Pedra, Papel e Tesoura

30 de setembro de 2021

Ética.

Filed under: Saúde e bem-estar — Tags:, , — Yure @ 19:09

Um dia, o vigia do metrô me perguntou o que é filosofia. Este tipo de pergunta tende a causar embaraços em qualquer um, inclusive aos filósofos. Felizmente, eu tenho uma resposta pronta pra satisfazer os leigos: filosofia é o estudo racional das coisas que a ciência não estuda. Eu falo isto porque tanto a filosofia como a ciência são meios de buscar racionalmente a verdade, mas são meios diferentes. A definição que eu uso se segue necessariamente disto. Se é racional, mas não ciência, é filosofia. O vigia ficou satisfeito. Aí eu dei exemplos de coisas que a filosofia estuda, mas que a ciência não estuda: metafísica, lógica, epistemologia, teoria do conhecimento, ética, estética, arte e política. Claro que eu não usei estes nomes (falei “Deus”, “bem e mal”, “prazer e dor”, entre outros). E este texto é sobre um destes objetos da filosofia: a ética.

Ética é a parte da filosofia interessada na ação individual correta. Mas “correta” é relativo, então precisamos definir o que torna uma atitude “correta”. Historicamente, a ética estava interessada na busca da felicidade (é o caso dos filósofos do período helenístico, como Epicuro e Sêneca), então ação correta era aquela que levava à felicidade. Mas, desde Kant, a ética está preocupada com a ação justa. Então, embora tenha havido um período na história da filosofia em que a ação correta era aquela que conduzia à vida feliz, hoje a ética considera a ação correta como aquela que é “justa”. Infelizmente, este é outro termo ambíguo: a justiça aristotélica não é a justiça kantiana. Dependerá do ponto de vista… E é sobre estas duas éticas que eu pretendo escrever hoje: a ética das virtudes (Aristóteles) e a ética do dever (Kant).

Virtudes aristotélicas.

Para Aristóteles, existem dois tipos de virtude: as que devem ser buscadas em grau máximo e as que devem ser buscadas pela mediania. Entre as que devem ser buscadas em grau máximo se incluem a sabedoria, a ciência e o conhecimento prático. Não se pode falar em “excesso de sabedoria”, embora possamos falar de carência de sabedoria (ignorância). No entanto, as virtudes morais funcionam de um jeito diferente…

Virtudes morais devem ser buscadas pela mediania. O excesso e a falta de determinada disposição arruína a virtude. Isso ficará mais claro se usarmos exemplos. Comecemos pela disposição para enfrentar o perigo. Se você tem falta de disposição pra enfrentar o perigo, você é covarde. A pessoa covarde foge dos riscos que precisa assumir. Porém, se você procura riscos e perigos desnecessários, você está sendo temerário. O temerário busca riscos sem necessidade, o que é uma forma idiota de agir. Se você enfrenta os riscos que você precisa enfrentar, sem procurar riscos desnecessários, você é corajoso, sendo a coragem o meio-termo entre a covardia e a temeridade. Para falar dos nossos tempos, podemos dizer que tanto o covarde quanto o temerário têm razões diferentes para não se vacinarem: o covarde tem medo irracional da vacina, enquanto o temerário acha que não precisa dela e que obtê-la é perda de tempo. O temerário talvez até mesmo rejeite o uso de máscara.

Outro exemplo é a liberalidade. Você é liberal quando você gasta sem se endividar e dá seu excedente aos que precisam dele mais do que você. O excesso de disposição para o gasto se chama prodigalidade e é um vício: você gasta até contrair dívidas ou dá dinheiro aos outros quando você necessita de tal dinheiro mais que aqueles que recebem o dinheiro que você dá. A carência de disposição para o gasto é a avareza, caracterizada pela relutância em gastar até com o necessário e a retenção do excedente mesmo que outro precise dele mais que você.

Ainda outro exemplo é a humildade. Aristóteles reconhece que não existe nome pra muitos vícios e o excesso de disposição para resistir à arrogância não tem nome, mas é caracterizado por recusar recompensas e elogios que você merece. É um tipo de injustiça para consigo mesmo. Já a arrogância, a falta desta disposição, é caracterizada por se achar mais importante do que realmente se é. Humildade é estar ciente da sua importância, sem se atribuir mais ou menos do que se merece.

Mas suponhamos que você queira adquirir uma virtude ou se livrar de um vício… Como fazer isso? Felizmente, Aristóteles afirma que a virtude pode ser ensinada. Isso porque tanto virtudes como vícios são hábitos. O que faz a virtude e o vício é o hábito de agir de determinada forma. Assim, para adquirir uma virtude ou largar um vício, você deve praticar. Pratique a moderação de suas disposições naturais e você adquirirá virtude moral, se é isso que você quer. Porém, se você se acostumar a agir com excessos ou carências, você adquirirá vícios morais. Quando adquirido, o vício é difícil de quebrar, justamente porque se tornou hábito. Também a virtude, depois de contraída, é difícil de corromper. É igual a aprender uma nova habilidade, como o desenho ou a música.

O imperativo categórico.

Sobre a ética das virtudes de Aristóteles, basta o que já dissemos. Entremos agora no assunto da ética do dever, de Kant. Ele começou sua reflexão sobre a ética após perceber que a moral de diferentes povos é muito diferente entre si. Ele se perguntava se não haveria algum princípio moral com o qual todos nós poderíamos concordar. Sua ideia não era criar uma lei única que valesse em todos os lugares e em todos os tempos, mas apenas um princípio que pudesse ser aceito por todos (ou grande maioria), o que já seria de grande ajuda no entendimento entre os seres humanos.

Kant elabora, então, aquilo que ele chamou de imperativo categórico. É “imperativo” porque é uma ordem e é “categórico” porque não comporta exceções. Ele é resumido na frase “age de tal forma que tua ação possa se tornar lei da natureza”. Em outras palavras: aja como se todo o mundo fosse te imitar. Quando você estiver diante de um dilema moral, avalie cada opção segundo o critério: qual destas opções tornaria o mundo mais justo se todos a escolhessem? Se você conclui que a opção X é a opção que tornaria o mundo mais justo se fosse escolhida por todos, você não apenas pode fazer essa escolha, você deve. É que todo ser humano tem um compromisso com seus pares. Então, se algo passa na avaliação do imperativo categórico, é seu dever moral agir daquela forma, sem exceções. Daí o nome “ética do dever”. Para Kant, este princípio moral pode ser adotado por todos. Aliás, deve ser.

Importante observar que, embora a ideia kantiana do imperativo categórico não ser aplicada pela maioria das pessoas hoje, a ideia de princípios morais mínimos não foi abandonada. A sua encarnação mais recente é a Declaração dos Direitos Humanos, que elenca direitos mínimos inerentes à pessoa humana.

O problema de éticas 100% racionais.

O problema que Kant não viu e que David Hume viu é que nossas emoções e sentimentos têm uma força muito grande em nossos julgamentos morais. Por esta razão, tentar fazer uma moral ou elaborar um princípio moral totalmente racional é ingenuidade. Na hora das escolhas concretas, a emoção conta muito. É muito difícil a um ser humano “fazer a coisa certa” na hora em que a escolha deve ser tomada (embora a razão tenha um papel preparatório para tal escolha antes de ela ser requerida). Com isto, Hume propõe que a emoção não pode ser excluída da reflexão ética, tendo tanto peso ou até mais peso que a razão no momento da escolha concreta.

A nossa lei não é agnóstica a isto. Por esta razão, existem atenuantes de pena para crimes cometidos em certas condições de estresse emocional. A maioria das pessoas concorda que um homicida é mais digno de perdão se matou por medo de perder a própria vida ou pra defender o filho. Também é mais digno de perdão o ladrão que rouba por necessidade e não por luxo. Assim, a ideia de que emoções prejudicam nossa reflexão moral é tão verídica que nossas leis refletem isto.

Recomendações.

Como Hume bem observou, a emoção pesa bastante na hora de fazer uma escolha concreta. Talvez por isso seja difícil fazer o que é certo. A emoção ofusca a razão e seria ingenuidade pensar que esse não é o caso. Mesmo a pessoa que parece incorruptível, diante das tentações da riqueza ou do prazer sexual pode acabar fazendo algo que depois se arrepende. Mesmo que a pessoa tenha a virtude de resistir a tais tentações, ceder repetidas vezes a tais impulsos logo produzirá um vício, se dermos crédito ao que também diz Aristóteles. No entanto, também Aristóteles diz que é mais fácil simpatizar com a pessoa que fez algo errado por falta de força de vontade (sabendo que é errado e não querendo fazer, mas incapaz de resistir), embora seja mais difícil, inclusive indesejado, simpatizar com a pessoa que faz algo errado de boa vontade e sem arrependimentos. Considerar isso nos levará a promulgar leis melhores.

Se virtude é um hábito, não seria ruim nos treinarmos para obtê-la através da prática. Isso é particularmente verdade no caso das virtudes intelectuais, como a sabedoria, que são buscadas pelo grau máximo, em vez de pela mediania. Busquemos, portanto, o máximo de conhecimento possível. Além disso, sendo hábito, a virtude pode também ser ensinada e tal dado não pode ser ignorado pelo sistema educacional. A virtude deve ser ensinada e crescer pela prática. No entanto, algumas virtudes são mais fáceis para alguns e mais difíceis para outros. A ajuda mútua deveria ser empregada no aperfeiçoamento moral, atento aos limites de cada um.

