Pedra, Papel e Tesoura

29 de março de 2016

Anotações sobre o “Discurso do Método”, de Descartes.

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O “Discurso Sobre o Método” foi escrito por Descartes. Abaixo, algumas anotações sobre esse texto.

  1. Não adianta ter um bom cérebro se você não o aplica corretamente.
  2. Melhor ir lentamente no caminho certo, do que rapidamente pelo caminho errado.
  3. Um amigo pode sentir vergonha de criticar você mesmo quando você precisa ser criticado.
  4. O método descrito no livro é pessoal e pode não funcionar com todo o mundo.
  5. Receber o título de “erudito” não te torna erudito.
  6. Todos os livros são valorosos e todas as ciências devem ser estudadas.
  7. Ler e viajar são igualmente importantes.
  8. Passar sua vida inteira em um lugar favorece a tendência etnocentrista.
  9. Mas não vá ler demais e nem viajar demais, ou você vai esquecer de olhar pra onde você vive.
  10. Não leia ficção se você não souber separar ficção e realidade.
  11. Se a poesia é um dom artístico, é natural que nem todo o mundo consiga compor poesia.
  12. A verdade pode convencer sem artifícios retóricos.
  13. Cada um tem afinidade para algum tipo de conhecimento.
  14. Nem todas as coisas que se apresentam como virtude são realmente virtude.
  15. A existência de muitas opiniões pode levar a pessoa ao ceticismo.
  16. Não se pode fazer ciência exata sobre bases fracas.
  17. Se você não é pobre, não precisa perverter seus princípios por dinheiro.
  18. Na escola você aprende o que já existe, mas na vida você deve ser original.
  19. Na infância, estude os livros; na idade adulta, estude o mundo; na velhice, estude a si mesmo.
  20. Invenções feitas por mais de uma pessoa e que são compostas de mais de uma peça são menos perfeitas quanto mais inventores e quanto mais peças têm.
  21. Se houver um só legislador, todas as leis operam para o mesmo fim, que é estabelecido pelo legislador, o que facilita a tarefa de lembrar as leis, pois, conhecendo com que princípio elas foram concebidas, não será necessário lembrar de todas em particular.
  22. Existem pessoas que se acham muito originais e sábias, julgando poder se pronunciar sobre o que não conhecem, e existem pessoas que são muito tímidas pra ser originais, simplesmente repetindo o que já foi dito pelos que têm autoridade.
  23. É mais fácil estar no segundo grupo se você não vê as discordâncias entre os pensadores como algo digno de ser levado em consideração.
  24. O caráter muda dependendo da educação, do lugar em que se está e da fase da vida.
  25. Melhor andar devagar do que levar uma queda.
  26. Não troque o certo pelo duvidoso.
  27. O problema deve ser dividido em tantas partes quanto forem possíveis, de forma que cada um seja resolvida em particular.
  28. Primeiro o mais simples, depois o mais complexo.
  29. O trabalho deve ser revisado quantas vezes for necessário, até se ter certeza de que nada foi omitido.
  30. Uma ciência pode corrigir a outra.
  31. Siga o conselho que as boas pessoas não dizem com palavras, mas com ações.
  32. Depois de decidido o objetivo e o método, ir até o final.
  33. Melhor mudar a si próprio do que o mundo.
  34. A vontade só quer aquilo que achamos que é possível.
  35. Só estamos em pleno controle de nossos pensamentos e de nada mais.
  36. Devemos nos dar ao crescimento de nossa própria razão.
  37. Não há necessidade de se contentar com a opinião dos outros.
  38. Eu posso duvidar de quase tudo, porque eu não posso duvidar de que estou duvidando.
  39. O pensamento nos mostra que nossa alma é pensante e que o pensamento é a essência da existência humana individual.
  40. É lícito tomar por correto aquilo que é concebido claramente e distintamente.
  41. Se admitimos que a escala de graus de perfeição opera de forma invertida, então admitimos que todas as coisas vieram do nada.
  42. As formas perfeitas (triângulo ideal, círculo ideal, quadrado ideal…) não existem na natureza.
  43. Verdades matemáticas tem valor atual.
  44. Se todo o conhecimento que tenho no entendimento passou alguma vez pelos sentidos, como é que eu posso conceber Deus ou a alma, coisas que nunca passaram pelos sentidos da maioria das pessoas?
  45. O conhecimento sensorial de nada serviria se não fosse o entendimento para interpretá-lo.
  46. Alguns sonhos são tão nítidos quanto a realidade.
  47. Alguns processos corporais são análogos aos das máquinas e funcionam automaticamente por sua disposição e energia implícita.
  48. A circulação é causa do calor do corpo.
  49. Se vários objetos tendem ao mesmo lugar, os mais velozes e mais fortes chegam primeiro, afastando os outros, caso não haja espaço o bastante.
  50. A máquina imita operações humanas com mais perfeição que nós, mas só pode fazer um número limitado de funções, em comparação conosco.
  51. Se o animal tem razão bastante para falar, mas não tem órgãos para falar conosco, o que os impede de pelo menos nos entenderem?
  52. O corpo humano e a alma humana estão misturados, embora sejam de natureza diferente.
  53. O que sabemos de medicina é nada comparado ao que falta saber.
  54. Mesmo que você descubra pouco, é bom divulgar o que você sabe.
  55. Não se deve procurar o conhecimento raro sem antes conhecer o incomum.
  56. É dever do ser humano ser útil aos outros.
  57. Devemos crescer aos poucos.
  58. O bom advogado nem sempre vira um bom juiz.
  59. Os seguidores de Aristóteles não se atrevem a superá-lo.
  60. Um fanático adepto de um filósofo que desafia outros ao debate é como um cego desafiando alguém de boa visão a lutar no escuro.
  61. Se você tem pressa em ser chamado de “sábio”, procurará algo que parece verdade, não o que é verdade, porque a verdade é mais difícil de encontrar e demora mais pra ser encontrada.
  62. Se você começa a aprender as coisas mais fáceis e vai ascendendo gradualmente às difíceis, você poderá dizer, com toda a propriedade, que chegou ao seu limite quando se deparar com algo tão difícil que você não possa conhecer.
  63. Se precisar de ajuda, ainda é melhor trabalhar sozinho do que com alguém que é incapaz de ajudar.
  64. Não devo procurar ajuda se eu não mereço ajuda.
  65. Não há necessidade de ficar anônimo, mas muito reconhecimento e fama fazem as pessoas te perturbarem por mais.
  66. Ter reputação é inevitável, então vamos nos esforçar para nossa reputação ser boa.
  67. Deixe que o leitor julgue se seu escrito é bom ou não.
  68. Algumas pessoas podem se apropriar do seu pensamento e construir sobre ele algo completamente errado.
  69. Escreva em seu próprio idioma.

