo: inflamando professores para uma greve da qual a dirigência depois desistiu. Aliás, eles perderam o contato com o que significa manter um sindicato. E por isso, instrumentais de desfiliação estão circulando entre as escolas e muitos professores estão os usando. Em minha visão, é assim que deve ser, pois não tem sentido você dar dinheiro para uma entidade que não mais representa os interesses da categoria da qual você faz parte.

Mas isso não é o fim da APEOC. Eles já passaram por isso antes, o que é notável. Eles encontrarão novos professores para preencher seu quadro de filiados entre os novatos que entram a cada concurso público. No entanto, se tais erros são recorrentes, é claro que incidentes como estes da última assembleia também se repetirão. E o drama recomeçará. Que outras entidades não cometam os mesmos erros.

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