É preciso entender que o vício é algo prejudicial. Se não é prejudicial, é improvável que seja vício. A insistência na virtude não deve ser usada como pretexto pra atitudes exageradas, especialmente por parte de legisladores. Quando você estiver se perguntando se algo que você está fazendo é vicioso, seria interessante pensar se aquilo está fazendo mal a você ou aos outros. Se não estiver, talvez não seja algo com que se preocupar. A partir do que momento em que passa a fazer mal, você entrou no âmbito do vício e a prática repetida do ato formará o hábito de agir viciosamente.

Algumas dúvidas morais podem ser respondidas ao observar o comportamento moral de outras culturas. Talvez lidemos melhor com nossos problemas morais vendo como outros povos resolvem os mesmos problemas. Não obstante, mesmo que não adotemos as ideias de outras culturas, é importante também respeitá-las, em vez de condenar suas escolhas morais com base nas de nossa sociedade. Cada povo é diferente e é melhor assim.

30 de junho de 2020

Leituras da semana #10.

Filed under: Livros — Tags:, , , , , — Yure @ 19:02

Continuando a leitura de: Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche); Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud); Arte poética (Aristóteles); A Bíblia Sagrada (Jehovah); O anticristo (Nietzsche); Antologia ilustrada de filosofia (Ubaldo Nicola); A arte de escrever (Schopenhauer); Assim falava Zaratustra (Nietzsche); Aurora (Nietzsche).

Além do bem e do mal, ou prelúdio de uma filosofia do futuro (Nietzsche).

Nietzsche aponta que, já em sua época, havia uma tendência a considerar a ciência como mais importante que a filosofia. Pra ele, isso acontece por uma variedade de razões, mas principalmente porque os filósofos de sua época acabavam, com seus livros, inspirando desprezo pela filosofia. Imagine uma mulher lendo Parerga e Paralipomena, de Schopenhauer, o quão absurdo ela iria achar aquilo. Nietzsche afirma, apesar de sua reverência por Schopenhauer, que o ciúme que Schopenhauer tinha de Hegel acabava por ferrar a recepção de sua obra.

Parece que os filósofos mais bem quistos na academia da época de Nietzsche eram justamente os mais inúteis e complicados (dentre os quais não estava Schopenhauer). Também os mais imparciais, sem objetivos, “desinteressados”, a quem Nietzsche compara com vasos sem conteúdo. Dentre esses desinteressados estavam os céticos conservadores da época, os quais odiavam qualquer resposta definitiva a qualquer pergunta. Por quê? Porque certezas mudam o status quo. Se você duvidar de tudo quanto se apresenta de novo, se você se abstém de julgar, você trabalha pra que as coisas não mudem. É um ceticismo estratégico, disfarçado na separação entre o pensamento e a ação (em conceitos como “pensamento puro”).

Margarida Trip, como Minerva, instruindo sua irmã, Anna Maria Trip. Autor: Ferdinand Bol. Fonte: Wikimedia Commons.

Uma filosofia dessas, especialmente quando também se pretende ser algo de “elevado”, inspira desconfiança em qualquer cientista ou aspirante a homem da ciência. Não deveria ser assim. A opinião que os não-filósofos têm da filosofia é quase a opinião que eles têm do eremita ou de um guru good vibes. Isso é totalmente errado, mas devemos culpar os vulgos por terem essa impressão ou a nós mesmos por darmos a eles motivos pra isso? Mas isso não quer dizer que os cientistas estão livres de reprimendas, nem por parte de filósofos e nem de leigos. A ciência passa de si uma imagem de fria e apática, de competição rancorosa entre os que dela participam e até de mediocridade, quando um determinado cientista, por ter um trabalho que foge demais dos trabalhos comuns, acaba por precisar ser sustentado por outros. Isso se relaciona à mediocridade porque o cientista passa a fazer apenas o que é minimamente necessário pra receber seu pagamento.

Nietzsche então muda de assunto pra falar que também nossa gratidão deve ser limitada. Se você não sabe dosar sua gratidão, será escravo de qualquer um que te fizer um favor. Na verdade, Nietzsche já menciou isso anteriormente no livro, sobre como as pessoas se aproveitam da gratidão dos outros pra levá-las a agir contra seus próprios interesses. É o que acontece hoje com o pagamento do auxílio emergencial: quem receber, fica grato ao cara que permitiu que maio de 2020 se tornasse o mês onde mais mortes ocorreram no Brasil. E a coisa vai ficar pior, mas, por causa dos seiscentos paus… Existem virtudes pelas quais se paga caro. Por isso saiba quando negar sua gratidão. Saiba quando confrontar seu país com o que há de mais perigoso a ele: a revolução interna.

Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (Freud).

Embora Freud admita que sua teoria acerca dos instintos é limitada e provisória, deixando várias pontas soltas na teoria do princípio do prazer, ele afirma que tal teoria não deve ser totalmente rejeitada só por causa disso. Existem teorias concorrentes pra explicar o mesmo fenômeno e cada um deveria ficar com a teoria que melhor resiste às críticas. Mesmo que não tenhamos certeza do que estamos pensando, dizendo ou fazendo, é certo que existem opiniões melhores que outras.

Logo, o fato de uma pessoa aparecer com uma hipótese ainda não provada não garante que essa pessoa está errada, mas também não garante que sua hipótese tem o mesmo valor que outras teorias concorrentes. Essa competição entre pensadores revela quais são os melhores. E, se você estiver errado, se retrate. Ciência não é catecismo e nem religião. Nada na ciência precisa ser dogma. Não há nenhuma vergonha em um cientista admitir que errou, mesmo que isso implique uma reação em cadeia que leve vários outros que basearam seus trabalhos num erro a também se retratarem. Com isso, termina Além do Princípio do Prazer, e começa Psicologia de Grupo, onde Freud analisa a influência do pertencimento a um grupo ou relação social sobre o ego.

A psicologia de grupo difere da psicologia individual porque não considera a mente do homem como indivíduo, mas como membro de um grupo específico. Ela não estuda eu ou você especificamente, mas nos estuda como parte de uma nação (brasileiros), como parte de um sexo (macho humano), como parte de uma classe (professor), como parte de uma família (filho, irmão). A função da psicologia social é estudar as influências do pertencimento a um grupo sobre a mente de indivíduos, tendo um alcance, por isso, mais pervasivo. A necessidade de uma psicologia social surge com a pergunta: por que determinadas pessoas agem de modo diferente quando estão em um grupo? Algumas ideias só surgem quando a pessoa se encontra com seu grupo. Já outras ideias que já existem na pessoa só encontram expressão em um grupo. Separado do grupo, a pessoa volta à normalidade. Por que isso acontece? Porque uma pessoa pode agir de um jeito sozinha e de outro jeito quando se sente parte de um grupo? A psicologia individual não basta pra responder isso satisfatoriamente.

As três graças. Foto da Bibliothèque de Toulouse. Fonte: Wikimedia Commons.

Citando Le Bon, Freud explica que uma das razões pelas quais a pessoa age de um jeito sozinha e de outro jeito quando parte de um grupo é o fato de que uma associação humana é mais poderosa que um homem só. Quando você está num grupo violento, você se sente empoderado pra satisfazer suas próprias tendências violentas, se estas se coadunam com a índole do grupo. Exemplo, suponhamos que você passe na frente do Supremo Tribunal Federal todos os dias. Você odeia aquela corte, mas não faz nada porque teme punição. Agora, você descobre que tem um grupo plenejando um ataque à corte. É sua chance de satisfazer a vontade, porque é mais difícil punir um grupo do que um sujeito em particular. Dependendo do grupo, sentimos que não precisamos nos segurar e algumas tendências que mantemos reprimidas afloram. Isso nem sempre é ruim, mas nem sempre é bom também. Tudo depende do grupo e de qual tendência é habilitada pelo grupo.

Mas existem outras coisas que fazem com que o sujeito mude seu comportamento quando está em um grupo: o contágio e a dissolução. O pensamento de um grupo é mais ou menos homogêneo quanto maior o trânsito de ideias e comportamentos considerados padrão. Cada membro do grupo passa a pensar e agir como seu conterrâneo, porque ele está em um lugar onde suas ideias são aceitas, facilitando que ele aceite outras ideias daquele grupo. Isso geralmente ocorre depois da dissolução: quando você se identifica com o grupo, você se torna o grupo quando está com seus colegas, se sacrificando por ele, agindo em função dele e obedecendo aos ideias dele. Pessoas que se dissolvem num grupo deixam, na prática, de ser quem são. Perdem sua individualidade e agem como um homem só.

Assim, o sentimento de pertencimento a um grupo leva as pessoas a experimentarem empoderamento, contágio ideológico e sugestionabilidade. Essas três coisas tornam o homem uma força ameaçadora quando age em grupo, visando um objetivo comum com seus conterrâneos: sente que nada é impossível ao grupo, mantém a ideologia do grupo homogênea e cada um influencia o outro permanecer na causa. Esses elementos também são observados naquilo que hoje o povo chama de “mentalidade de rebanho“.