24 de março de 2016

O que aprendi lendo “Meditações Metafísicas”.

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“Meditações Metafísicas” foi escrito por Descartes. Abaixo, o que aprendi lendo esse livro.

  1. Aprendemos, ao longo de nossas vidas, muitas coisas erradas.
  2. Então, tudo aquilo que construímos sobre fundamentos falsos é digno de se colocar em dúvida.
  3. Esse esforço não pode ser feito imediatamente, mas somente em idade propícia, na solidão (aposentado).
  4. Esse é um processo altamente destrutivo e não deveria ser tentado se outras pessoas dependem de você para existir.
  5. Descartes pretende rejeitar qualquer coisa que não se manifeste como sendo clara e evidente.
  6. Não é necessário derrubar cada conhecimento de cada vez: basta derrubar seus princípios, que são em menor número do que os raciocínios construídos sobre tais princípios.
  7. Os sentidos são a primeira coisa que ele elimina como sendo “duvidoso”: se os sentidos enganam, ele rejeitará os sentidos como fundamento de conhecimento, por não serem claros e evidentes.
  8. A dúvida cartesiana é uma decisão, não uma dúvida normal: você escolhe duvidar.
  9. A dúvida será o método dele neste livro.
  10. Os sentidos são seguros para a vida cotidiana, mas não é isso que queremos.
  11. Descartes dormia pelado.
  12. Como é que eu vou saber… que eu não estou sonhando agora?
  13. Como é possível duvidar da realidade objetiva, Descartes também a rejeita.
  14. Mesmo que o sonho componha uma realidade completamente diferente da realidade objetiva, ele compõe essa realidade fantástica utilizando elementos encontrados no estado de vigília.
  15. Se houver um deus maligno que se diverte em enganar o intelecto, então nem a matemática e a geometria seriam seguras.
  16. Mas, se Deus existe e ele é bom, ele não iria perder tempo enganando suas criaturas.
  17. Deus não criaria outro Deus.
  18. Tudo é duvidoso.
  19. Claro que todas as coisas negadas, embora não sejam 100% aceitáveis por todos, são seguras e muito prováveis.
  20. Então o conhecimento sensível tem seu uso, já que eu recorrerei a ele na vida cotidiana, e não há nada de errado em fazer isso.
  21. A dúvida metódica levou Descartes a rejeitar tudo que temos por certo e confiável.
  22. Pensar dessa forma não é apenas trabalhoso, mas torna a vida impossível de ser vivida.
  23. As Meditações são como um diário pessoal de trabalho dessa dúvida.
  24. A busca por algo de seguro é comparada à alavanca: se eu tiver uma alavanca suficientemente longa e um ponto de apoio suficientemente seguro, posso levantar qualquer coisa.
  25. Talvez eu não tenha corpo, mas será que não é possível existir sem corpo?
  26. Não posso duvidar de uma coisa: que estou duvidando.
  27. Ora, mas pra duvidar é necessário pensar.
  28. Ora, mas só é possível pensar e também se enganar se eu existir.
  29. Então, a garantia de que, pelo menos, eu existo é o fato de que eu estou pensando, algo que não seria possível se eu não existisse.
  30. Chegar à conclusão de que eu existo não assegura que eu existo de uma maneira particular.
  31. O corpo é uma ferramenta a serviço da alma.
  32. Alma é substância pensante.
  33. Sou um troço pensante.
  34. O próprio pensamento é a única coisa que passa pela dúvida metódica.
  35. Estado físico não é essência, mas acidente.
  36. Atingir a natureza das coisas é um esforço mental, não empírico.
  37. Se eu brinco com um objeto e também com meu corpo, mas percebo meu corpo com mais nitidez do que objeto com que brinco, o conhecimento do meu corpo é mais seguro.
  38. Aquilo que na ciência é mais fácil é difícil para o senso comum.
  39. Em que condições eu posso reconhecer o valor objetivo de uma ideia?
  40. Até que ponto algo que eu penso realmente existe?
  41. Se existe um deus que se preocupa em enganar as pessoas, é um divino desocupado.
  42. Devemos procurar saber se há razões para acreditar em Deus.
  43. Se houver, devemos nos certificar que ele não emprega sua indústria em nos enganar.
  44. É possível desejar o que não existe.
  45. A ideia que eu tenho não necessariamente corresponde à coisa a qual deveria corresponder.
  46. Algumas ideias que eu tenho parecem ter nascido comigo.
  47. Ideias de procedência externa, afecções: perto de um fogo, sentirei calor.
  48. Instinto não é fonte segura de conhecimento.
  49. O instinto é amoral, é agnóstico.
  50. Depois que o exterior deixa uma impressão, o pensamento relacionado à impressão pode surgir sem o objeto que a causou.
  51. Sem uma ideia clara e evidente, não há critério de julgamento entre falso e verdadeiro.
  52. O sentido mostra o Sol, o instinto supõe que o Sol é do tamanho que parece, mas a razão diz que o Sol é maior que a Terra.
  53. Os sentidos traem com grande traição.
  54. Apelo aos graus de ser, à causa eficiente: todo efeito tem uma causa e eu sou um efeito.
  55. Nada garante que a criatura é igual ao criador.
  56. O nada não pode criar, com isso todos concordamos.
  57. A criatura é semelhante ao criador em alguma coisa, mesmo que em menor grau.
  58. Aquilo que a coisa parece ser para mim… é o que ela realmente é?
  59. Se Deus existe, então não estou sozinho no mundo.