Arte poética (Aristóteles).

Ao falar dos episódios em que uma tragédia pode se dividir, Aristóteles aconselha a variedade. Quando uma peça teatral fica muito uniforme, a audiência acaba ficando satisfeita do assunto tratado. Se o assunto continua, ocorre uma sensação horrível de tédio e tempo perdido. Portanto, ao escrever uma tragédia, ou mesmo uma comédia, dividida em episódios, é preciso que cada episódio seja suficientemente diferente dos outros pra evitar que o leitor ou a audiência fiquem entediados. Um bom jeito de fazer isso é introduzindo pormenores na história que mantenham a atenção do leitor ou da audiência. Tais pormenores podem ser fantasiosos ou pouco realistas. O fantástico pode também ser parte da trama principal. Na verdade, Aristóteles diz que é mais interessante mostrar algo impossível, mas plausível, do que mostrar algo possível, mas incrível. A ficção científica moderna está tão cheia de impossibilidades plausíveis, que algumas de suas “predições” se mostraram bem reais.

No entanto, Aristóteles adverte: uma trama precisa ter apenas o número de passos necessários para que a história seja entregue. Se você pega uma trama pequena e a dilui em vários episódios, cada episódio será insignificante e a trama se moverá lentamente, a ponto de perder a atenção da audiência. Aristóteles pergunta o que seria da recepção de Édipo se ele tivesse o mesmo número de versos que a Ilíada. Para usar um exemplo de otaku, você acha que alguém teria saco pra Neon Genesis Evangelion se este tivesse cinquenta e dois episódios? Você não acha que Appmon seria melhor em formato de vinte e seis episódios (o que removeria todos os fillers)? Assim, se a história que você tem mente for melhor apresentada em formato curto, não a espiche: quanto mais longa a história, mais facilmente a audiência se entedia.

Alegoria da poesia lírica. Autor: François Boucher. Fonte: Wikimedia Commons.

A poesia na época de Aristóteles tinha como objeto a vida das pessoas ilustres do passado ou do presente. Então, ao escrever uma poesia trágica ou comédica, o autor tinha três opções: escrever em verso a realidade, escrever em verso a percepção popular sobre a realidade ou escrever em verso aquilo que deveria ser real (mas não é). Se fôssemos adaptar esse critério pra hoje, tempos em que não se faz mais apenas poesia ou prosa sobre pessoas que existem ou existiram, o primeiro caso seria o conto biográfico ou historicamente correto, o segundo caso seria a fantasia “baseada em história real” e o terceiro seria uma história totalmente original.

Disso decorre que a verdade é mais necessária a certos estilos de poesia do que a outros (e isso está também relacionado ao uso de metáforas fantásticas em vez de expressões literais), mas, se o objetivo da ficção é entreter, a verdade é um meio que se deve usar ou não dependendo do que você achar que será mais interessante. Isso não é válido somente pra verdade, mas pra todos os elementos do trabalho e de sua encenação: em algumas peças, é preciso gesticular ou dançar, mas não em todas, se isso atrapalhar a recepção da obra. O historicamente correto é secundário. Por causa disso, a poesia trágica, bem como trabalhos de ficção em geral, mostram os homens como melhores do que realmente são. Na ficção moderna, um exemplo extremo disso seria Dragon Ball, onde lutadores de artes marciais detém habilidades absurdas, e um exemplo em menor grau seria Danganronpa. Quando escrevo esses exemplos, eu imagino meu professor de metafísica atrás de mim, me julgando por usar exemplos tão vulgares.

A Bíblia Sagrada (Jehovah).

Deus mandou seus anjos para Sodoma a fim de verificar as queixas que vinham de lá. Os anjos entraram na casa de Ló. Acontece então o infame episódio no qual todos os homens da cidade, e talvez também os meninos, tentaram invadir a casa de Ló pra “conhecer” os anjos que ele hospedou. “Conhecer”, neste contexto, é um eufemismo pra fazer sexo. Diante dessa afronta, os anjos cegaram os homens que tentavam invadir, tiraram Ló e sua família daquela cidade, e permitiram que Deus destruísse Sodoma, bem como Gomorra.

Muitas pessoas dizem que a homossexualidade em Sodoma foi a causa da destruição, mas, de acordo com A Profecia de Ezequiel, os pecados de Sodoma foram orgulho, abudância de alimento, insolência e falta de empatia para com pobres e necessitados (Ezequiel 16:49). Se a homossexualidade fosse um problema (numa época anterior a Moisés, logo antes de ser revelada qualquer interdição à homossexualidade), teria sido mero agravante, tanto que A Profecia de Ezequiel diz, várias vezes, que Israel vinha agindo pior que Sodoma e Gomorra, apesar de Israel ter interdições à homossexualidade.

Visão de Ezequiel: um grupo de cadáveres e esqueletos emerge para fora das tumbas e, acima deles, cinco meninos alados segurando uma bandeira. Autor: Giorgio Ghisi. Fonte: Wikimedia Commons.

Após Ló sair de Sodoma, ele estava sem filhos e também sem esposa (porquanto a esposa de Ló virou uma estátua de sal). Assim, não havia como Ló ter um filho macho. Diante desse impasse, as filhas de Ló tiveram uma ideia: embebedaram Ló e se relacionaram com ele. Lembrando: isto foi antes de Moisés, então não havia interdição explícita ao incesto. Dessa união, nasceram Moab e Ben-Ammi.

Finalmente, na velhice, como Deus havia prometido, Sara pariu um filho a Abraão. Esse filho era Isaque. Hagar e Ismael foram então rejeitados e expulsos de casa, por pedido de Sara, embora Abraão tivesse se oposto a isso. Tanto Isaque quanto Ismael foram abençoados, porém. Deus resolveu testar a fidelidade de Abraão ordenando Abraão a sacrificar Isaque, mas, faltando apenas que Abraão degolasse Isaque, um anjo mandou Abraão parar, avisando que era apenas um teste. Mais um pouco e Abraão teria matado seu filho.

Em seguida, na narrativa bíblica, morre Sara e Abraão compra uma sepultura dos filhos de Heth. Em vias de morrer, Abraão proíbe que Isaque se case com qualquer mulher, instituindo uma pessoa que vá buscar uma mulher que valha a pena para que esta se case com Isaque. O servo foi e, com a ajuda de Deus, encontrou Rebeca, futura esposa de Isaque. Rebeca vai de boa vontade, com a aprovação dos pais. Isaque, de quarenta anos, se casa com Rebeca. Como Rebeca era estéril, Isaque teve que orar a Deus pra que Rebeca concebesse. A oração foi atendida. Rebeca pariu gêmeos: Esaú, pai dos edomitas, e Jacó, que mais tarde geraria os patriarcas das doze tribos de Israel (e Diná). Esaú, em sua maturidade, ficou com duas mulheres que davam desgosto aos pais de Esaú e Jacó. Talvez por isso que Rebeca, mãe de Jacó, instruiu Jacó a se aproveitar da cegueira de seu pai a fim de tomar pra si as bênçãos destinadas a Esaú, passando-se por este.

O anticristo (Nietzsche).

De onde se origina o cristianismo como religião? Pra Nietzsche, responder a esta questão requer a compreensão do judaísmo, uma religião considerada por Nietzsche como superior em termos psicológicos, do qual o crisitianismo é a consequência lógica. O cristianismo não é uma oposição ao judaísmo, mas sua forma completa, ele diz, inclusive citando Cristo: a salvação vem dos judeus. Mas a separação entre cristianismo e judaísmo foi tão aprofundada ao longo da história que existem cristãos antissemitas. Isso é um absurdo: primeiro porque Jesus era judeu e segundo porque o cristianismo é, diz Nietzsche, a consequência final do judaísmo. Têm o mesmo Deus, o Deus da justiça. Com isso em mente, a semelhança entre as duas coisas fica fácil de ver.

Por que o cristianismo é tão popular? Nietzsche afirma que é porque valorizamos o amor e o cristianismo se mostra como a religião do amor. Além disso, ao colocar ênfase na castidade, o cristão internaliza sua religião, pois passa a praticá-la internamente como controle do desejo. Isso põe o cristianismo pra dentro da identidade da pessoa, fazendo com que ela se sinta cristã. O mesmo é feito com outros sentimentos, os quais, porquanto são sentimentos, são subjetivos: fé, esperança e caridade. Colocar o cristianismo pra dentro da pessoa, através do amor e de outros sentimentos, torna o cristianismo popular. Ele se torna parte da identidade da pessoa.

Mas há um problema com o cristianismo e também com o judaísmo. Quando Israel passa a ver em tudo uma recompensa ou punição divina, ele começa a introduzir na lógica causal algo estranho. As causas naturais desaparecem do raciocínio. Eu até mesmo lembro de ter lido em algum livro, não lembro qual, que uma determinada escola de pensadores judeus medievais acreditava que não havia causalidade natural. Se eu acendo uma vela e o fogo ilumina, é porque Deus interfere diretamente na cena assegurando que assim seja. É como se a criação divina não fosse autônoma. Levada a extremos, tal doutrina não chegaria até mesmo a negar a liberdade humana?

Alegoria do livre comércio. Autor: Gerard de Lairesse. Fonte: Wikimedia Commons.

Assim, ver tudo em termos de punição e recompensa é contrário a outras doutrinas. Deus pode intervir, mas ele não intervém o tempo todo. Além disso, ver as coisas dessa forma leva também o fiel a se culpar por tudo de ruim que lhe ocorre (“Deus está me punindo por algo que fiz”), quando existem coisas que claramente não são culpa dele. Isso depõe contra a ideia de ordem moral do mundo: nem tudo o que recebemos de ruim é punição divina por algo que tenhamos feito. Pode ser só um imprevisto, um acaso (Eclesiastes 9:11).

Mas isso não é tudo: ao ver tudo em termos de punição e recompensa divinas, você dá ao sacerdote, que é o intérprete da vontade de Deus, um poder enorme. Não há garantia de que o sacerdote saiba o que está dizendo. Afinal, em algumas igrejas evangélicas populares, basta ser casado pra ser pastor! Ele não está usando o nome de Deus em vão, quando age como um cabo eleitoral? Qual é a garantia de que ele está realmente falando em nome de Deus, e não tentando levar o povo a pensar de um jeito que lhe favoreça?

Se assim é, qual é o uso feito do dinheiro do dízimo (do qual Deus não precisa)? Nietzsche, por isso, chama os sacerdotes de parasitas. Seu trabalho é convencer você a dar o dízimo, porque essa é a “vontade de Deus”, como se Deus tivesse ganância. Isso não é trabalho, mas exploração da fé da população pra ganho pessoal. No entanto, o povo sente que precisa dos sacerdotes pra acessar a vontade de Deus. Isso mantém a aura de indispensabilidade dos pastores e dos padres. A classe sacerdotal talvez nunca será extinta. E, enquanto ela existir, haverá pessoas mal-intencionadas dispostas a fazer do sacerdócio uma carreira lucrativa.

Antologia ilustrada de filosofia (Ubaldo Nicola).

Terminada a seção sobre a escola eleática, Nicola começa sua exposição dos sofistas. Os sofistas faziam do saber uma profissão. São os primeiros professores remunerados da história da filosofia. Eles ensinavam, sobretudo, a retórica. Por quê? Porque a escola sofista também acreditava que não existem verdades absolutas na atividade humana, de forma que tudo é opinião nos negócios humanos. Se tudo é opinião, a mais útil arte que existe é a arte de levar os outros a concordar com você. Por isso a retórica, a arte de discursar bem, era ensinada por eles.

Seu público-alvo eram os jovens que queriam entrar na política. Você não deveria ficar surpreso… As razões pra isso talvez estivessem associadas ao fato de que os sofistas eram também estrangeiros, o que os privava de direitos políticos restritos ao cidadão grego. Se eles não podiam interferir diretamente na política, ao menos formariam aqueles que nela poderiam interferir. Por isso não se deve mandar brasileiros pra estudar no exterior.

Mas então, se não existe verdade objetiva nos negócios humanos, por que nós deveríamos nos dar ao debate ou participar da política? Não seria melhor que cada um simplesmente seguisse seu coração? De maneira alguma. Os sofistas eram professores e acreditavam que a educação tinha seu valor no estabelecimento e propagação de opiniões úteis ao indivíduo e à sociedade. Se tudo é questão de opinião, ainda precisamos da educação pra selecionar as opiniões mais úteis a nós e aos que amamos, não necessariamente a opinião “certa”. Isso está por trás da doutrina do relativismo: se preocupar com útil, o belo, o justo, não necessariamente o verdadeiro, leva cada homem e cada sociedade a adotar leis e costumes diferentes, porque os conceitos de útil, belo e justo variam de pessoa pra pessoa, de nação pra nação.

Alegoria da justiça e da paz. Autor: Corrado Giaquinto. Fonte: Wikimedia Commons.

Assim, quando você debate com alguém que está convicto de ter razão, você tentar prová-lo errado não surtirá efeito. O que você deve fazer é mostrá-lo que a opinião dele lhe acarreterá consequências ruins. Ou melhor: mostrar como a vida dele melhoraria se ele mudasse de opinião! Nietzsche, mais tarde, retoma este ponto: se você acredita ter encontrado a verdade, a menos que tal verdade se mostre também útil, ela não será crida e estará em desvantagem diante de mentiras as quais, por serem mais úteis, são aceitas como “verdade”. Simplesmente argumentar logicamente não basta. Convencer alguém requer que a pessoa com quem se debate veja que o seu ponto de vista beneficia ela também. Segue-se, portanto, que o orador ou retórico, assim como o médico, deve conduzir uma pessoa obstinada à opinião melhor, não necessariamente a mais verdadeira. A verdade não basta pra convencer uma pessoa. Se bastasse, ninguém teria votado no Bolsonaro.

O meio através do qual os sofistas exerciam seu poder era a palavra, logicamente. Desenvolvendo a arte de retórica, eles faziam umas acrobacias lógicas pra atrair novos discípulos e dinheiro. Górgias, por exemplo, conseguia provar, pela lógica, que nada existe. Mas, se você pagasse ele bem, ele iria provar que a tese de que nada existe está errada. Claro que está errada: você vê que as coisas existem, as ouve e as sente. Mas essa é a graça da retórica: levar o raciocínio a concluir exatamente o contrário do que dizem os sentidos. Claro que os aspirantes à vida política iriam querer aprender essas técnicas. Novamente, pros sofistas, isso não significava mentir (já que mentira implica que existe uma verdade, que era algo em que eles não acreditavam).

Mas levar uma pessoa a acreditar em algo não era o único uso que os sofistas faziam da palavra. Górgias, em seu Elogio de Helena, afirma que a palavra pode ser usada também pra exercer influência sobre sentimentos e emoções, o que, por seu turno, tem desdobramentos físicos. Pela palavra é possível excitar a raiva, a tristeza, a alegria, a luxúria, a compaixão, a coragem e várias outras sensações. Também é pela palavra que você pode reduzir a dor e o sofrimento, fazer a pessoa corar de vergonha, chorar, paralizar ou se acalmar. É como se a palavra funcionasse como uma droga. Nesse sentido, a sofística antecipa a psicanálise, que também usa palavras pra um efeito parecido. Excitando as emoções e os sentimentos, é mais fácil fazer com que o coração se sobreponha ao cérebro. A pessoa enfurecida não é capaz de raciocinar logicamente. Também a pessoa deprimida não consegue. Excitar emoções é um bom jeito de levar a pessoa a cometer idiotices… e a aceitar mais facilmente alguma coisa. E pronto! O livro encerra a exposição dos sofistas pra se dedicar a Sócrates.

A arte de escrever (Schopenhauer).

Schopenhauer se põe a pensar sobre a diferença entre o pensamento próprio e a leitura. Quando você lê, se impõe ao seu cérebro pensamentos novos que foram produzidos por outros, com outras disposições, outras intenções. Isso dificulta a identificação com o que está sendo lido e, consequentemente, a produtividade do sujeito. Porque, a bem da verdade, nem sempre lemos o que gostaríamos de ler. Quando isso acontece, ocupamos nossa mente com pensamentos maçantes, o que nos leva a sufocar quaisquer ideias próprias que nos ocorram naquele momento e que talvez não nos ocorram novamente.

Detalhe do teto da Capela Sistina. Autor:
Michelangelo Buonarroti. Fonte: Wikimedia Commons.

Já o pensamento próprio impõe pensamentos novos perfeitamente identificáveis. Sempre que você pensa por si, você pensa com sua própria energia, com sua própria vontade e desejo, com sua própria razão e experiência, as quais devem ser empregadas em justa medida (pois nem a razão é mais importante que a experiência e nem o contrário). Isso aumenta a produtividade, porque você está interessado. Além disso, tanto pensar quanto ler consomem tempo. Se você passa muito tempo lendo, passará pouco tempo pensando. Assim, quem lê muito provavelmente tem poucas ideias próprias e se limitará a citar as respostas de outros quando confrontado com um problema. Em GURPS, chamamos isso de “embotado”. Pra Schopenhauer, você fica “embotado” quando o hábito da leitura, por ser excessivo, degenera a capacidade da pessoa de pensar por si.

Mas seria Schopenhauer, por isso, inimigo da leitura? Se ele fosse, não escreveria livros. Schopenhauer explica que a leitura só é útil quando nós mesmos não conseguimos resolver algo com nosso próprio esforço. Quando uma questão irresolvível se impõe, convém ver como outros a resolveram. Schopenhauer diz que não há gênio no mundo que não passe por isso. Todos os pensadores encontram seus limites eventualmente e, quando isso acontece, você recorre aos livros. Assim, pra Schopenhauer, a leitura deve ser subordinada do pensamento próprio, ao pensamento orgânico, servindo como ajuda quando o pensamento próprio não pode mais avançar sem errar. Se você tem leitura, mas não pensamento próprio, você será um erudito. É o pensamento próprio que proporciona originalidade e é a originalidade que faz o pensador. Eis a diferença entre o filósofo e o historiador da filosofia, entre a testemunha direta e o historiador. Assim, a leitura não substitui o pensamento próprio, mas deve ser a ele subordinada.

Assim falava Zaratustra (Nietzsche).