  60. Algo é imperfeito se não sai como planejado (se o real e objetivo não corresponde ao que eu imaginei inicialmente).
  61. Será que o frio é ausência de calor ou é o calor ausência de frio?
  62. Será que eu posso pensar numa mentira completa?
  63. Existem ideias falsas por natureza?
  64. A ideia de Deus é complexa demais pra ser concebida pelo espírito humano.
  65. A existência de Deus só passa pela nossa cabeça porque Deus se dá a inferir na mente humana.
  66. O finito vem do infinito
  67. Ao contrário do que se pensava, infinito não é negação do finito como frio é negação do calor, mas o contrário: se algo é limitado, é porque não tem ser em grau supremo, o que implica parcela de não-ser (potência).
  68. É possível apreender o infinito em sua forma, mas jamais em seu conteúdo.
  69. Se eu fosse Deus, nunca duvidaria de ser Deus.
  70. Tivemos começo, não somos eternos.
  71. Nossos pais fizeram nosso corpo, mas o espírito vem de Deus.
  72. É diferente criar e produzir. Os pais produzem o filho, mas não criaram o ser humano.
  73. Deus não é enganador, porque só engana quem tem carência de algo.
  74. Se Deus é perfeito, ele não criou uma natureza ou seres humanos perfeitos porque não estava no interesse dele criar outros deuses como ele.
  75. Sendo eu finito, não posso receber poder divino em grau infinito.
  76. Eu cometo erros por não saber aquilo que é necessário saber para determinada tarefa.
  77. Se Deus é perfeito, sempre quererá o melhor e mais vantajoso.
  78. O engano é carência de certeza, mas não é carência cognitiva total.
  79. Se Deus é perfeito e infinito, uma mente finita nunca poderá entender algumas ou várias ou todas de suas decisões.
  80. Seria estranho, para Descartes, dizer que os dentes caninos foram concebidos para furar pedaços de carne: se Deus é dono de todas as coisas, sendo também infinito, sendo suas razões incompreensíveis pela fraca mente humana, não se pode afirmar, com certeza, para quê cada coisa na natureza foi concebida.
  81. Que vantagem poderia haver para a natureza que o ser humano fosse mais inteligente do que já é?
  82. O entendimento tem limites mais rígidos que a vontade: quando temos vontade de fazer algo que não entendemos ou não podemos entender, erramos.
  83. Existe diferença entre liberdade de escolha e liberdade de ato.
  84. Não se deve se posicionar sobre o que não se entende.
  85. Um defeito só é defeito em certo sentido.
  86. Para minimizar ou mesmo eliminar o engano, as verdades claras e distintas devem ser separadas das que não são claras ou não são distintas: sobre o incerto, só se pode especular e abandonar qualquer pretensão de certeza.
  87. É possível atribuir existência a algo que não existe.
  88. Se eu disser que existe um ser sumamente perfeito, preciso provar que esse ser existe.
  89. Se Deus é perfeito, é eterno.
  90. A geometria aplica seus preceitos às coisas materiais, o que torna coisas materiais bem prováveis, mas não garante que elas existam.
  91. Algo é “possível” se eu a tenho provas de que ela é possível ou se eu não tenho provas de que ela é impossível (nem tampouco provas de que é certa).
  92. Descartes aponta que temos sensações porque há objetos que nos inspiram sensações e porque temos órgãos que interagem com tais objetos.
  93. O corpo afeta o espírito, que sou eu mesmo, o que implica existência do corpo.
  94. Não temos controle sobre que objetos nos suscitaram preferência.
  95. A dor é uma sensação íntima, mas não é segura: pessoas que tiveram membros amputados ainda têm sensações de dor nos membros que não estão mais lá.
  96. É possível sentir coisas que não estão lá, como quando sonhamos.
  97. Descartes não descarta a possibilidade de que as ideias sensíveis sejam produzidas dentro do próprio espírito (como na loucura ou na alucinação).
  98. Eu sou uma coisa que pensa.
  99. O corpo seria inútil sem o espírito.
  100. O fato de termos sensações a despeito de nossa vontade, uma vez que nosso espírito, sendo nós próprios, é totalmente sujeito à nossa vontade, as sensações vêm de fontes externas a nós.
  101. A causa das sensações ou é um corpo ou Deus.
  102. Não é Deus, porque Deus não quereria se passar por objeto, visto que não é enganador.
  103. O que é incerto ainda pode ser conhecido com certeza, porque o espírito pode corrigir o sentido.
  104. Se a natureza nos ensina algo por meio dos sentidos, então parece que é seguro admitir que existe algo corpóreo fora de nós, feito por Deus.
  105. Alma e corpo não estão totalmente separados.
  106. A natureza é uma só, sempre a mesma: se nossos sentidos não a percebem como deviam, isso é problema nosso.
  107. O ensinamento da natureza é concernente a como se manter vivo e não coincide com o entendimento, não é imediatamente fundamentado e precisa ser complementado pela razão.
  108. A boa interação entre corpo e natureza requer que ambos estejam em bom estado.
  109. Os sentidos existem e os sentidos são seguros em relação à biologia, à conservação da vida.
  110. A diferença entre sonho e realidade é a memória: a memória não é capaz de juntar os sonhos entre si como o faz com os acontecimentos da vida acordada.
  111. A metafísica tem sua função.