Sabendo que falar de desprezo prejudica a atenção da multidão, Nietzsche resolve se dirigir ao orgulho deles. Ele diz que o homem deve ter um objetivo. Aqui, se refere provavelmente ao homem em geral, à espécie humana. Lembre-se de que o objeto do Zaratustra é o super-homem, a ideia de que o homem pode se tornar uma espécie nova e melhor, que não precisamos ser meramente humanos se existir possibilidade melhor. O super-homem é o raio que descende da núvem humana. É a concentração de sua força em um fenômeno só e explosivo.

O objetivo do homem presente é conduzir a humanidade a esse estado superior, no qual enfraquecer é o pior erro possível. Isso requer que os homens que guardam o caos dentro de si produzam suas estrelas (em língua de gente, isto é um apelo aos que têm originalidade pra que eles sejam produtivos). Apesar disso, o pessoal continuava rindo de Zaratustra, sem entender o que ele dizia. Zaratustra pondera que os anos que passou em isolamento prejudicaram sua capacidade de se fazer entender. Mas é claro, gênio. Por causa desse isolamento, ele fala de um jeito muito diferente e soa como um louco a seus pares. “Caos dentro de si”? “Produzir estrelas”? Que porcaria é essa? Fala português, homem!

Melancolia I. Autor: Albrecht Dürer. Fonte: Wikimedia Commons.

Zaratustra desiste (por enquanto) e assiste a um espetáculo que tá acontecendo na praça onde ele fez sua pregação. Havia dois palhaços numa corda bamba, um mais ágil e o outro mais lento. O mais ágil vinha rapidamente ao encontro do mais lesado. O mais ágil reclama que o lento está obstruindo o caminho ao que é mais ágil que ele. Então o palhaço ágil pula sobre o mais lento, aterrissando na corda. O movimento fez o mais lento perder o equilíbrio e cair. Dá pra ver que metáfora Nietzsche tentou entregar aqui: aquele que visa o super-homem, o homem do amanhã, não pode esperar a boa vontade dos menos capazes que ele. Para atingir esse estado, o homem precisa tomar a frente, passar por cima dos que não colaboram. Estes, aliás, não são aptos pra travessia. Por isso caem. Inobstante, tentaram atravessar a corda, aceitando o perigo. Isso ainda é admirável. Assim, pior do que tentar e falhar é não ter tentado. Não tentar é se reconhecer como fraco e incapaz.

Após o incidente, Zaratustra é aconselhado a deixar a cidade, porque todo o mundo ali o odeia e talvez não apenas riam dele da próxima vez. Zaratustra ignora e vai pra um bosque ali perto. Lá, ele decide que precisa de uns amigos novos.

Aurora (Nietzsche).

As leis e os costumes visam desencorajar comportamentos ridículos, bizarros, pretensiosos, violentos, arrogantes ou diferentes. Nisso consiste a moral civil. Mas, Nietzsche acrescenta, também os animais agem assim. Talvez se nós observarmos as razões por trás da “moral animal” tenhamos uma pista sobre o porquê de humanos também agirem segundo regras que, muitas vezes, não lhe proporcionam benefício.

Nietzsche deixa isso mais claro: tal como nossa moral visa nos camuflar, nós, homens individuais, em uma “sociedade”, também o cameleão se camufla no ambiente mudando de cor, um animal adota a aparência de outro ou adota a aparência de uma folha, areia ou pedra. Ambas as coisas têm como função permitir um ataque à presa ou fugir de um predador. As virtudes sociais humanas são o que o transformam em um “camaleão social”. Elas não têm nada de elevado ou de belo. São apenas formas de se virar na vida, especialmente se você consegue fingir que as têm. Vendo os pais agirem dessa forma, crianças aprendem esses comportamentos por imitação. Só na idade adulta eles se põem a analisar por que razão elas (e seus pais) se comportam de tal forma.

Exemplo: felicidade marital. Nietzsche afirma que o casamento pressupõe que o amor eterno é regra, em vez de exceção. Para Nietzsche, tentar eternizar qualquer emoção ou sentimento ocasiona hipocrisia. Não existe emoção que dure pra sempre e sentimentos podem se esgotar. Dessa forma, o corpo de uma mulher torna-se tedioso quando se transa com ela vez após vez. O mesmo vale pra mulher, em relação ao seu homem. Regra é o divórcio, que se torna tanto mais frequente quanto mais é facilitado. Se assim é, se o amor que embasa o casamento pode acabar, é importante que a pessoa, caso esteja insatisfeita com seu casamento, pareça estar feliz com o cônjuge. Afinal, estar casado é símbolo de status (mas esses dias estão contados). Você não quer perder esse status, não é? Então sorria, mesmo debaixo dos pratos de porcelana que quebram sobre você, porque seu casamento precisa durar.

Este é um daqueles livros em que Nietzsche se pronuncia através de aforismos, então não se afobe se eu mudo de assunto muito rápido. Ele passa então a discutir a superstição de que a atitude que mais anima você é a correta, porque o sentimento de certeza vem de Deus. Esse sentimento é explorado ainda hoje, quando um pastor diz aos fiéis: “faça o que você sente em seu coração”. Agir conforme o coração é um gancho pra levar a pessoa a não ouvir a própria razão, a não pensar, o que a leva a tomar atitudes inclusive anticristãs (Jeremias 17:9).

Menino matando um basilisco, símbolo da heresia protestante, em Munique. Foto de Onderwijsgek. Fonte: Wikimedia Commons.

Mas esse “argumento” funciona muito bem. Enfatizar o coração em vez do cérebro é uma boa forma de explorar as pessoas com mais sentimento do que razão (a maioria). Apelar pro sentimento, a seguir “o que o coração manda”, é um argumento bonito, prazeroso e que não precisa de justificação, porque já há uma inclinação em todos nós a fazer o que temos impulso de fazer, inclinação que depende justamente da razão e da força de vontade pra ser refreada. É à razão e à experiência que se deve seguir, não ao sentimento (a menos que a razão e a experiência estejam de acordo com o sentimento).

Nietzsche então volta à crítica ao cristianismo de seu tempo. Pra Nietzsche, antes do cristianismo, as pessoas faziam mais ou menos como fazem hoje no Twitter: tentam parecer melhores que as outras exibindo suas virtudes, inclusive aquelas que não têm, mas aparentam ter, tentando envergonhar aqueles que vivem de um modo menos virtuoso. É o tipo de gente que, quando acusada falsamente de uma falta moral, toma a oportunidade pra se sentir superior por estar do lado da verdade, mesmo que isso ocasione sofrimento. A ideia era posar de Mary Sue, de perfetinho, de estar do lado do bem.

Com o cristianismo, e sua ênfase na miséria humana, as pessoas entenderam que a mais importante das virtudes é a humildade… e passaram a desfilar seus defeitos em vez das qualidades! É a mesma coisa. As pessoas ainda querem se sentir melhores que as outras, agora vendo quem sofre mais. Jesus diz, em Mateus 6:17-18, que você não deve deixar transparecer seu sofrimento ao público, que o sofrimento é algo particular. Então, na verdade, o estímulo eclesiástico ao culto do sofrimento é anticristão. É verdade, o cristão não deve esbanjar suas qualidades, mas tampouco seus defeitos, fraquezas e sofrimentos. Ambas as coisas são orgulho.

Por último, uma crítica às causas finais: o fato de o ser humano fazer uso de algum elemento da natureza não justifica a existência desse elemento. Por exemplo: antigamente se pensava que o Sol existe porque a vida precisa de iluminação. Na verdade, não. O Sol existe, é verdade, e a iluminação é consequência de sua existência. Mas não podemos dizer que foi essa necessidade que criou o Sol.

24 de maio de 2015

O que aprendi da “Ética a Nicômaco”.

“Ética a Nicômaco” foi escrita por Aritóteles. Abaixo, algumas coisas que eu aprendi sobre esse texto.