17 de março de 2016

Anotações sobre as regras para a condução da inteligência.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, — Yure @ 12:10
  1. A finalidade dos estudos é preparar o estudante para o julgamento. Assim, nossos estudos devem nos permitir melhorar nosso senso crítico a fim de que possamos fazer bons julgamentos sobre o que quer que seja. Em outras palavras, se estuda pra criar juízo.
  2. É mais fácil ser “o mestre” em alguma coisa se você faz só aquela coisa ou um número limitado de coisas (é pra isso que serve o mestrado). Quem estuda muitos assuntos não é lá muito bom em nenhum deles. Porém, estudando somente um assunto, o indivíduo será fera nesse assunto.
  3. Os períodos cartesianos são imensos. Às vezes parece que ele nunca vai terminar uma frase que começou. Na verdade, nas Meditações Metafísicas, eu vi uma frase que consome um parágrafo inteiro de cerca de dez linhas. Kant faz pior, porque além de fazer frases de dez linhas ele não encerra o parágrafo, deixando o parágrafo rolar com outra frase de umas sete linhas.
  4. Embora seja mais fácil ser “o mestre” através da especialização, ninguém precisa ser obrigado a se especializar. Se alguém pensa que pode ter conhecimento decente de coisas diversas e acha que pode melhor empregar suas perícias dessa forma, ele deve procurar tal conhecimento.
  5. Deveria haver uma ciência da sabedoria, a qual perpassa todas as ciências, mas parece haver interesse somente em estudar suas manifestações particulares.
  6. Convém manter as ciências juntas por algum tipo de elo. A biologia deve falar com a física e com a química, por exemplo, para que tenhamos uma visão orgânica do mundo. O ideal seria que as ciências fossem de tal modo conexas que fosse possível aprender todas. Mas, como todo ideal, só podemos tê-lo como ideia reguladora.
  7. O estudo se mostra mais frutífero se você tem como objetivo o refinamento do julgamento pessoal. É o que venho fazendo desde que comecei essas anotações.
  8. Não se deve estudar algo cuja a verdade indubitável parece fora de nosso alcance. Não se dê ao estudo impossível.
  9. Isso é feito para evitar que tomemos por certo algo que é errado, empobrecendo nosso espírito em vez de enriquecê-lo.
  10. Descartes tinha algum tipo de problema mental, porque tem que ser doente pra rejeitar tudo o que é “provável” a fim de ficar somente com o que não se pode duvidar. De quantas coisas no mundo não se pode duvidar?
  11. Descartes diz que muitas são essas coisas. É só que, como elas são óbvias, deixamos passar despercebidas. Temos muitos conhecimentos seguros, é assim que sobrevivemos. Ainda assim, rejeitar o provável me parece exagero.
  12. É possível que um estudioso de um assunto, reconhecendo estar errado, se convencer de que suas afirmações falsas são verdadeiras.
  13. Se existem opiniões contrárias sobre um mesmo assunto, é porque não há conhecimento seguro sobre esse assunto.
  14. Conhecimento seguro é aritmética e geometria. Formular um conhecimento seguro e universal requer matemática.
  15. O conhecimento que não segue esse método não é completamente condenável, mas serve apenas para o fim que foi concebido.
  16. O debate sobre o provável é coisa de criança, de quem está se iniciando no pensamento. O conhecimento seguro é mais maduro.
  17. É próprio do adulto decidir seus próprios métodos de estudo. Não precisamos aceitar a herança do mestre se ela nos parece falha. Porém, esse é um julgamento que só pode ser feito na maioridade: a criança não deve escolher seus métodos e está filiada ao método do mestre.
  18. Estudar o provável só aumenta o número de dúvidas. Essa rejeição do provável me parece um entrave científico: se rejeitamos o provável como uma empreita desesperada, ele nunca se tornará certo e permanecerá provável. Porém, invocando as palavras ditas anteriormente de que não devemos nos dar ao estudo impossível, me parece que sua rejeição do provável só é válida se entendemos que não temos condições de elevar a questão ao nível de certeza. Quem puder, faça.
  19. Se chegamos a uma conclusão falsa, isso se deve não ao processo dedutivo (que nunca erra em sua aplicação, se o indivíduo for atencioso), mas ao axiomas obtidos pela experiência, que pode ser mal-executada ou interpretada erradamente.
  20. Por isso que Descartes conclui que se deve passar pela matemática para chegar à certeza: a matemática lida com situações abstratas, que independem da experiência. De fato, a matemática pode ter relação com a experiência, mas não necessariamente.
  21. A aritmética e a geometria são modelos de ciência, diz Descartes.
  22. O estudo do passado nos permite usufruir do que os outros já pensaram, a fim de avançarmos mais facilmente em nossas próprias pesquisas.
  23. O problema é que o estudo do passado pode acabar nos fazendo herdar o acidente cometido pelos outros, quando somos convencidos por raciocínios errados. Por isso que eu leio obras filosóficas com olhar crítico, sem a intenção de aceitar tudo o que está escrito como verdade.
  24. Criticar a opinião do outro não basta; se tem também que convencer os que estão neutros para que a doutrina oposta morra por falta de adeptos.
  25. Não é possível ser filósofo ou cientista pela mera memorização. Se o conhecimento matemático que temos não se presta à prática, não somos matemáticos. Se o conhecimento filosófico que temos não se presta à prática (no caso do texto, o refinamento do julgamento), não somos filósofos. E de fato, nenhum filósofo célebre ficou somente na teoria: todos tentaram levar suas teorias às últimas consequências práticas, mesmo que isso significasse somente adotar um estilo de vida ou esclarecer a mente dos outros ou ainda aperfeiçoamento pessoal. Os de maior sucesso são os mais práticos, a ponto de quase nunca serem vistos como filósofos, dado o estereótipo de disciplina teórica que esta tem. Falo de Freud e Marx, por exemplo, que, de tão práticos, são vistos mais como cientistas (um médico e um cientista político) do que filósofos. Toda a filosofia que se preze tem que ter um desdobramento prático.
  26. A intuição (identificação do óbvio) é meio válido de conhecimento. A dedução é a derivação de uma terceira verdade a partir de outras duas verdades, como no silogismo. Mas a intuição é de um vez, não processual.
  27. A intuição é espontânea. A dedução pode ser feita a qualquer ponto.
  28. Procurar a verdade requer não apenas que saibamos o que procuramos, mas que pensemos o caminho até lá.
  29. Encontrar algo por acaso é menos digno de glória do que achar algo por perícia.
  30. Descartes diz: melhor não procurar a verdade do que proculá-la sem método.
  31. Se é melhor ir pra escola, como é que às vezes quem vai pra escola não consegue resolver problemas que um iletrado consegue? Isso porque o método escolar pode acabar prejudicando nossas habilidades naturais. Além do mais, quando se procura algo com o método errado, a chance de se doutrinar no acidente é maior. Se você passa a vida aprendendo algo de forma errada, aceitar o que é certo torna-se mais difícil. Se você aprende algo certo, mas por métodos demasiadamente complexos, aqueles que são mais ingênuos podem inferir verdades mais rapidamente. Isso me lembra do que meu professor de antropologia disse do Lula: “ele era tão bom que se ele tivesse estudado teria se prejudicado.”
  32. Usar métodos muito difíceis para o estudo de determinado objeto nos leva a desperdiçar tempo e energia. O método não deve ser mais complexo do que precisa ser.
  33. Como é que eu vou chegar ao conhecimento de tudo se eu tenho que rejeitar o provável, cara? A menos que seja como eu pensei antes, a saber, se eu acho que posso elevar o provável ao grau de certeza.
  34. É interessante como Descartes faz com a aritmética e com a geometria aquilo que faço com os Evangelhos e com o Apocalipse: aprendendo o mais simples que, convenientemente, é o mais certo, eu posso julgar outros saberes como válidos ou não.
  35. Descartes aponta que os “criadores da filosofia” não admitiam como discípulos pessoas que não soubessem matemática. Deve estar se referindo a Platão e Aristóteles. Não vejo como isso posaria problema para Sócrates, se é que ele existiu.
  36. A disciplina que chamamos “matemática” é o estudo propriamente de um método. As ciências matemáticas são aplicações do método. Qualquer estudante é capaz de dizer o que é matemática e o que não é.
  37. A matemática é mais simples que suas aplicações e pode ser usado da forma como o usuário quiser, a qualquer objeto.
  38. O método deve ser estudado profundamente antes de ser aplicado. Por isso só se aprendem as disciplinas de física, química e biologia no ensino médio, enquanto que matemática é aprendida desde o jardim de infância.
  39. Tudo o que é aprendido deve ser anotado e colocado em um todo orgânico. Não deixe seus conhecimentos separados uns dos outros. Faça relações entre as coisas que você sabe.
  40. Não se deve pular do fácil ao difícil. A subida é gradual.
  41. Para conhecer algumas coisas é necessário ter conhecido outras mais simples antes. Convém organizar os objetos de estudo em escala de simplicidade e estudá-los em ordem ascendente, do mais simples ao mais complicado.
  42. Raramente recorremos ao conhecimento complexo; quanto mais simples a informação, mais recorremos a ela. Então, estudar em ordem de simplicidade é também útil em termos práticos.
  43. Os conhecimentos simples servem como referência na identificação dos mais complexos.