  1. Todas as ações visam um bem.
  2. O fim alcançado pelo estado é mais belo, por beneficiar aos súditos também.
  3. Mas a política não é ciência exata e a busca pelo bem da cidade é um estudo proximal.
  4. A política é ação, prática.
  5. Bem agir e bem viver coincidem com felicidade.
  6. Para a maioria das pessoas, vive bem e age bem quem procura e encontra o prazer, ou seja, para essas pessoas, felicidade é prazer.
  7. A busca pela honra é uma busca difícil, porque honra é algo que depende mais de quem reconhece o outro como honrado e não tanto de quem procura a honra.
  8. A vida virtuosa não necessariamente traz felicidade.
  9. O dinheiro é apenas útil e é perseguido em nome de um fim maior.
  10. Há várias ciências que tratam do bem.
  11. Os bens particulares não diferem muito do bem em si.
  12. Se não houvessem bens particulares, não haveria sentido em conceber o bem em si, já que ele não poderia explicar nada.
  13. As ciências tentam alcançar o bem, mas não são elas que explicam o que é o bem.
  14. Isso porque as ciências visam fins específicos.
  15. O bem de cada ciência é o fim que ela visa.
  16. O bem é aquilo que procuramos sem ser em vista de outra coisa, por isso dizem que o dinheiro não traz felicidade: o dinheiro é usado para obter outra coisa que talvez lhe traga felicidade.
  17. Aristóteles começa suas reflexões usando opiniões correntes porque, se uma das opiniões se mostrar verdadeira, ajudará bastante.
  18. Quem quer alcançar a felicidade pela virtude precisa praticá-la.
  19. A felicidade é um estado da alma alcançado por aqueles que se aproximam daquilo que amam.
  20. Como pode ser feliz mais facilmente aquele que dispõe dos meios, há quem diga que obter felicidade também é questão de sorte.
  21. A virtude é ensinável.
  22. Uma felicidade obtida com o próprio esforço é melhor que uma felicidade obtida com sorte.
  23. Se felicidade é um tipo de atividade, ninguém é feliz depois de morto.
  24. Porém, existem os que sustentam que não existe felicidade, mas “momentos felizes”, no sentido de que a felicidade não tem caráter estável porque a própria pessoa não o é.
  25. Mas a felicidade obtida pela virtude é estável, porque ações virtuosas tem resultados de longa duração.
  26. A pessoa feliz não é imune ao azar, mas a forma como ela lida com o azar faz sua felicidade permanecer ou não.
  27. A virtude permite lidar melhor com infortúnios.
  28. Se felicidade é ação, então a pessoa virtuosa será feliz se praticar o bem.
  29. A felicidade do virtuoso é estável porque não serão pequenos acidentes que o deixarão infeliz.
  30. A felicidade pessoal também depende da felicidade dos amigos e dos parentes.
  31. A virtude se ensina pelo hábito.
  32. Todas as virtudes, tal como as artes, são adquiridas pela prática.
  33. A forma como alguém age em determinada circunstância o faz bom ou mal em algo.
  34. A boa ação frente a algo é uma ação comedida, equilibrada: se você foge de tudo, é um covarde, mas se não foge de nada é um imprudente.
  35. Coisas nobres e vantajosas também se apresentam como agradáveis, prazerosas, enquanto que coisas vis e prejudiciais se apresentam como dolorosas.
  36. Não é possível ser bom sem prática.
  37. A teoria de que a virtude não é ensinável torna os filósofos adeptos conformados.
  38. Platão deixou a definição de virtude em aberto, mas diz que ela é fruto de uma feliz opinião que vem de algum lugar, mas Aristóteles diz que a virtude é uma de três coisas: disposição de caráter, faculdade mental ou paixão.
  39. Virtudes têm a ver com escolhas.
  40. A virtude é disposição de caráter, mas, para Aristóteles, disposições de caráter não são inatas.
  41. A virtude humana é aquilo que nos torna bons ou que nos permite fazer bem nossa função.
  42. A virtude visa o meio-termo.
  43. Porém, isso é numa situação em que a pessoa pode dar-se ao excesso, dar-se à falta ou escolher o meio-termo (não existiria a “virtude de não fumar cigarro” porque não existe meio-termo saudável nessa prática).
  44. Virtude não é o fim das emoções, mas a sua condução correta.
  45. Isso não é válido somente para as emoções, mas também à ações.
  46. Mas isso significa que ser virtuoso é difícil: acerto é um só, mas existem vários jeitos de errar a medida.
  47. Virtude aristotélica numa meia-concha: disposição de caráter relativa a escolha e que consiste na medida correta, que deve ser avaliada segundo cada caso e requer sabedoria prática.
  48. As proposições gerais precisam estar em harmonia com casos particulares.
  49. As pessoas que manifestam vícios julgam que os virtuosos são viciosos.
  50. A virtude é o meio-termo entre dois vícios, um por carência e o outro por excesso.
  51. Para achar a medida certa ou se aproximar dela, devemos ir na direção do extremo que parece ser o menos danoso.
  52. É menos digno de censura aquele que peca sem querer.
  53. Não é voluntária a ação cometida por ignorância ou por compulsão.
  54. Algumas ações voluntárias podem ser involuntárias dependendo do ponto de vista.
  55. Ações feitas por ignorância merecem perdão.
  56. Ação voluntária é aquela praticada pelo indivíduo, de sua vontade e não coagido por força maior, que está completamente ciente do que está fazendo.
  57. Não podemos culpar nossas emoções por algo que praticamos.
  58. Desejo e escolha são coisas diferentes.
  59. As escolhas não podem se basear em opiniões, mas em juízos sólidos de bom ou mau.
  60. Só que o juízo de bom ou mau varia de pessoa para pessoa.
  61. Mas pode-se dizer que escolha é a decisão com base em princípios racionais entre duas ou mais opções.
  62. Deliberações são feitas sobre coisas que estão ao nosso alcance e que podem ser realizadas.
  63. Não é possível deliberar sobre nossas funções ao mesmo tempo que exercemos essas funções: um cientista, durante suas pesquisas, não deveria parar para se perguntar se aquilo é o que ele deveria estar fazendo.
  64. Porém, durante o exercício da função, na qual os fins não são questionados, os melhores meios para alcançar o fim ainda são motivo de deliberação.
  65. Dá pra deliberar sobre nossos fins quando todos os meios de chegar a ele falham.
  66. Não se delibera sobre o que parece óbvio.
  67. Em geral, queremos o bem, mas cada pessoa, em particular, julga bom aquilo que lhe parece bom.
  68. Muitas condições ruins que nos levam a agir malignamente poderiam ser evitadas.
  69. O medo é a antecipação de algo ruim.
  70. Existem coisas que devemos temer.
  71. Existem coisas que só se devem temer em certas situações.
  72. Existem coisas que não devem ser temidas mais que o necessário.
  73. Existem coisas que não devemos temer.
  74. Alguns “corajosos” são movidos por medo de penas ou medo da vergonha.
  75. A coragem é aquela que não vem da coação.
  76. A paixão (emoção) auxilia a coragem.
  77. O bravo está ciente do perigo, mas o otimista supõe que não haja perigo ou que este seja irrisório.
  78. A coragem é mais evidente quando mais próxima do vício do medo, ficando entre a covardia e o excesso de confiança, mas é mais fácil reconhecer o corajoso em situações que inspiram medo e não nas que normalmente inspiram excesso de confiança.
  79. É mais fácil se abster do que é bom do que suportar o que é doloroso.
  80. Intemperança é “mais voluntária” que a covardia.
  81. O pródigo se arruína porque não julga seus bens com a devida medida, gastando em excesso e dando em excesso.
  82. Liberalidade é doar na medida certa, sem ser pródigo, nem avarento.
  83. Ninguém pode ser rico sem esforço, pois mesmo o que nasceu rico, se não se esforçar em manter a riqueza, ficará pobre.
  84. O pródigo ainda é mais útil que o avaro.
  85. A magnanimidade é a “coroa das virtudes”: ressalta as virtudes que já temos e não existe sem um conjunto de outras virtudes.
  86. Magnanimidade é ter para si o devido valor como pessoa.
  87. Aqueles que pecam pelo excesso de raiva, contra-atacam imediatamente, de forma que sua raiva não permanece por muito tempo.
  88. É possível também pecar por desejo de agradar.
  89. Enquanto a modéstia é recusar um elogio que vem, a falsa modéstia é negar as capacidades que possui.
  90. Há meio-termo também nas piadas.
  91. É possível conhecer algo pelo estudo de seu oposto: quando estudamos hábitos saudáveis, logo descobrimos que hábitos não são saudáveis, apesar de não tê-los como objeto de estudo inicial.
  92. O justo é honesto e obediente às leis.
  93. A justiça é escritora.
  94. A justiça é a virtude completa, na qual estão compreendidas todas as virtudes.
  95. O injusto lucra com atos vis.
  96. O trabalho do juiz é, pela pena, igualar perdas e ganhos entre ofensor e ofendido.
  97. Os pitagóricos definiam justiça como reciprocidade.
  98. A justiça deve levar em conta vários fatores para determinar perdas e ganhos.
  99. O dinheiro foi feito para facilitar a transação de objetos e de serviços.
  100. O que torna o dinheiro valioso somos nós; o dinheiro não tem valor intrínseco.
  101. O que faz os preços aumentarem ou diminuírem é a procura.
  102. O valor do dinheiro é inconstante, mas mais estável que o valor dos próprios objetos.
  103. Existem ações injustas e pessoas injustas. Roubar uma vez não te torna ladrão. Então, embora, ações injustas sejam injustas sempre, a pessoa que comete um ato injusto não necessariamente é injusta.
  104. Quando um governante passa a arrogar para si aquilo que ele não merece e, por isso, começa a agir injustamente, ele acaba se tornando um tirano.
  105. Existem leis naturais e existem leis humanas. As humanas são mutáveis, enquanto as naturais não mudam.
  106. O que torna o praticante de uma ação injusta uma pessoa injusta é a voluntariedade. Se a pessoa fez, de boa vontade, um ato injusto, ciente de sua injustiça, ela é injusta, por que fez, de propósito, o que sabia ser errado.
  107. Quando injusto acontece, mas vem de uma fonte externa, temos um infortúnio. Se algo injusto acontece e somos a causa disso, mas por ignorância, temos um engano. Se algo injusto acontece, sabemos que é injusto, mas não fizemos de propósito, temos um ato injusto que não torna o praticante uma pessoa injusta. Se algo injusto acontece, sabemos que é injusto, nós somos a causa e fizemos de propósito, temos um ato injusto que nos caracteriza como injustos.