  44. Um mesmo objeto pode se mostrar simples ou complexo dependendo da forma como é estudado. Determinado objeto é estudado com mais dificuldade segundo um referencial químico do que por um referencial biológico, por exemplo, porque o biólogo está interessado nos processos vitais de um animal, enquanto que o químico se interessa por sua constituição material.
  45. Descartes diz: estudar primeiro a causa, depois o efeito. Mas pense comigo: se o efeito é a manifestação da causa, como é que eu vou conhecer a causa sem ela se manifestar? Na minha modesta opinião, não se pode conhecer uma causa antes do efeito, uma vez que é o estudo profundo do efeito que revela sua causa.
  46. É possível conhecer por comparação (semelhança e diferença entre o que já conhecemos e o objeto apreendido).
  47. Depois de um longo caminho de pensamento, chegamos a uma conclusão tão distante da pergunta inicial que muitas vezes esquecemos os detalhes do processo. Isso é perigoso.
  48. Os racionalistas e os empiristas não são distantes e nem completamente opostos. Esses dois usam termos parecidos, afirmam coisas parecidas e ambos parecem usar tanto dedução como indução. O fato é que um coloca peso maior na dedução e o outro coloca um peso maior na indução. Essa dicotomia didática entre racionalismo e empirismo não precisa existir, como se as duas escolas fossem inconciliáveis.
  49. Se algo não foi entendido, não se deve prosseguir antes de entendê-lo. Eu quebro essa regra muitas vezes e deliberadamente quando estudo filosofia.
  50. Os sentidos fornecem informações e a imaginação inventa informações. O entendimento processa informações. Disso Descartes conclui que só o entendimento pode errar, por má interpretação do que os sentidos ou a imaginação mostram.
  51. Insistir em conhecer aquilo que é evidentemente incognoscível é loucura, diz Descartes.
  52. Uma questão fundamental: o que o ser humano pode conhecer?
  53. Antes de fabricar o nosso objeto final, convém fabricar os materiais para fazê-lo. Isso é alegórico.
  54. O que é o conhecimento? Todos os que amam a sabedoria se fazem essa pergunta pelo menos uma vez na vida.
  55. É preciso, diz Descartes, estudar as coisas simples a ponto de elas nos parecerem óbvias.
  56. Não convém recorrer à demonstrações complexas logo que o problema se apresenta.
  57. Para se exercitar, repetir os experimentos feitos por outros. Percorrer os caminhos dos célebres. Isso permite saber o que os outros fizeram e como melhorar.
  58. Um raciocínio sofístico dito a quem usa bem a lógica só engana o próprio sofista, que acha que está enganando alguém.
  59. Descartes diz que o dialético só consegue concluir com silogismo aquilo que ele na verdade já sabia.
  60. A dialética vulgar tem valor ainda assim, porque ajuda a explicar algo pra quem ainda não sabe.
  61. Para resolver uma questão, é necessário ver o que a torna difícil e diferente de outras questões que já resolvemos. Já não resolvemos problema parecido? O que torna este problema diferente?
  62. Quando encontramos um problema, devemos usar tudo o que for necessário para resolvê-lo, sem se escorar em um só método ou numa solução “universal”.
  63. Para conhecer alguma coisa, usamos quatro meios: entendimento, imaginação, sentidos e memória. Temos que usá-los todos na resolução de um problema, mas não a ponto de exaustão (porque Descartes fala contra o esforço desnecessário em outras regras, então “dar tudo de si” é usar os quatro meios, mas não a níveis extremos).
  64. Usar um ou dois ou três desses meios nos leva ao risco de deixar algo passar.
  65. O que podemos conhecer: o que se apresenta espontaneamente, o que se apresenta por meio de outro objeto, as deduções que se faz dessas dois tipos de informação.
  66. “Fantasia” parece ter sentido similar ao de “instinto”.
  67. Sentido: aplicar-se a imaginação ao órgão. Memória: puxar uma imagem mental previamente arquivada. Imaginação: formar ideias novas a partir de conteúdo preexistente na mente. Entendimento: processamento.
  68. Examinar de uma vez vários objetos não provê entendimento sobre cada um em particular. Examinar conjuntos é examinar o que une os elementos do conjunto. Ter acesso ao particular requer exame de um exemplar individual.
  69. Novamente: se não achamos que podemos chegar a um veredito sobre a questão, não devemos avançar nela.
  70. Figura é o limite de um corpo. As figuras são nomeadas segundo a aparência dos limites.
  71. Existem coisas que podem ser conhecidas sem auxílio dos sentidos, como os sentimentos. Não precisamos ver a amizade ou ouvir o amor para conhecê-los, mas apenas senti-los. Mas ter um sentimento, sentir o amor ou a amizade, não é algo que se faz com os sentidos. Então, “sentir amor” é uma expressão equivocada. Melhor seria “ter amor”. Na verdade, talvez até a palavra “sentimento” seja equivocada, mas vamos usá-la por uma questão de comodidade.