  108. Pode alguém aceitar ser vítima de uma injustiça e sê-la voluntariamente?
  109. Não é possível sofrer injustiça voluntariamente, isto é, se colocar na posição paciente enquanto alguém pratica um dano contra você.
  110. É possível ser injusto consigo próprio.
  111. Existem coisas que são impassíveis de ser explicadas universalmente.
  112. Quando exceções à regra são descobertas, o indivíduo pode permitir-se ajustar a regra.
  113. Se a universalidade de uma lei é contestada, ela precisa de ajustes.
  114. Existem três guias da ação: sensação, razão e desejo.
  115. A origem da ação é a escolha, motivada pelo desejo e feita pela razão.
  116. Existem cinco manifestações da verdade: técnica, ciência, sabedoria prática, filosofia e razão intuitiva.
  117. Aristóteles já distinguia indução da dedução (silogismo).
  118. Os pressupostos usados no silogismo devem vir da indução.
  119. Os primeiros princípios são apreendidos primeiro pela razão intuitiva.
  120. A sabedoria é o conhecimento mais perfeito.
  121. Se o gênero humano não é a melhor coisa do mundo, qualquer ciência que trate das pessoas não é a melhor que existe.
  122. Sabedoria geral e sabedoria prática não necessariamente coincidem.
  123. A sabedoria filosófica trata das coisas mais gerais (do que é “certo”), enquanto que a sabedoria prática trata das coisas particulares (do que é “vantajoso”).
  124. A sabedoria filosófica é conhecimento científico combinado com razão intuitiva.
  125. A razão do filósofo não ser visto como alguém lá muito útil é simples: ele não busca o conhecimento dos seres humanos para os seres humanos se não acidentalmente, porque está preocupado com o conhecimento das coisas maiores.
  126. A sabedoria prática é preferível à sabedoria filosófica, porque auxilia na resolução dos problemas mais iminentes: não tem muito juízo quem se preocupa com coisas mais intelectuais sem ter resolvido questões como alimentação, trabalho e abrigo antes.
  127. A sabedoria prática não versa apenas sobre os universais.
  128. A deliberação boa não necessariamente produz o bem, porque se pode deliberar como obter um fim que é mau.
  129. A razão parece transformar predisposições à coragem, temperança e outras em virtudes de fato.
  130. As virtudes envolvem sabedoria prática.
  131. O exercício da sabedoria prática leva a pessoa a colecionar todas as virtudes.
  132. Existem três tipos de moral que devem ser evitadas: vício, incontinência e rudeza.
  133. O contrário do vício é a virtude e o da incontinência é a continência.
  134. Continência (refrear desejos presentes) não é o mesmo que temperança (não desejar o que é ruim).
  135. O conhecimento não necessariamente impede alguém de praticar o que é errado: podemos saber que é errado agredir alguém e ainda o fazer durante um acesso de ira.
  136. Pode haver excesso mesmo nas coisas boas.
  137. Porém, se praticamos o excesso de algo bom, somos incontinentes em relação àquilo e não incontinentes em sentido absoluto.
  138. Não se aplica o nome “incontinente” à pessoas que sofrem de algum mal congênito ou que estão sob condições mórbidas, porque o controle estaria completamente além de suas forças.
  139. A incontinência em relação à cólera é menos vergonhosa porque a cólera só se mostra quando nos reconhecemos como ofendidos.
  140. A incontinência em relação aos apetites é mais vergonhosa porque ela é espontânea: a cólera só acontece por um motivo externo, mas você não precisa de um motivo externo para querer comer um pudim fora de hora, não precisa nem mesmo estar com fome, bastaria lembrar de que é bom e o desejo viria.
  141. Além disso, a raiva é algo que acomete a todos, enquanto que o desejo por coisas como glória, fama, tipos específicos de comida não acomete a todos.
  142. A cólera é mais justificável por tentar sanar uma dor, enquanto outros excessos não visam sanar dor alguma, mas apenas obter mais prazer.
  143. A razão também é fonte de maldade.
  144. É necessário se arrepender para mudar.
  145. O intemperante não resiste às pulsões que a maioria resiste, enquanto que o incontinente cede à pulsões que a maioria não resistiria.
  146. O incontinente tem desejo ou tem desejo forte, mas não é capaz de dominar-se.
  147. O intemperante é pior, porque tem vontade fraca, então imagine se ele tivesse uma boa razão para ser ruim ou se ele estivesse sob um desejo que é humanamente extenuante, como no caso do incontinente: ele seria capaz de um mal maior do que o incontinente, que faz algo errado por ter desejos verdadeiramente fortes.
  148. O intemperante é “incurável”, porque prefere ouvir o corpo e não a razão.
  149. Mas só é incontinente aquele que cede ao que é vergonhoso.
  150. O intemperante prefere ouvir o corpo em lugar da razão, por isso faz o que faz.
  151. O incontinente sabe que deve ouvir a razão, mas não pode evitar transgredi-la.
  152. A contemplação é um prazer que não envolve apetite nem dor.
  153. O prazer não é processo, mas fim.
  154. Algo não é ruim só porque é buscado por tolos.
  155. Bondade não necessariamente traz felicidade.
  156. A amizade parece justificar a vida: não vale a pena viver sem amigos.
  157. Os ricos e poderosos são os que mais precisam de amigos, porque gastar só consigo mesmo não é o bastante.
  158. Os ricos também precisam de amigos porque é mais difícil defender sozinho uma grande riqueza.
  159. O ser humano não é o único capaz de sentir amizade.
  160. A amizade é produtiva porque multiplica a capacidade de ação e de pensamento.
  161. Amamos aquilo que nos parece bom.
  162. Os amigos amam-se um ao outro.
  163. Amizade é benevolência recíproca entre pessoas que conhecem os sentimentos um do outro.
  164. Existem pessoas que amam a outra pela sua utilidade prática: quando a pessoa cessa de ser útil, cessa o amor por ela.
  165. Existem pessoas que amam a outra pelo prazer que proporcionam, mas esse amor também não necessariamente é durável.
  166. A amizade verdadeira requer que a pessoa queira bem também ao outro, de forma que esta difere das outras formas de amor por não apenas tomar utilidade, mas também oferecê-la, tal como prazer.
  167. Esse tipo de amizade continua enquanto as duas partes forem boas e a bondade é algo durável.
  168. A amizade verdadeira é rara como as próprias pessoas boas e requer tempo para se estabelecer.
  169. A distância interrompe as atividades da amizade, mas não necessariamente a mata.
  170. Procuramos amigos agradáveis, mas não necessariamente o amigo agradável é bom (amizade falsa).
  171. É possível se deleitar em amar sem ser amado de volta.
  172. A amizade é pautada no amor.
  173. O amor platônico como desejo daquilo que não se tem é criticável: amar alguém porque ela tem uma qualidade que reconhecemos como boa e que nós não temos é um tipo de interesse.
  174. Diferentes comunidades parecem ter diferentes tipos de amizade.
  175. Três tipos de governo: monarquia, aristocracia, a moda de Esparta.
  176. Os tipos de governo podem ser encontrados na família: os irmãos são democráticos entre si, mas submissos ao mando do pai, que forma uma aristocracia com a mãe.
  177. Num sistema de governo, a amizade é possível quando há justiça.
  178. É possível ser amigo de um escravo enquanto ele não está sendo mandado.
  179. Casais com filhos não se divorciam facilmente.
  180. A amizade pautada na utilidade é a que comporta mais queixas.
  181. A amizade não é um comércio.
  182. Quando não podemos saldar uma dívida com um amigo, é nobre que demos o nosso melhor em saldar o que pudermos.
  183. A proporção preserva a amizade.
  184. Permitir que o consumidor escolha o preço da mercadoria evita queixas.
  185. O comprador julga algo segundo o valor que ele pensa que aquela coisa tem, não seu valor depois de comprada.
  186. Só é possível amar o que se afigura bom.
  187. Não é possível amar o que se afigura mau.
  188. Quando nosso amigo se torna mau, não deveríamos romper com ele imediatamente, mas tentar trazê-lo à bondade novamente.
  189. Antigos amigos ainda podem ser tratados com mais respeito que os desconhecidos.
  190. Quem não ama a si mesmo, julga não ter nada de amável em si.
  191. O início da amizade da mais elevada espécie é a benevolência.
  192. O benévolo ama fazer bem aos outros, como se os outros fossem suas “obras”.
  193. Existem duas formas de amor a si mesmo: o amor que procura dar-se prazer e o amor que procurar se aperfeiçoar.
  194. Se a felicidade é atividade, mesmo o que se basta, o sumamente feliz, precisa de amigos aos quais fazer bem, para manter a felicidade.
  195. Perceber que estamos vivos é “perceber que percebemos” ou que pensamos.
  196. Amizade é condição de possibilidade da felicidade: não é possível ser feliz sozinho.
  197. “Medida certa” não precisa ser algo fixo, mas algo que fique entre duas coisas fixas.
  198. Não devemos ter um grande número de amigos, porque isso prejudica a intimidade.
  199. A educação dos jovens era feita com os “lemes” do prazer e da dor.
  200. O prazer é um bem em si mesmo.
  201. Prazeres que os são para pessoas ruins não são prazeres para pessoas boas.
  202. O prazer depende da pessoa.
  203. Como não podemos nos dedicar continuamente, com a mesma intensidade, a uma atividade, não podemos estar sempre contentes.
  204. Parece que existem diferentes tipos de prazer que atraem de forma diferente diferentes tipos de pessoa.
  205. Gostar daquilo que fazes te torna produtivo naquilo.
  206. Quando tentamos prestar atenção em duas coisas, a que é mais prazerosa toma mais atenção.
  207. Se a felicidade não fosse atividade, bastaria estar deitado para ser feliz.
  208. Felicidade é fim em si mesma: ninguém se pergunta “por que quero ser feliz?”
  209. A função da recreação e do divertimento era nos refrescar antes de voltarmos à labuta.
  210. A vida conforme a razão é a mais feliz.
  211. Os atos virtuosos parecem depender de oportunidades para acontecer.
  212. Não é necessário ter muitos bens para ser feliz.
  213. É a prática que faz a profissão, nunca somente o estudo.