  72. Também existem coisas que só podem ser conhecidas pelos sentidos, porque só existem nos corpos: figura e movimento, por exemplo. O espírito não está sujeito a essas coisas. Isso mostra que o racionalista não era nenhum cego voluntário; os racionalistas viam valor nos sentidos e muito valor. Essa dicotomia entre racionalismo e empirismo como coisas inconciliáveis não tem razão de existir e os professores que ensinam as coisas dessa forma estão mentindo.
  73. O conhecimento de alguma coisa revela também seu contrário. Se conheço a luz, conheço por extensão sua ausência: o escuro. Se conheço o som, sei o que é o silêncio: ausência de som. Não me faça falar do bem e do mal.
  74. Se eu digo “não existe verdade” está claro que eu assumo pelo menos uma verdade, que é a que eu anunciei, excluindo-a das outras. Da mesma forma, se Sócrates “duvida de tudo”, ele ainda tem certeza de que duvida. Ele não pode duvidar de que está duvidando.
  75. Descartes diz: se eu existo, Deus também existe. Isso porque só Deus cria. Então, a existência de criaturas supõe Criador.
  76. Não é porque Deus existe que qualquer coisa exista. Nem todas as potências se atualizam.
  77. Toda a afirmação carrega muito de implícito: “triângulo” implica área, figura, três, ângulo…
  78. O sábio faz melhores interpretações daquilo posto pelos sentidos, pela imaginação e pela memória, podendo fazer uso construtivo dessas informações.
  79. O engano é má interpretação dos dados fornecidos pela memória, pela imaginação e pelos sentidos. Estes apenas trazem informações. Quem as processa é o entendimento.
  80. A dedução é o único meio de conhecimento. Mas isso não quer dizer um esforço completamente racional, já que os sentidos são fonte de informação. A dedução é feita entre os meios de obter informação, já expostos.
  81. Existe diferença entre estar sentado e estar de pé. Mas colocar a diferença em palavras nem sempre é fácil.
  82. Para Descartes, todas as coisas são de igual dificuldade de apreensão, pois todas são compostas de elementos “conhecíveis por si”. Eu tenho minhas dúvidas.
  83. Acreditar cegamente no que diz uma autoridade é sinal de baixa auto-estima.
  84. Método analítico: se entendemos alguma coisa, devemos extirpá-la de qualquer conceito desnecessário, reduzindo-a ao nível mais simples possível, para depois dividi-la em suas mínimas partes. Isso torna o estudo do objeto mais fácil.
  85. As controvérsias filosóficas muitas vezes nascem no emprego do vocabulário.
  86. Eu tenho que saber o que é que estou procurando, delineando as características daquilo que eu quero atingir. De outra forma, como eu saberia que achei uma solução “boa” para o problema?
  87. Nem tudo o que ouvimos desde a infância é verdade.
  88. Como explicar cores ao cego de nascença? Mas quem conhece o vermelho, o amarelo e o violeta pode conhecer todas as outras cores por dedução.
  89. Por causa disso, só podemos conhecer algo exterior se vier dos sentidos. Essa é uma das razões pelas quais eu acredito que o poder explicativo da ciência um dia vai se exaurir, porque nossos sentidos são tanto limitados em número como em qualidade.
  90. Não é difícil que o sábio chegue à conclusões que o leigo pode apontar com toda a certeza e propriedade como erradas. É que o sábio, às vezes, perde contato com a realidade e afirma óbvias mentiras.
  91. Se concebemos os números como tendo existência autônoma, podemos chegar a lhos atribuir características mágicas. Da mesma forma, não podemos conceber extensão, altura, largura, linha, superfície como conceitos separados das coisas. A matemática está nas coisas, não fora delas, só fazendo sentido enquanto tem relação com as coisas.
  92. A investigação deve seguir prioridades. Aquilo que requer atenção imediata da mente deve ser tratado em detalhes, mas aquilo que pode esperar pode ser tratado por alto ou brevemente até que torne-se prioridade.
  93. Escreva seu progresso, para que você possa recorrer ao papel caso esqueça alguma coisa. Deixe sua mente se preocupar com o presente apenas, enquanto o papel guarda o passado.
  94. As anotações devem ser concisas, curtas, claras, para que também não se tenha que gastar muito tempo lendo para chegar à informação desejada.
  95. Use abreviações se achar interessante. Em vez de dizer “o quadrado do número desconhecido deve ser dobrado”, diga “2X²”.
  96. Existem dados conhecidos e dados desconhecidos. Se houver relações entre esses dados, é possível conhecer o desconhecido conhecendo que relações tem com o conhecido.
  97. Se algo puder ser resolvido com as quatro operações, não é necessário complicar mais as coisas.
  98. “A multiplicidade de regras […] provém da incompetência de um Mestre […].” Válido também em jogos de interpretação.
  99. Para Descartes, a divisão é preferível à multiplicação como meio de resolução de problemas.
  100. Se possível, coloque todos os dados disponíveis em forma de expressão numérica.

6 de março de 2016

Paulo.

Filed under: Livros, Organizações, Saúde e bem-estar — Tags:, , , — Yure @ 18:27

Como vocês já sabem, este diário é bem pessoal. Desde o início, a religião foi um tema tão presente aqui quanto, por exemplo, parafilias, filosofia e arte. Isso porque, no começo, eu tinha muito medo da morte e aquilo que me aproximou da religião em primeiro lugar foi o medo da morte. Eu sempre fui uma pessoa compreensiva e pensei que ganhar a vida eterna sem mudar muito de minha atitude era uma proposta tentadora.
Eu pensei em me tornar testemunha de Jeová, até eu ler o livro Jovens Perguntam: Respostas Práticas, que tocava um assunto muito sério de maneira muito leviana. Quando eu conduzi uma pesquisa nesse assunto por conta própria, percebi que eu estava muito melhor sozinho.
Pensei que talvez eu fosse mais feliz lendo a Bíblia por conta própria e praticando o que eu aprendi, já que a igreja que mais atraía no dia em que pensei essas coisas havia me decepcionado grandemente. Mas não foi fácil e, após duas tentativas, desisti.
No segundo semestre do curso de filosofia, eu aprendi, durante a aula de ética, que a Bíblia era, na verdade, uma seleção feita em âmbito intelectual por convocação de um tal Constantino. Embora eu não acreditasse que livros que continham ensinamentos legítimos tinham ficado de fora da Bíblia, eu pensei que livros ilegítimos poderiam ter se esgueirado na seleção. Isso, alimentado por dúvidas sobre como a religião do amor poderia se mostrar tão intolerante dependendo do referencial doutrinário, me levou a escolher quais livros eu iria seguir (afinal, se um grupo medievo pôde, também eu poderia). Partindo do pressuposto que ser cristão é seguir Cristo, eu pensei que os Evangelhos seriam o bastante. E, de fato, Cristo é a maior autoridade do cristianismo. E, por anos, eu vivi tendo somente os Evangelhos como regra de vida e vivi muito bem. Como consequência, eu rejeitei sumariamente todas as epístolas de Paulo, que também ensinavam coisas que Cristo não havia ensinado. Na época, eu não sabia que o Apocalipse também tinha ensinamentos diretos de Cristo, mas isso não fez muita diferença.
Certa noite, resolvi atender a uma reunião das testemunhas de Jeová e o líder religioso (não sei se é lícito chamá-lo de “pastor”, porque as testemunhas usam outro termo, “ancião”, se não me engano) mencionou que a Bíblia inteira tinha muita sabedoria. Eu estava fazendo anotações de obras filosóficas na época, como faço ainda hoje, e pensei que talvez fosse uma boa ideia fazer o mesmo com a Bíblia, mesmo que eu não fosse aceitar tudo como regra de salvação.
Dividi a Bíblia em dez partes e me propus a ler um capítulo de cada parte por dia, para conciliar velocidade de leitura com energia e força de vontade (lê-la cronologicamente pode ser exaustivo, sendo melhor que o primeiro contato seja feito numa ordem oportuna).
As anotações não estavam sendo feitas, porque pensei que eu falaria menos besteira se eu lesse ela totalmente antes de fazê-las, que seria feito numa segunda leitura, em ordem cronológica. Paralelamente, Echo, o morcego, estava passando por uns problemas com a mãe dele, que estava sendo insensível, já fazia um mês mais ou menos: a avó dele havia acabado de falecer e a mãe dele não entendia seu sofrimento. Além do mais, ela não achava saudável que ele tivesse amigos como eu e o colocou na terapia, na qual ele começou tratamento para consertar sua urofilia, algo que ele não achava errado, mas que sua mãe e seu terapeuta concordavam que era. Sabendo desses problemas, eu fiz uma oração por ele, a qual foi (surpreendentemente, admito) atendida na manhã seguinte. A mãe havia mudado seu parecer, o deixou voltar a se relacionar comigo e meus amigos e o havia tirado da terapia. Eu fiquei estupefato. Minha oração havia sido atendida subitamente e de forma melhor do que eu havia pensado. E não havia sido a primeira vez, mas a segunda.
Parei meus planos e comecei as anotações imediatamente, reiniciando minha leitura da Bíblia, como forma de agradecimento (porque eu acredito que as obras têm maior peso que a fé).
A leitura e o fichamento foram concluídos em um mês e meio, a partir da Almeida de 1819 (com auxílio da Almeida Recebida, da versão dos Capuchinhos e da Bíblia Livre, todas obtidas no repositório do Crosswire, acessível pelo Sword com a interface Xiphos, obtenível no repositório do Linux Mint), porque foi a primeira em português em volume único, de forma que eu pudesse, nas leituras subsequentes, perceber a evolução das traduções. E, de fato, a Bíblia inteira tem muita sabedoria. Nessa leitura, desenvolvi um apreço por dois conceitos hoje em crise: inerrância bíblica e cânon bíblico.
Como cristão, o Novo Testamento tem um peso gigante pra mim. E as epístolas de Paulo me intrigaram, não de forma positiva. Muitos ensinamentos de Paulo, tal como alguns aspectos de sua atitude, parecem ir contra os ensinamentos de Jesus. Eu pensei que talvez fosse uma falha de entendimento de minha parte e pensei que Paulo, sempre que introduzia algum preceito que Jesus não havia introduzido, estava somente dando conselho, tal como Salomão faz com os Provérbios, de forma que seguiria o conselho quem quisesse. Então, Paulo não seria necessário à salvação, visto que Jesus seria o único caminho. Mas aí Paulo diz que os homossexuais, por exemplo, não herdarão o Reino. Aí que surge o problema: se Paulo nunca viu Jesus, passou pouco tempo com os apóstolos, supostamente herda sua doutrina desses apóstolos e prega que o cristão está desobrigado da Lei de Moisés, com que autoridade ele diz essas coisas?

Antes que se pense que esse é um problema pequeno, é importante mostrar por que ele é enorme: essa pergunta ataca a autoridade de Paulo e, consequentemente, os dois conceitos que eu havia acabado de adotar, a saber, a inerrância (a Bíblia não se contradiz) e o cânon (todos os sessenta e seis tomos de que a Bíblia é composta são divinamente inspirados).
Existem outras contradições, quer sejam aparentes ou não, que levam à práticas hediondas na igreja, não apenas da perseguição aos homossexuais, mas também como a prática da dissociação entre as testemunhas de Jeová. Paulo diz que não devemos nos associar com pecadores, mas Jesus o fazia com frequência durante seu ministério. Se levarmos esse raciocínio até suas últimas consequências, Paulo estaria repreendendo o comportamento de Jesus, o qual disse que deveríamos imitá-lo. Depois da leitura completa, fiquei tão perplexo que resolvi pesquisar se mais alguém pensa como eu. Pra minha surpresa, um punhado de estudiosos, tanto do passado como da atualidade, pensam da mesma forma. Para citar apenas um exemplo do nosso país e da atualidade, para que o interessado tenha um ponto de partida, Fábio toca o assunto vez por outra em suas lições de hermenêutica. Mas é claro que não é o primeiro e nem é o único.
Esse é um assunto que requer mais pesquisa da minha parte, porque é algo muito sério. Não estou dizendo que Paulo é completamente inútil ou pernicioso e acho que encarar o que ele diz como conselho e não como regra de salvação é razoável. Não obstante, não me parece que Paulo tem qualquer autoridade para fechar as portas da salvação para qualquer indivíduo, porque esse é direito divino. Paulo repreendeu Pedro, o que mostra que nenhum ser humano, mesmo que seja apóstolo, é irrepreensível. Então, há a possibilidade de Paulo ter errado. Porém, eu não posso confirmar absolutamente nada por enquanto.
Isso me dá algo pra estudar durante as férias da universidade. A defesa da minha monografia é amanhã, espero que dê certo.