25 de setembro de 2014

O que aprendi lendo “Metafísica”.

Filed under: Livros, Passatempos — Tags:, , , , , — Yure @ 04:22

Metafísica” foi escrita por Aristóteles. Abaixo, o que aprendi lendo esse texto.

  1. A curiosidade faz parte da natureza humana.
  2. Arte é o conjunto de informações abstraídas de um processo indutivo com finalidade prática.
  3. O sinal distintivo de domínio sobre um conteúdo é a capacidade de ensiná-lo.
  4. O sábio deve conhecer tudo na medida do possível, embora não seja obrigado a conhecer tudo em sua profundidade.
  5. O sábio deve se preocupar com as causas das coisas.
  6. A filosofia nasceu quando as pessoas, admiradas com o mundo, perceberam que eram ignorantes e buscaram o conhecimento com principal intuito de fugir da ignorância, sem necessariamente visar utilidade prática.
  7. As causas da substância são quatro: formal (o que a coisa é), material (de que é feita), eficiente (o que a fez passar da potência ao ato, ou seja, o que a fez existir) e final (para quê tende, ou seja, qual é o objetivo dela).
  8. Os primeiros filósofos estavam interessados na causa do mundo, identificando-a em um elemento simples e material: Tales acreditava que o princípio era o elemento água, Anaxímenes acreditava que era o ar, Heráclito acreditava no fogo, entre outros.
  9. Muitas das primeiras filosofias de ordem naturalista eram falhas por suprimir o movimento: que força impeliu a água, por exemplo, a tornar-se outras coisas?
  10. Admitir apenas causas materiais para tudo implica suprimir os entes incorpóreos.
  11. Demócrito acreditava que os princípios eram “cheio” e “vazio” (isto é, átomos e vácuo).
  12. Pitágoras acreditava que era o número.
  13. Alguns pitagóricos acreditavam na existência de dez princípios, cada um composto de duas coisas opostas.
  14. Os filósofos naturalistas se dividem em duas categorias: os que creem na origem puramente material (não obstante o número de princípios) e os que creem na origem material e na origem motriz (esta última podendo ser una ou múltipla).
  15. Platão era mobilista, mas não aceitava que a doutrina do “tudo flui” de Heráclito era válida também para as coisas imateriais, já que, se o fosse, nada poderia ser conhecido (segundo o sistema platônico).
  16. Os naturalistas erraram em muitos pontos, por suprimirem a essência, por suprimirem os entes incorpóreos e alguns outros ainda por não falar do movimento.
  17. Logo vê-se que o número de ideias constitui um problema na teoria das ideias.
  18. A teoria das formas comporta “formas de formas”, se for abusada, permitindo que algo seja, ao mesmo tempo, modelo e cópia.
  19. A origem do movimento não está clara na teoria das formas.
  20. Não é possível apreender algo sem o sentido certo.
  21. Todos dão sua contribuição à verdade, mesmo os que erram.
  22. Se algo é muito óbvio, é fácil deixar escapar à vista.
  23. As causas não podem ser revertidas indefinidamente.
  24. É necessário se expressar de forma clara se o que se quer é ser entendido.
  25. A matemática trata de coisas abstraídas da matéria.
  26. Para resolver as dificuldades, é necessário expô-las, analisá-las.
  27. A matemática não é qualitativa, mas quantitativa, preocupada com número e quantidade, não com bom e ruim.
  28. Conhecer um objeto é saber o que ele é.
  29. A essência de algo não é demonstrável empiricamente.
  30. Existem, sim, coisas eternas, pois tudo o que é contingente vem de algo que lhe é anterior, mas se não houvesse algo eterno (que sempre existiu) nada existiria.
  31. Impossível que a origem dos entes contingentes e dos entes eternos seja a mesma.
  32. A filosofia antiga parece implicar que a discórdia constrói na medida em que separa as coisas, dando-lhes forma particular, e a amizade destrói ao juntar tudo em uma coisa só, fazendo tudo abdicar de existência particular.
  33. Alguns filósofos parecem identificar um (unidade) e ser.
  34. Nem toda potência se efetiva, isto é, torna-se ato.
  35. A metafísica se ocupa do ser enquanto ser.
  36. O filósofo está incumbido de estudar tudo.
  37. A filosofia deve questionar os axiomas das outras ciências.
  38. A lógica é parte da filosofia.
  39. A aceitação sem provas é necessária ao discurso; não é possível chegar a conclusão nenhum sobre algo se você perguntar qual a prova daquilo e depois a prova de que a prova é válida, depois a prova da validade da prova ulterior e assim sucessivamente.
  40. Caso o enunciado seja deformado, o significado dos termos constados nele têm prioridade.
  41. Para Anaxágoras, tudo está misturado, não havendo existência particular.
  42. Todos fazem juízos irrestritos quanto ao útil e ao inútil.
  43. Loucos sempre são a minoria.
  44. Se os sentidos de alguém fossem diferentes, mesmo que para melhor, ele seria considerado uma anormalidade e muito provavelmente não seria levado a sério.
  45. Se tudo estivesse em constante mudança, nada se poderia afirmar com certeza; não pode haver ciência sem regularidade.
  46. Verdade é dizer que aquilo que é de fato é e que o que não é realmente não é.
  47. Mentira é dizer que o que é não é e que o que não é na verdade é.
  48. A causa final também põe as coisas em movimento.
  49. Uma coisa é “mais una” conforme se aproxima do critério “não pode ter seu sentido separado e não é divisível nem em tempo nem em espaço”.
  50. Potência é o contrário de ato: algo “em potência” é algo que ainda não aconteceu, mas pode acontecer.
  51. Impossível é qualquer afirmação falsa que é necessariamente falsa (isto é, que não poderia ser verdadeira de nenhum modo), como “círculo quadrado”.
  52. Bom é aquilo que é perfeito, excelente ou que alcançou seu fim.
  53. “Gênero” é uma classe de coisas (como “gênero humano”).
  54. Acidente é aquilo que ocorre junto com a essência, mas que não a modifica (se o céu está nublado ou claro, ele continua sendo céu).
  55. A física trata do ser enquanto este admite movimento, ao passo que a metafísica se ocupa do ser imóvel e separado (abstrato).
  56. A metafísica (filosofia primeira) é a parte da filosofia que se propõe a ser a mais elevada.
  57. Uma substância se produz do ato de outra.
  58. Essência (conceito) independe de órgão.
  59. A essência do animal é a alma (princípio de movimento, animal é aquilo que se move por si).
  60. Toda definição é definição do universal; acidentes não são levados em conta numa definição (a definição de “céu” independe do fato de o céu estar ou não nublado).
  61. A física é a “filosofia segunda”.
  62. Em “animal bípede”, animal é gênero e bípede é diferença (aquilo que diferencia aquele espécime dos outros do mesmo gênero).
  63. É preciso saber o que se busca antes de começar a buscar.
  64. “Calmaria” significa “tranquilidade do mar”: tranquilidade é ato, mar é substrato.
  65. “Animal” é “alma num corpo”.
  66. Não é possível gerar uma forma, mas é possível gerar um indivíduo, que é matéria e forma.
  67. Nem tudo tem quatro causas.
  68. Conhecer um objeto pode implicar conhecer seu contrário.
  69. A melhor forma de aprender é na prática.
  70. Física e matemática também estudam princípios das coisas que existem e, por isso, são partes da filosofia para Aristóteles.
  71. Nada vem do nada.
  72. A estabilidade é necessária ao conhecimento; não é possível conhecer algo que está em constante mudança.
  73. Não se pode dizer nem que tudo é verdade nem que tudo é mentira.
  74. Se as ciências são hierarquizadas segundo seus objetos, a teologia é a maior delas.
  75. O conhecimento do acidental não é científico.
  76. “Acaso” não é “efeito sem causa”, mas efeito inesperado de causa desconhecida.
  77. Tempo e movimento sempre existiram.
  78. A causa final move por atração.
  79. A missão de cada indivíduo se inicia em sua natureza.
  80. A teoria das ideias só teve início porque se constatava que as coisas sensíveis estão em mudança constante. Assim, se quiséssemos entender alguma coisa do mundo, só poderia ser aquilo que há de inteligível. Mas não foi Sócrates que inventou as ideias.
  81. Número e grandeza estão nas coisas.